A Sociedade de Proteção Animal Abrigo dos Bichos entrou com uma ação civil pública contra o proprietário e capataz de uma fazenda em que dezenas de cachorros foram encontrados em situação de maus-tratos em 2019. 

Um cão da raça Foxhound Americano foi localizado em setembro daquele ano em uma estrada vicinal, perpendicular à rodovia MS-040. O animal de grande porte teria chamado a atenção dos moradores devido à magreza em contraste com o grande porte. 

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A situação levantou suspeitas de criadouro irregular na região. A ONG encontrou o canil e comunicou a Decat (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes Ambientais e de Atendimento ao Turista). Uma vistoria foi feita no local em 19 de setembro e encontrou 49 animais, entre filhotes e adultos, em situação de maus-tratos. 

Animais estavam sem água e comida

Advogados evidenciam magreza dos cães. (Marcos Ermínio, Jornal Midiamax)

Alguns estavam amarrados a troncos de árvores, expostos ao sol e sem acesso a água e alimentos. Um relatório da Polícia Civil, inclusive, apontou que alguns estavam em ambiente cheio de fezes e que até se alimentavam delas.

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Na petição, a ONG relatou também que os animais eram facilmente atraídos com vasilhas de ração, “atacadas com voracidade e desespero, o que indicava a falta de comida por longo período”. 

“Em conjunto, os cães apresentavam as seguintes condições: estado geral de ruim a bom, com alopecia, anorexia, apatia, caquexia, descamação, desidratação, desidratação grave, emagrecimento, lesão da pele, lesão em ponta da orelha, miatrofia, mucosas hipocoradas, osteomalácia em região metatarso-falangeal e podal, secreção ocular secreção nasal”, diz um trecho. 

Cachorros comercializados

No dia da apreensão, o capataz que trabalhava na fazenda desde 2011 afirmou que era caçador licenciado e treinava os cães para caça de javali. Animais de outros proprietários também seriam treinados por ele no local. 

Ele também teria admitido que selecionava os cachorros para reprodução na intenção de melhorar a imagem e que eles eram comercializados. 

A ONG relata que os animais apresentavam diversas doenças conforme apontado por exame e laudos do CCZ, como leishmaniose, cinomose, brucelose, TVT, doença do carrapato, epatozoon, giárdia, anemia, bicho-de-pé, entre outras.

Animais foram encontrados em propriedade próxima à MS 0-40 (Marcos Ermínio, Jornal Midiamax)

Mesmo com os tratamentos, três animais não resistiram às enfermidades e morreram. Assim, a ONG entrou com um pedido para que os réus sejam condenados a pagar R$ 735 mil (R$ 15 mil por cada um dos 49 animais) como indenização por danos morais coletivos. Outro pedido foi para declarar extinta a propriedade dos réus sobre os animais vítimas de maus-tratos.

Dinheiro destinado para fundo municipal

Nas alegações finais do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) no processo, o promotor de Justiça Luiz Antônio Freitas de Almeida entendeu que a indenização deveria ser recalculada e sugeriu o valor de R$ 60 mil, que deveria ser destinado ao Fundo Municipal de Meio Ambiente de .

“A destinação do dano moral coletivo deve reverter em benefício da sociedade, logo não pode remunerar a autora”, afirmou. 

A decisão do promotor levou em consideração que 33 dos 49 animais, apesar da desnutrição e desidratação, apresentavam estado regular. 

Já na sentença, proferida em 6 de fevereiro deste ano, o juiz Ariovaldo Nantes Corrêa, da 1ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos, julgou em parte procedentes os pedidos formulados pela ONG. 

Assim, o magistrado determinou a extinção da propriedade/posse dos requeridos sobre os animais apreendidos e os condenou a realizarem o cadastro dos animais que estiverem ou venham a estar sob guarda deles. 

Animais eram treinados para caça. (Marcos Ermínio, Jornal Midiamax)

“Como visto, restou reconhecida a prática de maus tratos aos animais apreendidos, seja por ação ou omissão dos requeridos, o que por si só revela a prática de ato ilícito, sendo que ainda causa indignação na consciência coletiva em razão de serem os animais seres sencientes, ou seja, capazes de sentir dor, cujo bem-estar deve ser garantido pelo tutor (proprietário), sendo a situação dos autos intolerada pela coletividade […]”, diz parte da sentença.

Os réus também foram condenados a pagar uma indenização de danos morais coletivos fixados em R$ 30 mil sobre os quais devem incidir juros de mora pela Taxa Selic desde a data em que constatados os maus-tratos (23.09.2019) com correção monetária pela Taxa Selic. 

O juiz também determinou que a quantia deveria ser destinada para o Fumbea (Fundo Municipal do Bem-Estar Animal).

Apelações

A ONG, o fazendeiro e o capataz entraram com recurso de apelação solicitando reforma da sentença do caso. No caso do Abrigo dos Bichos, foi pedido que o valor da indenização por danos morais coletivos seja elevado para R$ 735 mil e para que a destinação do valor seja revertida à apelante.

Subsidiariamente também pede que a quantia seja destinada para Fundo gerido por Conselho Federal ou Estadual, e não municipal. Por fim, solicita que a reforma da sentença seja corrida para arbitrar honorários sucumbenciais de 20% sobre o valor da condenação.

Réus negam maus-tratos

Já a defesa do capataz da fazenda nega os maus-tratos e afirma que prestou toda assistência e cuidados médicos aos cães, “utilizados como companheiros da vida e atividade rural, criados como membros da família, tudo dentro da estrita legalidade, dentro das condições de vida simples do requerido”. 

Nos pedidos da apelação, a defesa pede a extinção das medidas diante da “nítida tentativa de enriquecimento ilícito da autora” e condenação da ONG por má-fé. 

Ainda pedem que seja julgado como improcedente a ação civil pública contra o cliente, “uma vez que não praticou qualquer ilegalidade dolosa ou culposa visando maltratar seus animais domésticos, tampouco dano ambiental”. Além disso, também solicita a restituição dos animais ao capataz “pois são considerados membros de sua família”. 

Animais foram recolhidos em setembro de 2019. (Marcos Ermínio, Jornal Midiamax)

Os advogados do produtor rural também argumentaram na apelação que os animais não estavam em situação de maus-tratos e solicitaram a extinção da pena ou redução do valor da indenização para R$ 9.183,67 relativos aos 15 animais encontrados em situação “ruim”. 

Ainda, é alegado que pela análise dos laudos é possível delimitar que apenas 8 entre 42 cães estavam em situação ruim e poderiam se aproximar da narrativa escolhida pela requerente e pelo juiz. 

“Destarte, o presente apelo se situa em quatro fronts: o primeiro quanto à ilegitimidade passiva do apelante; O segundo com relação à inexistência de nexo causal hábil a configurar a responsabilidade objetiva por dano ambiental; O terceiro de inocorrência de dano à coletividade que justificasse a fixação de Danos Morais coletivos; e o quarto de justa fixação de quantum indenizatório se dano moral coletivo ambiental for reconhecido”, diz o pedido da defesa. 

O que dizem as partes?

O Midiamax entrou em contato com os advogados da ONG, do produtor rural e do capataz para se manifestarem sobre o assunto, mas até o momento da publicação da reportagem os réus não se manifestaram. A reportagem foi feita com base em documento oficial e, por isso, está passível de atualização para acréscimo de manifestação.

Confira abaixo a nota da ONG, encaminhada pela advogada Maria Luíza Venâncio:

“A ação civil pública movida pela ONG Abrigo dos Bichos, sob patrocínio dos advogados Alyne Louise Borsato, Maria Luiza Venâncio e Leandro de Oliveira Ristow, em decorrência do resgate de cães cujos eventos ficaram conhecidos como ‘Resgate da MS-040', teve por objetivo principal a obtenção de indenização por danos morais coletivos, ou seja, uma reparação à moral comunitária (à nossa consciência coletiva) pelos maus tratos praticados contra os mais de 40 cães resgatados, predominantemente da raça Foxhound Americano.

Além disso, foram pedidas a extinção da propriedade sobre os animais (por abandono), a castração (por questão de saúde) e outras medidas de caráter administrativo. Nesse processo, buscou-se a responsabilização do autor dos maus tratos e do proprietário do imóvel rural, em que ocorriam os atos ilícitos.

Antes mesmo da sentença, obteve-se medida liminar que autorizou a castração e a permanência dos animais, na rede de apoio da ONG Abrigo dos Bichos. Apresentadas todas as provas, ouvidas as partes, testemunhas e com significativa contribuição do Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul, foi prolatada sentença que condenou o autor dos maus tratos e o proprietário do imóvel ao pagamento de indenização por dano moral coletivo, no importe de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), com destinação ao Fundo Municipal de Bem-Estar Animal de Campo Grande, MS (FUMBEA-CGMS).

Além disso, declarou a extinção da propriedade sobre os animais, consolidando a situação deles junto aos seus atuais tutores. Embora tenha havido uma significativa vitória, especialmente na condenação conjunta do proprietário do imóvel, foi apresentado recurso pela ONG Abrigo dos Bichos pedindo aumento da indenização, para R$ 750.000,00 (valor pedido desde o início do processo), e a destinação da quantia – ou parte dela – à ONG Abrigo dos Bichos.

No que se refere ao aumento da quantia arbitrada, entende-se que ela não se mostra suficiente para aplacar todo o dano moral coletivo causado (o valor por animal não chegaria a R$ 800,00) e, também, não atende ao caráter punitivo-pedagógico inerente a esse tipo de reparação, especialmente pelo elevado poder aquisitivo do proprietário do imóvel rural.

Quanto ao pedido de destinação do recurso – ou parte dele – à ONG Abrigo dos Bichos, é pleito que reverbera a pauta de luta do terceiro setor por financiamento de suas atividades, com independência de recursos públicos.

Acredita-se que o dispositivo legal, o qual trata da destinação de indenizações decorrentes de ações civis públicas, deve ser interpretado à luz dos participantes do processo e do contexto da ação.

Assim, argumenta-se para que, quando ações coletivas forem movidos por entidades privadas, em desfavor de particulares, como o ocorrido no caso, a quantia – ou parte dela – seja destinada à parte autora da ação, para que o recurso seja aplicado diretamente no combate de atividades similares às que deram causa à indenização”.

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