Andando pela Rússia – Parte II

 

O Hermitage é o maior museu da Rússia e um dos maiores do mundo. Seu acervo tem mais de três milhões de peças. No site de divulgação do museu há a informação de que ele tem a maior coleção de quadros do mundo. Encontrei uma página na internet em que é feito um cálculo: se você parar alguns minutos diante de todas as obras, demorará quatro meses para visitá-lo inteiro. À beira do Rio Neva, em São Petersburgo, engloba dez edifícios completos. O principal é o Palácio de Inverno:  moradia dos Czares da Rússia. Tudo nele é grandioso: a quantidade de obras, de edifícios, de filas para entrar. E exagerado: ouro pelo teto, nas paredes, nas fechaduras, nas pias, nas janelas. Como já foi a moradia dos czares, tudo nesse palácio-casa-museu reflete a grandiosidade desse país.

Mesmo com filas grandiosas que contornavam todos os edifícios e continuavam pelo pátio em frente ao museu, eu e minhas amigas entramos pela lateral, pois já tínhamos comprado os ingressos pela internet. Então o segundo conselho é esse: ir a esse museu somente com os ingressos já comprados. O primeiro conselho: não é possível para alguém que gosta de arte não conhecer o Hermitage. É uma necessidade. E uma orgia visual, sai-se do museu até tonto. E mais outro conselho: se você não for sozinho, combine uma estratégia para reencontro em algum lugar fora dele para o caso de se perder de suas companhias.

Eu e minhas amigas nos perdemos. Primeiro me perdi de Márcia e Léa, e horas depois, de Alba. Já de noite, depois do dia inteiro andando por esse museu – noite só pelo horário do relógio, pois lá, no verão, não escurece – saí e andando sozinha pela rua, escutei meu nome sendo gritado de um barco quase no meio do canal. Márcia e Léa saíram do museu minutos antes e pegaram um barco para andar pelos canais da cidade e passar de barco em frente ao museu. Com minha perfeita mímica, fiz sinal ao piloto, que já estava partindo, de que eu também queria ir. Ele, falando tudo em russo, entendeu tudo, e pude subir ao barco. Assim terminou meu passeio pelo Hermitage.

Enquanto andava pelos corredores, salas e escadas suntuosas, com exagero de ouro por tudo, lembrava-me das aulas de história e dos romances russos que já tinha lido. A miséria do povo, a fome, uma aristocracia que voltou suas costas a essa miséria, as condições climáticas adversas que aumentavam os problemas, tudo isso fez uma revolução, uma tomada de poder pelo povo que foi sanguinária. A última dinastia russa, os Romanov, foi assassinada: Nicolau, Alexandra, os filhos, os criados e o médico da família foram assassinados no ano seguinte à revolução.

Nicolau II, o último czar da Rússia, vivendo suntuosamente nesse palácio, não enxergou a insatisfação do povo, fazia jantares exagerados, gastava demais, não coibiu o antissemitismo que proliferava no país e exigia do povo pagar altos impostos. Seu reinado luxuoso e insensível, cheio de decisões erradas, terminou com a revolução bolchevique. Com Lênin e Stalin, também sabemos como terminou décadas depois, esse governo que se disse do povo: em um totalitarismo que virou as costas a ele. A história sempre se repete? E o povo sempre fica no mesmo lugar?

Não é apenas pelo Hermitage que escrevo isso para vocês, nem pela votação de uma contenção de gastos que só atinge o povo – essa não na Rússia, mas no Brasil dos dias atuais – mas por um livro que estou lendo e do qual só consigo desgrudar de suas páginas para trabalhar. E depois volto para elas: Dias Malditos, de Iván Bunin. Foi o primeiro autor russo a ganhar um Prêmio Nobel da Literatura (em 1933). Esse livro tem como subtítulo “Um diário da revolução”, é um relato desesperado do dia-a-dia após a revolução de 1917. O desespero das pessoas nas ruas, os rostos atormentados, a fome. Os bombardeios à noite. O frio. Como ele se refugiava de todo esse horror? Tendo bons sonhos, construindo em seus sonhos um mundo que não existia durante o dia.

O Hermitage, um imperial palácio de inverno se transformou em museuUm exemplo: no dia 3 de abril escreve que o tempo está melhorando, não está mais tão frio e ele teve um sonho lindo, estava em um mar branco como o leite e tendo um céu azul estrelado. E dias depois outro sonho: vagões de trem, mares e países bonitos, vento fresco batendo no rosto. E mais um para finalizar, um sonho que veio depois de um dia em que publicaram grande lista de fuzilados: ao invés de paisagens, sonha com um poema em que um corcel corre livre pelos campos, livre.

Em uma coisa se assemelhavam seus sonhos e seus dias malditos: ânsia de liberdade. Queremos sempre o mesmo?

*Andréa Brunetto é formada em psicologia e atua como psicanalista. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, funda­dora do Ágora Instituto Lacaniano de Campo Grande e autora de “Sobre amores e exílios” (Editora Escuta, 2013). Colabora com o MidiaMAIS às quartas-feiras.