Vidas perdidas, famílias que choram, filhos que perderam as mães, mães que perderam as filhas partirem. As estatísticas oficiais revelam que 32 mulheres tiveram vidas interrompidas por crimes de feminicídio, das quais 8 ocorreram em Campo Grande. Os números também revelam que os feminicídios sofreram redução comparado a 2022, quando 42 mulheres morreram no Estado, 12 na Capital. A estatística, contudo, continua expressiva e reforça a necessidade de políticas específicas para esse grupo social.;

O assunto é repetitivo, mas de grande importância para evitar que outras mulheres se tornem vítimas. O feminicídio é um crime de ódio que transparece de forma muito agressiva para toda a sociedade, seja pelo o local de crime, o modus operandi, como as coisas acontecem, os motivos banais. Isso fica caracterizado evidentemente em todos os oito feminicídios consumados neste ano em Campo Grande, conforme explicou a delegada titular da Deam (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher) Elaine Benicasa.

Delegada titular da Deam, Elaine Benicasa. (Alicce Rodrigues, Midiamax)

“É algo batido? sim. Tem que ser algo batido. Repetitivo, para que seja inserido de uma forma tão profunda a ponto que um adolescente quando se vê quase que praticando uma violência contra mulher se sinta constrangido de tanto ouvir, de tanto a mãe falar, de tanto a escola falar. Há informação!”, afirma, acreditando ainda que deveriam incluir na grade das crianças e adolescentes o conceito, o estudo da lei, pois ali que se forma o caráter.

Benicasa faz um balanço sobre o perfil dos autores: muitos deles dizem não se recordam do que aconteceu no momento das agressões. Em vários casos, inclusive no último feminicídio, o autor se recorda de apenas uma facada. A vítima, contudo, foi assassinada com 8 golpes.

No perfil das vítimas que foram mortas pelos parceiros, há uma característica em comum: a vontade de romper o relacionamento. Já entre os autores, a delegada afirma que é comum, nas oitivas, dizerem que amavam as mulheres que mataram.

“A maioria se demonstra arrependida e repetem a frase: ‘Eu amava aquela mulher’. É um perfil padrão ter esse discurso no pós-prisão, em uma conversa informal com os autores”, detalha.

“[No caso mais recente em Campo Grande], o próprio convivente é um senhor, trabalhador, um bom filho, bom amigo de final de semana, mas que em quatro paredes, se demonstra um monstro. O que também é muito comum é esse relacionamento abusivo por trás de todos eles. Não é da noite para o dia. Não foi aquele dia que ele decidiu ter ciume, ter controle e tirar a vida daquela mulher. Quando a gente adentra na vida privada de alguém, sabemos tranquilamente que era um relacionamento de humilhação, controlava, perseguia, agredia fisicamente”, acrescenta.

A principal dificuldade em combater os crimes de violência contra a mulher, além de tentar reeducar os homens, é que em muitos casos a própria vítima não percebe estar em um relacionamento abusivo. Isso acontece, segundo a delegada, porque muitas vezes romantizam esse relacionamento e não se autovalorizam.

“Uma das principais prevenções é a mulher se autovalorizar, é ela saber que tipo de relacionamento que ela quer ter ao lado, porque quando ela tem essa noção, ela já diz ‘não’ a qualquer tipo de homem, namoro, ficante, que tenha atos dessa forma”, reforça.

Relembre os 8 casos de mulheres mortas por companheiros em Campo Grande que entraram para as estatísticas a seguir.

8 feminicídios na Capital somente em Campo Grande

  • Claudineia Brito da Silva, de 49 anos

Claudineia foi a primeira vítima do feminicídio em Campo Grande neste ano. Ela morreu no dia 13 de janeiro, após ser atingida no pescoço por uma facada desferida pelo marido no Bairro São Francisco. A mulher vivia com o autor há 4 anos.

No dia do crime eles discutiram e Claudineia foi ferida quando estava em cima da cama. O homem, preso, estava foragido por um processo de violência doméstica. Hércules José Andrade Soares, de 41 anos, foi julgado e condenado a 17 anos de prisão pelo feminicídio qualificado pelo motivo fútil e meio cruel.

  • Albina Freitas Ribas Luiz Gonçalves, de 49 anos

Um dia antes de completar 50 anos, Albina foi assassinada pelo ex-marido em um crime brutal e chocante, com várias facadas a luz do dia, em via pública, no Bairro Nova Lima, em Campo Grande. O crime aconteceu no dia 28 de fevereiro. Ela trabalhava em uma escola na região, e seguia para o trabalho, quando foi perseguida pelo homem que iniciou uma discussão. Em certo momento, ele volta e desfere diversas facadas na mulher, na calçada de um estabelecimento. Ela foi socorrida, mas não resistiu.

Já o autor, Jair Paulino da Silva, de 52 anos, morreu exatamente dois meses após o crime, quando passou mal no Presídio de Regime Fechado da Gameleira II. Ele chegou a ser socorrido, teve pressão, saturação e batimentos cardíacos aferidos, sendo constatado que precisava ser encaminhado até unidade hospitalar, mas morreu.

“Nós pensamos naquela frase, ‘Em briga de marido e mulher DEVE SIM se meter a colher’ e nessa ocasião ninguém fez nada. Um carro saindo do estacionamento, vendedores ali, e ela morreu com facadas. Poderia ter sido evitado? Com certeza!. A gente vê muitas situações que a população se une e evita muitos crimes, então poderia ter sido o caso assim”, lembrou a delegada, ao relatar o crime à reportagem.

  • Karolina Silva Pereira, de 22 anos

Era uma pessoa apaixonada por cuidar de pessoas, e por isso, teria feito um curso técnico de enfermagem se formando no dia 13 de abril deste ano. Ela estava trabalhando na pizzaria, como um ‘bico’, para pagar o Coren (Conselho Regional de Enfermagem). Karolina ainda trabalhava de dia como recepcionista.

Karol teve a vida interrompida no dia 30 de abril. O amigo dela, Luan Roberto de Oliveira, 24, também morreu, após os dois serem atingidos por tiros disparados pelo ex-namorado da jovem, Messias Cordeiro da Silva, que foi preso e aguarda julgamento

Luan morreu no local, já Karol teve morte cerebral declarada no dia 2 de abril. O ex foi preso depois de ter ajuda de familiares para fugir e se esconder. À polícia ele alegou que tinha esperanças de reatar o namoro com a jovem e ficou descontrolado de ciúmes quando a viu na companhia de Luan.

O autor já estava seguindo a vítima a alguns dias. Com medo, ela havia pedido ajuda para o amigo a acompanhar até em casa. Messias então a viu com o rapaz, saiu de trás de uma árvore e atirou nos dois. Depois fugiu. O pai do autor chegou a ser preso, pois durante buscas pelo assassino no sítio do pai, a polícia encontrou uma arma modificada. Os pais de Karol estavam em casa e apenas escutaram os disparos. 

Sobre esse caso, a delegada Benicasa lembrou que a mãe de Karol chegou a orientá-la a ir à delegacia. “Em depoimento, a mãe de Karolina disse que semanas antes, ela a avisou registrar ocorrência, mas mais uma vez, mais de 90% dos feminicídios não possuem medida protetiva, nem boletim de ocorrência registrado e o caso da Karolina não era diferente. Ela falou para a mãe que o autor era incapaz de fazer qualquer mal contra ela”, afirmou.

  • Brenda Possidonio de Oliveira, de 25 anos

Com um filho de 7 anos, Brenda foi morta a facadas pelo namorado na Vila Nathalia, em Campo Grande. A criança acordou com os gritos de socorro da mãe e foi acolhida por vizinhos após o crime. O menino ainda teria corrido atrás do autor e dito: “você matou minha mãe”. A criança já havia perdido o pai para a Covid e foi entregue para a avó.

Uma vizinha contou ao Jornal Midiamax, na época, que o casal sempre brigava e ouvia os gritos, que o relacionamento era de idas e vindas. Brenda morava há pouco mais de 1 ano na residência e o autor sempre estava na casa.

O autor teria contado em mensagem para a mãe de Brenda, que a briga entre o casal iniciou-se por causa de uma discussão por ciúmes e que ele golpeou Brenda no pescoço para se defender. Ao ver Brenda com a faca de serra, pegou uma faca maior e golpeou a jovem no pescoço que morreu na frente de sua casa.

O casal estaria junto há pelo menos quatro meses e nenhum boletim de ocorrência de violência doméstica havia sido registrado por Brenda, mas o autor tem passagens por furto e por agredir uma ex-companheira.

  • Natali Gabrieli da Silva de Souza, de 19 anos

Com a filha de 1 ano no colo, Natali foi esfaqueada pelo menos 15 vezes pelo marido em casa, no Parque do Lageado. Ela correu até a calçada da casa, onde caiu morta.

“O que chama atenção é que a vítima não tinha nenhum boletim de ocorrência registrado, inclusive nem de violência doméstica”, disse as delegadas Elaine Benicasa e Analu Lacerda Ferraz da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher)

O homem, de 30 anos, foi encontrado na casa da irmã, próximo do local. Segundo a polícia, antes das facadas o autor iniciou uma série de agressões, que a deixou desfigurada. O casal estava bebendo na residência. A briga começou por ciúmes quando o autor quebrou o celular da vítima e desferiu as facadas contra ela.

Segundo os familiares da vítima, ela teve os cabelos cortados e foi acertada por uma garrafa na cabeça ainda dentro de casa. Após isso, foi esfaqueada com a bebê no colo. Natalie correu para fora de casa, quando colocou a criança de um ano na grama e seguiu para pedir ajuda na frente de casa. Contudo, os ferimentos foram tão graves que a jovem acabou morrendo em frente à residência.

  • Dantielle Vilalba Acunha, de 29 anos

Vítima e autor, Danilo Peixoto da Silva, de 19 anos, foram encontrados mortos, ambos com um tiro na cabeça dentro de casa no Bairro Los Angeles, no dia 8 de agosto. A avó do rapaz foi quem os encontrou. À polícia, ela, que mora nos fundos da residência, contou que teria idos chamas os dois para tomar café da manhã. Disse ainda que eles estavam separados, mas ainda viviam na mesma casa. No quarto foram encontradas porções de drogas e a arma usada no crime.

  • Gabriela de Oliveira, 18 anos

Assassinada com 6 tiros após pedir carona, justamente por estar com medo, Gabriela morreu depois de ameaçar contar para a atual de seu ex ‘ficante’ sobre as traições. Anderson, conhecido como ‘Maconha’, foi preso e a polícia busca por ‘LK’.

A jovem se relacionava com ‘Maconha’ e teria ameaçado contar para a mulher dele sobre as traições. ‘Maconha’ conhecia ‘LK’ com quem anteriormente Gabriela teria se relacionado antes de Anderson, e após ela contar sobre as traições para a mulher do autor, os dois homens se juntaram e agrediram Gabriela, que chegou a chamar a polícia, mas eles fugiram antes da chegada dos militares. 

Após chamar a polícia, os dois saíram atrás de Gabriela, que havia pedido a carona porque estava com medo dos autores. ‘LK’ foi quem fez os disparos contra Gabriela. ‘Maconha’ pilotava a motocicleta na hora do crime. 

  • Gilka Simone Nunes, de 47 anos

Em processo de separação há 5 meses, a mulher foi assassinada por quem conviveu por cinco anos. O crime foi descoberto quando uma equipe da CCR-MS Via foi quem o avistou na rodovia perambulando pela BR-163 com marcas de sangue nas mãos, roupa e com a faca usada no crime, e acionou a PRF (Polícia Rodoviária Federal).

Após ser abordado, a polícia foi até a casa onde encontraram Gilka já sem vida. Ela foi morta a facadas na Vila Moreninha III, no dia 4 de dezembro.

À polícia, o assassino contou que o casal brigava constantemente porque um parente da mulher seria usuário de drogas, o que causaria transtornos no casamento.

Esse parente teria passagem por tráfico de drogas e seria o motivo de brigas constantes. “Na noite de ontem [dia do crime], mais uma vez eles brigaram por este motivo, e o suspeito teria dado um tapa no rosto de Gilka”, disse a delegada.

A vítima estava cortando uma laranja, quando avanço com a faca e acabou atingindo o ex-companheiro, acertando-o no braço. Após isso, o homem puxou um punhal que guardava embaixo do travesseiro e desferiu vários golpes em Gilka, segundo relatou à polícia. Ele disse em depoimento que foi até a rodovia de bicicleta no intuito de se jogar contra um veículo, porém foi detido pela PRF (Polícia Rodoviária Federal).

(Marcos Erminio, Midiamax)

Prevenção e rede de apoio

A delegada chegou a dar um exemplo que ocorreu com uma colega. A mulher havia conhecido um rapaz e na primeira semana durante um churrasco na casa de um amigo, a mulher estava mexendo em suas redes sociais, quando o homem arrancou o aparelho da mão dela e colocou em uma mesa com a tela virada para baixo.

“Isso não é normal. Ela já rompeu o relacionamento ali na hora. Ou seja em uma semana, você não tem nenhuma liberdade com aquela pessoa e ela retira o celular da sua mão, percebe-se já um desequilíbrio, que na maioria das vezes vai se agravando. São homens que sim tem ainda essa visão machista de como a mulher deve se comportar do seu lado, como ela deve falar, como ele acha que dela deveria se vestir, o controle financeiro muitas vezes”, explicou.

São esses pequenos, médios e grandes detalhes que a mulher, se ela sabe o que ela quer para ela quanto a relacionamento, consegue identificar.

Agora se a mulher ainda não consegue identificar é importante a rede de apoio, rede de amigas, familiares darem um conselho, um toque. “Mas é muito comum esses relacionamentos que venham mais para frente virarem atos criminosos, estar por de trás deles essas ações de controle excessivo”.

(Reprodução portal TJMS)

Casa da Mulher Brasileira

Na Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande há diversos serviços de atendimento à mulher. Abriga a primeira Vara Especializada em Medidas Protetivas e Execução de Penas do país, Defensoria Pública, Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, há ainda o setor psicossocial, e até abrigo para mulheres com ou sem filhos que correm risco.

A Casa fica na Rua Brasília no Jardim Imá, próximo ao Aeroporto Internacional de Campo Grande.

Vale lembrar que a mulher pode solicitar medida protetiva mesmo sem ter feito registro do boletim de ocorrência, inclusive, o pedido pode ser solicitado online também, no site do Tribunal de Justiça.

(Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)