Recém-criada, lei da violência psicológica já supera 20 ocorrências em MS e tendência é aumentar

Falta de tipificação penal dificultava denúncias de danos psicológicos causados por parceiros e ex-parceiros em MS

Ouvir Notícia Pausar Notícia
Compartilhar
Registros anteriores eram feitos como injúria ou calúnia.
Registros anteriores eram feitos como injúria ou calúnia.

Quase duas décadas de casamento, e o relacionamento de Teresa e Almir (nomes fictícios) chegou ao fim. Em 16 anos convivendo maritalmente, o casal – ambos de 48 anos – teve dois filhos. Porém, a descoberta de um caso extraconjugal de Almir fez com que Teresa decidisse por terminar a relação, há cerca de um ano. O problema é que, com o término, Teresa viu-se em meio a um turbilhão de emoções ocasionadas por retaliações do ex-marido.

O relato de Teresa é que Almir bloqueou o acesso à conta conjunta do casal. Ela, que não tinha trabalho formal por ter se dedicado a cuidar dos filhos, ficou sem recursos financeiros até para se alimentar. A partir disso, Teresa recorreu a empréstimos e criou dívidas que antes não tinha. Somente após oito meses de separação é que um valor de pensão foi judicialmente arbitrado.

Separados, Almir passou a conviver com outra mulher. Ambos tinham guarda compartilhada dos filhos, com Almir ficando com as crianças aos fins de semana. No fim do mês de julho, ele foi até a casa de Teresa buscar os filhos. Na ocasião, vociferou contra a ex-esposa, acusando-a de explorá-lo por não ter emprego.

“Ele teria dito para um dos filhos do casal fazer como a mãe, ou seja: casar-se com uma pessoa rica, dar o golpe, e se separar, ficando com 50% de tudo”, afirma a delegada Fernanda Piovano, plantonista que atendeu à ocorrência.

Este foi o primeiro caso formalizado de violência psicológica em Mato Grosso do Sul, logo após a criação desta tipificação criminal, em 29 de julho deste ano. Como esse, outros 22 casos semelhantes já foram registrados até a última terça-feira (24). Trata-se de uma demanda reprimida e, portanto, registro de ocorrências criminais como essas só tendem a aumentar.

Isso porque, assim como Teresa, milhares de outras mulheres são diariamente vítimas da violência psicológica, inclusive após o término dos relacionamentos. E também porque, assim como Almir, milhares de outros homens sentiam-se confortáveis pela impunidade a cercear até a saúde emocional de parceiras e ex-parceiras.

Violência que deixa marcas invisíveis, que causa dores extrafísicas, diferente de hematomas decorrentes da violência doméstica clássica. Agora, a força não é medida em socos e tapas, mas na capacidade de controlar e prejudicar por meio de atos e palavras. Esta é uma descrição possível da violência psicológica, ato que agora é crime, conforme descrito na recém-criada Lei 14.188/2021.

Esta nova tipificação penal foi sancionada durante a pandemia de Covid-19 e amplia os casos de violência contra a mulher já previstos na Lei Maria da Penha, num contexto em que a necessidade de isolamento social e distanciamentos contribuíram para o silenciamento de violências em ambiente familiar.

O novo dispositivo determina pena de 6 meses a 2 anos de prisão a quem causar dano emocional a uma mulher, e a quem lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento. Ou, ainda, a quem vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.

[Colocar ALT]
Elaine Benicasa, delegada titular da Deam (Foto: Henrique Arakaki/ Midiamax)

Violência comum, mas sem status de crime

Conforme a delegada Elaine Benicasa, titular da Deam (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher), a inclusão deste crime no escopo da Lei Maria da Penha preenche uma lacuna do direito penal. Isso porque, antes da sanção, os registros anteriores eram incluídos como injúria ou calúnia. Além disso, a lei também permite incluir a violência psicológica como motivo para que se afaste o agressor da convivência com a vítima, por meio de medidas protetivas.

Segundo a legislação, esse afastamento imediato pode ser feito por juiz, delegado ou policial (quando não houver delegado). Antes, isso só podia ser feito em caso de risco à integridade física da mulher, como lesão corporal ou vias de fato.

“A Lei Maria da Penha não trazia normas penais incriminadoras, com exceção de um caso, que é o de descumprimento de medida protetiva. O que ela trazia eram os tipos de violência: física, patrimonial e sexual”, explica Benicasa.

A delegada relata que, na prática, era comum o atendimento a mulheres com relatos de violências tais quais como descritas na nova lei, mas que não encontravam correspondência no código penal.

“Muitas vezes, as mulheres vinham à delegacia e relatavam exatamente essa sensação de humilhação, de descaso, com xingamentos constantes por parte dos parceiros e ex-parceiros. Mas, na maioria dos casos, não havia tipificação, justamente porque não havia um crime previsto”, explica.

Benicasa acrescenta que o risco de abalo ou dano psicológico já era detectado pela palavra da própria vítima e, geralmente, eram reforçados pelo depoimento de testemunhas e até de policiais militares que atendiam as ocorrências.

“Contudo, algumas doutrinas jurídicas [interpretações das leis para casos em que não há um código expresso sobre aquela situação] afirmam que é necessário laudo médico e perícia para que seja comprovada a violência psicológica. Outras já dizem que é suficiente o depoimento da vítima e de testemunhas. Então, ainda temos dificuldade de comprovar”, relata a delegada sobre os desafios a serem enfrentados com a nova tipificação.

Nesse contexto, ela destaca que a pena de 6 meses a dois anos caracteriza crime de menor potencial ofensivo e explica que, em tese, deveria ser possível aplicar, aos agressores, os benefícios da Lei 9.099 – criada para diminuir a judicialização de casos potencialmente solucionáveis em juizados de pequenas. Contudo, a Lei Maria da Penha estabelece proibição desses benefícios a crimes praticados no ambiente de violência doméstica e familiar, como é o caso, agora, da violência psicológica.

“Os benefícios seriam transação penal e suspensão condicional do processo. Além disso, prevê autuação de prisão, concessão de medida protetiva e representação por prisão preventiva”.

A delegada explica que, mesmo quando o crime não for praticado nesse contexto, os benefícios poderão ser aplicados. Como exemplo, a titular da Deam cita que a lei poderá ser aplicada contra colegas de trabalho e vizinhos, quando se tratem de agressores homens e vítimas mulheres.

[Colocar ALT]
Casa da Mulher Brasileira oferece auxílio às vítimas de violência doméstica. (Foto: Henrique Arakaki/ Midiamax)

Sinais de alerta

Apesar de ser difícil a identificação da violência psicológica, existem sinais que podem ajudar a perceber quando os limites do relacionamento são ultrapassados.

“A violência psicológica é difícil de ser identificada, pois o dano não é físico, mas emocional. Ou seja: a maioria das vítimas sequer percebe a violência sofrida”, detalha Clarissa Carlotto, Promotora de Justiça titular da 72ª Promotoria de Justiça do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), que funciona na Casa da Mulher Brasileira.

Carlotto acrescenta que, muitas vezes, as vítimas tentam buscar justificativas para o comportamento dos agressores, seja por estresse, por traços comportamentais da vítima. A lista pode ser enorme.

“Para as pessoas do convívio próximo, é ainda mais difícil perceber o sofrimento da vítima, uma vez que é preciso estar atento aos comportamentos”, afirma a promotora.

Com o passar do tempo, os reflexos dessa pressão psicológica podem fazer com que a vítima perca sua autoestima, a ponto de não querer sair de casa.

“[A vítima] se fecha, não demonstra interesse em manter contato com o mundo exterior, chora… Esses sinais são bem importantes para perceber que algo está errado”, alerta Carlotto.

Desta forma, é comum que a violência psicológica desencadeie doenças como ansiedade, depressão e síndrome do pânico, cujos comportamentos de ataques mais comuns estão descritos abaixo:

Registros em Mato Grosso do Sul

O primeiro caso de violência psicológica após a criação da Lei 14.188, que abre a reportagem, foi registrado na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) no dia 1º de agosto, três dias após a inclusão no Código Penal e descreve um caso clássico de violência psicológica, percebido em diversos estudos.

Um deles é um levantamento realizado pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), publicado em 2019. O estudo apresenta análises de profissionais que atuam no atendimento às vítimas de violência doméstica, como a assistente social Vanessa Vieira, da Coordenadoria Estadual da Mulher.

Coordenadora de Políticas Judiciárias de Prevenção, Vieira resume o íngreme terreno histórico no qual as mulheres estão inseridas na sociedade. “Ao longo da história, a mulher e os filhos foram considerados parte do patrimônio do patriarca, sendo desprezados suas vontades e desejos”.

O mesmo estudo também aborda dados da extrema consumação da violência contra mulher – o feminicídio. Nesse contexto, a juíza da 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, Jacqueline Machado, destaca que a Lei Maria da Penha “é reconhecida como uma das três leis mais modernas do mundo no combate à violência contra a mulher”.

Mais do mesmo?

A efetividade da aplicação das leis não é consenso. “A gente precisa pensar uma forma de proteção efetiva para as mulheres, e essa proteção não passa pelo direito penal”. A frase expressa a opinião contrária à criação de uma nova tipificação da Lei Maria da Penha, dita pelo advogado João Victor Cyrino, que atua no ramo de direito penal em Mato Grosso do Sul. Para ele, o crescimento de novos crimes na legislação brasileira não encontra reflexos reais na diminuição da prática dos delitos.

“No direito penal, o objetivo não é reduzir a conduta, e sim prender mais gente. O que vemos são mulheres indo até as delegacias, pedindo medidas protetivas contra o agressor. Mas, não vemos uma real diminuição da violência contra a mulher. Não tem nenhuma conduta que passou a ser criminalizada que diminuiu”, opina.

A declaração de Cyrino é um alerta sobre a criação de tipificações criminais, mas sem a efetivação de políticas públicas que previnam esses crimes, de forma geral. O advogado pontua a necessidade de que se mudem atitudes estruturais, como o machismo, bem como se promova a valorização da saúde da mulher, para que ela seja menos suscetível a esse tipo de dano. Ele também defende práticas educativas para os direitos humanos. “É preciso uma proteção mais efetiva para que ela consiga sair desse ciclo [de violência] com mais facilidade”, afirma.

Todavia, os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, que levam em consideração a pandemia de Covid-19, trazem percepção da redução de 7,6% no número de casos absolutos de lesão corporal dolosa – violência doméstica, em Mato Grosso do Sul. No primeiro ano da pandemia de coronavírus no Brasil, MS registrou 4.778 casos, contra 5.111 em 2019.

As ameaças a vítimas mulheres também tiveram redução de 13,9% durante a pandemia, segundo o Anuário. Do total de 17.063 em 2019, o número foi para 14.865 em 2020. O total de medidas protetivas concedidas nesse período também caiu 3,1%: de 9.937, em 2019, para 9.734, em 2020. A redução também foi percebida nos acionamentos da Polícia Militar através do número 190, em chamadas de violência doméstica: elas correspondem a 0,8% do total. Apesar do quantitativo parecer pequeno, foram 4.840 ligações, em 2020, e 5.206, em 2019.

Fiscalização

Em Mato Grosso do Sul, vítimas de violência doméstica contam com o Promuse (Programa Mulher Segura), da Polícia Militar. O programa funciona na Capital e em outras 12 cidades do interior, fiscalizando o cumprimento de medidas protetivas, inclusive com visitas frequentes aos domicílios das vítimas encaminhadas ao Programa. Apesar da identificação já feita pelos policiais, em casos de violência psicológica, a falta de uma tipificação também dificultava a criminalização de sinais de interferência nos direitos das mulheres.

“Como a violência psicológica é um dos primeiros sentimentos que as vítimas repassam para nós, percebemos os traumas estabelecidos nas narrativas contadas. Agora, vamos conseguir tipificar através dessa lei, crimes antes classificados como ameaça, injúria, comentários sobre vestimenta da vítima, xingamentos que feriam sua autoestima, entre outros”, afirma a coordenadora do Promuse em Campo Grande, sargento Gizele Guedes.

O Programa possui um espaço na Casa da Mulher Brasileira, na Capital, onde a vítima de violência doméstica é atendida por uma equipe multidisciplinar. O local é o mesmo onde funciona a Deam.

[Colocar ALT]
Policiais do Promuse e, ao centro, a coordenadora do programa na Capital, sargento Gizele. (Foto: Henrique Arakaki/ Midiamax)

Conforme explica a promotora Clarissa Carlotto, a mulher ainda terá acesso ao atendimento jurídico, uma vez que pode ser encaminhada para a Defensoria Pública da Mulher; ao Ministério Público Estadual, que atende vítimas de violência e seus familiares, e fiscaliza o cumprimento das medidas protetivas; e à Funsat (Fundação Social do Trabalho de Campo Grande), para que busque colocação no mercado de trabalho e cursos profissionalizantes. A Casa da Mulher também oferece abrigo temporário a mulheres em situação de vulnerabilidade ou risco.

Como pedir ajuda

Além do Disk Denúncia 180, durante os primeiros meses de pandemia de Covid-19 em Mato Grosso do Sul, a Subsecretaria de Polícias Públicas para Mulheres lançou o programa “Não se cale”. O site possui guias para identificar os tipos de violência e como denunciar. É possível também fazer o pedido de medida protetiva de urgência de forma online, para a Capital. Acesse clicando aqui.

O Programa Promuse, da Polícia Militar, faz monitoramento e proteção de vítimas em situação de violência doméstica, e a equipe conta com policiais mulheres. Confira onde solicitar atendimento na Capital, e os telefones para contato:

CAMPO GRANDE: Av. Florestal, 773 – Coophatrabalho – 5a CIPM, Telefone: 3362-1002 OU Av. Bandeirantes, 1069 – Guanandi – 10º BPM Telefone: 3941-7400

Já para solicitações no interior do Mato Grosso do Sul, acesse todos os endereços clicando aqui.

A Deam, integrada à Casa da Mulher Brasileira, funciona 24h, todos os dias, incluindo finais de semana e feriados. O endereço da delegacia é Rua Brasília, sem número, Bairro Jardim Imá. Com a promulgação da Lei Maria da Penha, a Deam pode expedir medida protetiva de urgência ao juiz no prazo máximo de 48 horas. O telefone para contato é o (67) 2020-1300 e (67) 2020-1319.

As cidades do interior também possuem as DAMs (Delegacias de Atendimento à Mulher), e os endereços e telefones podem ser acessados clicando aqui.

Conteúdos relacionados