Crime domina 1,4 mil comunidades do Rio
Mais de 500 mil alunos estudam em áreas dominadas pelo crime organizado no Rio de Janeiro. Traficantes e milicianos também controlam territórios de 14% dos postos de saúde e 13,6% das zonas eleitorais do Estado. Os dados sobre influência de facções criminosas constam de documento do governo Wilson Witzel (PSC), apresentado à Justiça para tentar […]
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Mais de 500 mil alunos estudam em áreas dominadas pelo crime organizado no Rio de Janeiro. Traficantes e milicianos também controlam territórios de 14% dos postos de saúde e 13,6% das zonas eleitorais do Estado. Os dados sobre influência de facções criminosas constam de documento do governo Wilson Witzel (PSC), apresentado à Justiça para tentar defender operações policiais em favelas.
Em junho, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu ações policiais nas comunidades do Rio durante a pandemia de coronavírus – salvo em “hipóteses absolutamente excepcionais”. Para esses casos, a justificativa deve ser entregue por escrito ao Ministério Público.
Na semana passada, o plenário do STF voltou a rejeitar os argumentos do governo e decidiu por uma série de restrições às ações. Entre elas, só permitir helicópteros em “estrita necessidade” e proibir o uso de escolas ou unidades de saúde como bases operacionais da polícia.
Autores das medidas judiciais alegam que as operações são realizadas em modelo de guerra, desrespeitam normas estabelecidas e resultam na morte de inocentes (mais abaixo). Em maio, mesmo com a quarentena, o Rio registrou 129 mortes por agentes de segurança, incluindo João Pedro Mattos, de 14 anos, vítima de um tiro de fuzil nas costas dentro de sua própria casa Já com a liminar em vigor, foram 34 ocorrências em junho e 50 em julho.
Para tentar sustentar a atuação nas favelas, a gestão Witzel se valeu de relatório do delegado Felipe Lobato Curi, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional. Segundo o documento, o setor de inteligência da Polícia Civil identificou 1.413 comunidades sob domínio do crime organizado.
Destas, 1.135 estariam nas mãos de três facções voltadas para o narcotráfico: Comando Vermelho (CV),Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigo dos Amigos (ADA). Por sua vez, as milícias exerceriam poder em outros 278 locais. Rivais, os grupos protagonizam disputas violentas pelos territórios.
O documento é anterior à decisão do plenário do STF. Nele, o delegado ataca a liminar de junho e cita estimativa de que haveria 56.520 indivíduos portanto fuzis ou pistolas em áreas urbanas do Rio. “Em vez de proteger os alunos e profissionais de ensino das escolas e creches (…), estes acabaram sendo expostos a risco exacerbado.”
Domínios do crime
Segundo o governo do Rio, o mapa da influência das facções foi feito a partir do cruzamento de endereços dos serviços que atendem a população, informações de inquéritos policiais e dados de 11,7 mil ligações para o disque-denúncia em 2019. As áreas mais afetadas seriam a capital, Baixada Fluminense, Niterói e São Gonçalo, além das regiões dos Lagos e Serrana.
O levantamento aponta 1.779 unidades de ensino nessas áreas, com 505.411 alunos matriculados. Duas a cada três escolas são da rede pública – a maioria em regiões dominadas pelo CV. “Na porta da escola de educação infantil (…) podem ser encontrados indivíduos fazendo o tráfico de drogas e portando armas de fogo”, diz uma das denúncias incluídas.
Em outra, moradores reclamam que criminosos estariam usando concreto e geladeiras para instalar barricadas e obstruir vias: “As barreiras impedem a chegada do caminhão de alimentos numa creche”. Os relatos mais frequentes, porém, são de bandidos ostentando armas de fogo e cobrando taxas de moradores e comerciantes para serviços de segurança.
Já das 4.848 unidades básicas de saúde (UBSs) no Rio, 695 estariam em redutos de facções, de acordo com o relatório. “Em frente ao hospital (…), traficantes (…) obstruíram a via, com troncos de árvores e sofás velhos, impedindo o acesso de qualquer veículo e de pacientes”, descreve uma das denúncias anônimas. “Constantemente obrigam os médicos a escreverem receitas, a suturar pontos e a aplicar injeções.”
As regiões compreenderiam, ainda, 672 locais de votação e mais de 1,9 milhão de eleitores. Nessas áreas, traficantes promovem festas para seus candidatos e coagem a população a votar neles, diz o documento. “As restrições de operações em comunidades do Estado do Rio podem interferir no processo eleitoral, dificultando campanhas eleitorais, bem como as eleições”, avisa o delegado.
Ineficiência
Sem apresentar dados consolidados, Curi também relata que houve “praticamente uma guerra entre grupos rivais por dia” desde a suspensão determinada por Fachin. Segundo ele, os conflitos teriam resultado em “diversas mortes de crianças e inocentes” – mas não informa quantos foram esses supostos assassinatos. As operações policiais, acrescenta, seriam “de suma importância” para combater as facções.
Coordenadora da Rede de Observatórios de Segurança, a cientista social Silvia Ramos discorda do delegado e diz que as ações são ineficientes para a segurança da população. “Há mais de 20 anos, políticas para resolver esse problema têm sido de confronto e operações de guerra”, afirma. “Foram milhares de operações e com qual resultado? As facções e milícias ficaram mais fortes.”
Para a pesquisadora, falta ao Rio investir em políticas de inteligência e prevenção de crimes. “Quando a polícia sai, os grupos encomendam mais armas sem que haja nenhum trabalho para interceptá-las”, diz. “O modelo para desarticular os grupos tanto não funciona que o STF precisou a intervir.”
Riscos
Subcoordenadora da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Rio, Beatriz Cunha afirma que o raio X elaborado pelo governo Witzel seria, na verdade, mais um argumento para restringir operações policiais em favelas. “Os dados só reforçam a necessidade de manutenção da decisão”, diz.
Foi a Defensoria Pública fluminense quem ingressou com ação civil pública no Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) contra operações realizadas em áreas sensíveis, como proximidades de escolas e hospitais. No pedido, o órgão afirma que o governo não cumpre a própria instrução normativa, editada em 2018, que estabelece critérios para reduzir riscos a inocentes.
“Uma atividade policial baseada no enfrentamento armado a criminosos aumenta o risco de vitimização de pessoas que não têm relação com o conflito e afeta a prestação dos serviços públicos nas áreas expostas”, diz Beatriz Cunha. “Crianças e adolescentes têm sido, com frequência, vítimas de balas perdidas, além de perderem aulas em razão de suspensões por tiroteios.”
Entre os problemas, a defensora cita incentivo à evasão escolar e impactos na saúde mental e no processo de aprendizagem de crianças. “A política de segurança pública, nos moldes como realizada até então, não alcança o objetivo pretendido e gera alto custo social”, afirma.
Beatriz também recorre a dois estudos do Ministério Público, deste ano, segundo os quais a alta da letalidade da polícia do Rio não provoca queda de outros delitos. “Em determinadas áreas do Estado, essas mortes apresentaram um caráter extraordinariamente excessivo e sem vinculação às dinâmicas criminais e à produtividade policial”, diz um deles.
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