Áudios de Vanessa apontam descaso e erros da Deam antes de feminicídio
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Áudios gravados pela jornalista Vanessa Ricarte antes de ser assassinada pelo ex-noivo Caio Nascimento, na última quarta-feira (12), desmentem o discurso das delegadas que atuam na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) de Campo Grande sobre o atendimento que ela tentou receber horas antes de ser morta.
Além disso, os relatos de Vanessa apontam descaso e erros grosseiros no atendimento que ela recebeu quando procurou ajuda na Casa da Mulher Brasileira. Como em muitos casos de feminicídio em Mato Grosso do Sul, a ajuda não chegou a tempo.
Mesmo assim, Vanessa Ricarte detalhou para uma amiga pouco antes de ser assassinada que esperava ‘chegar com a polícia’ para tirar o assassino da casa dela. Não conseguiu.
Sem escolta, Vanessa foi morta com três facadas pelo agressor, que já tinha longo histórico de ocorrências por violência doméstica.
Em entrevista coletiva, a delegada titular da Deam, Eliane Benicasa, chegou a dizer para toda imprensa campo-grandense que teria oferecido escolta, mas a jornalista teria ‘rejeitado’. Vários jornais de Campo Grande compraram a versão da policial.
Segundo Vanessa, é mentira.
‘Fria e seca’: delegada endossou discurso que culpabiliza vítima
Horas antes de se tornar a primeira vítima de feminicídio de 2025 em Campo Grande, a jornalista deixou registrado nas mensagens para diversas amigas como se sentiu tratada por uma delegada ‘fria e seca’ na delegacia criada justamente para acolher as mulheres em situação de vulnerabilidade.
Segundo ela, a delegada ainda teria se negado a comentar sobre o histórico de agressões do assassino e falou que a vítima “já sabia porque ele mesmo havia falado de agressões”.
Em tom de defesa prévia, na coletiva sobre o feminicídio de Vanessa, a delegada Eliane Benicasa chegou a admitir que faltou agilidade, mas jogou a culpa toda para o judiciário.
“Não foi falta de agilidade na prestação do serviço, mas precisamos aprimorar a agilidade, no que diz respeito a trâmites judiciais nas medidas protetivas”, defendeu-se antes mesmo de os áudios virem à tona.
Segundo a delegada, a jornalista teria feito tudo certo, pedindo ajuda, mas “não acreditou que corria perigo com o noivo”. Foi uma forma sutil de, mais uma vez, culpar a vítima.
“Tudo protege o cara”: sensação da vítima ao deixar a Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande
No entanto, outra delegada que já atuou diretamente no combate à violência contra mulheres ouvida pela reportagem considerou gravíssimas as revelações.
“A frase, no tom como Vanessa relata, indica erros graves e inadmissíveis na conduta de uma delegada de polícia. Puxa. Ela é a servidora que deveria ser especializada na acolhida de vítimas mulheres na situação de vulnerabilidade que a violência doméstica configura. Falando como Vanessa contou que ela falou, ela sutilmente leva as mulheres a se sentirem sob julgamento”, explica.
“O jeito que ela me tratou foi bem prolixo. Bem fria e seca”, resumiu Vanessa Ricarte.
“Eu, que tenho instrução, escolaridade, fui tratada desta maneira. Imagina uma mulher vulnerável… essas que são mortas”, disse a jornalista em mensagem a uma amiga. “Tudo protege o cara, o agressor”, resumiu.
Poucas horas depois, ao tentar entrar na própria casa, sem escolta policial, Vanessa foi atingida no coração por três facadas desferidas por Caio Nascimento. O pedido de medida protetiva, mais uma vez, não adiantou para nada.
Governo promete agir agora, mas denúncias contra Deam são antigas
“Não adianta nada o governador ficar fazendo foto e discurso sobre proteção às mulheres, enquanto mantém na ponta do atendimento pessoas descomprometidas com a causa. Assim, as mulheres continuarão sendo mortas em Mato Grosso do Sul”, pondera servidora pública que ouviu os áudios e se revoltou com as revelações.
Logo após os áudios de Vanessa Ricarte serem divulgados pela equipe de jornalismo do SBT MS na tarde desta sexta-feira (14), o delegado-geral da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, Lupérsio Degerone Lucio, gravou um vídeo afirmando que a polícia ‘sempre estará ao lado da vítima’.
Além da frase pronta de efeito, o DGPC disse que foi instaurado procedimento para apurar ‘possíveis falhas no atendimento’.
No entanto, essas falhas no atendimento da Delegacia de Atendimento à Mulher não são novidade.
Há três meses, o Jornal Midiamax noticiou o relato de mulheres vítimas de violência doméstica que aguardaram cerca de 14 horas por atendimento na DEAM de Campo Grande.
Ao invés de medidas para resolver os problemas apontados, repórteres passaram a ser hostilizadas na delegacia, que chegou a dificultar o acesso dos jornalistas a partes do prédio público.
“Homens ‘cagando’ e andando para Deam enquanto nos matam”
A situação se assemelha ao caso de uma campo-grandense, vítima de agressões pelo ex-companheiro há 30 dias. No dia 13 de janeiro, a mulher buscou a Deam, registrou boletim de ocorrência, pediu por medidas protetivas, mas até esta quinta-feira (13) não teve a medida confirmada.
Na ocasião, a vítima contou que o ex – na época, monitorado por tornozeleira eletrônica em vista de outras agressões – a agrediu na casa do sogro. Assim, ela precisou ir até uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), devido à gravidade dos ferimentos.
Na manhã seguinte, policiais prenderam e encaminharam o autor para a Deam, junto com a vítima. Segundo a mulher, mesmo depois de apanhar e passar uma noite de terror, somente conseguiu registrar o boletim de ocorrência e deixar a Casa da Mulher Brasileira no começo da tarde.
Liberados da Deam no mesmo horário
Para piorar, o homem que a espancou e mandou para uma UPA foi liberado da Deam no mesmo horário que a vítima. Assim, ao chegar em casa direto da Delegacia, a mulher apanhou novamente.
Segundo a vítima, é revoltante o fato de que, mesmo passando cerca de oito horas esperando a boa vontade dos servidores na Deam após o primeiro atendimento, o autor foi liberado junto com ela.
Outras campo-grandenses que procuram apoio na Deam reclamam que apesar do registro da ocorrência, não recebem nenhum registro sobre os fatos.
“A gente vai lá, passa humilhação contando que apanhou, porque tem umas policiais que parecem que tem ódio de estar atendendo as mulheres, e sai de lá de mão abanando, esperando apanhar mais ou ser morta”, conclui uma das vítimas.
Assim, o clima de desamparo total para as mulheres vítimas de violência doméstica acaba favorecendo os agressores.
“Vou resumir pro senhor, com perdão da expressão: esses homens estão cagando e andando para Deam enquanto nos matam. É isso. Essa Casa da Mulher Brasileira não salva uma sequer. Se eles quiserem, matam mesmo”, revolta-se idosa que presenciou o martírio de uma neta ao precisar de ajuda para escapar de um perseguidor.
Sem amparo, a jovem teve que fugir de MS. “Até hoje nem o papel da medida protetiva conseguimos. E o agressor tá por aí rindo da polícia e da justiça e de todos nós. Igualzinho este porcaria que matou essa moça. Minha neta a gente conseguiu mandar pra fora antes, mas se dependesse dessas delegadas, podia ser ela”, conclui a avó.
Onde tentar ajuda em MS
Em Campo Grande, a Casa da Mulher Brasileira está localizada na Rua Brasília, s/n, no Jardim Imá, 24 horas por dia, inclusive aos finais de semana.
Além da DEAM, funcionam na Casa da Mulher Brasileira a Defensoria Pública; o Ministério Público; a Vara Judicial de Medidas Protetivas; atendimento social e psicológico; alojamento; espaço de cuidado das crianças – brinquedoteca; Patrulha Maria da Penha; e Guarda Municipal. É possível ligar para 153.
Existem ainda dois números para contato: 180, que garante o anonimato de quem liga, e o 190. Importante lembrar que a Central de Atendimento à Mulher – 180, é um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres em todo o Brasil, mas não serve para emergências.
As ligações para o número 180 podem ser feitas por telefone móvel ou fixo, particular ou público. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, inclusive durante os finais de semana e feriados, já que a violência contra a mulher é um problema sério no Brasil.
Já no Promuse, o número de telefone para ligações e mensagens via WhatsApp é o (67) 99180-0542.
Confira a localização das DAMs, no interior, clicando aqui. Elas estão localizadas nos municípios de Aquidauana, Bataguassu, Corumbá, Coxim, Dourados, Fátima do Sul, Jardim, Naviraí, Nova Andradina, Paranaíba, Ponta Porã e Três Lagoas.
Quando a Polícia Civil atua com deszelo, má vontade ou comete erros, é possível denunciar diretamente na Corregedoria da Polícia Civil de MS pelo telefone: (67) 3314-1896 ou no GACEP (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial), do MPMS, pelos telefones (67) 3316-2836, (67) 3316-2837 e (67) 9321-3931.
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