Cresce a dependência do Brasil para a China

Apesar das críticas abertas à China terem se tornado quase um mote da política externa brasileira durante os dois primeiros anos de governo do presidente Jair Bolsonaro, a dependência comercial do Brasil em relação ao país asiático bateu recorde no ano passado – e deve ficar ainda maior nos próximos anos. A participação chinesa em […]

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Apesar das críticas abertas à China terem se tornado quase um mote da política externa brasileira durante os dois primeiros anos de governo do presidente Jair Bolsonaro, a dependência comercial do Brasil em relação ao país asiático bateu recorde no ano passado – e deve ficar ainda maior nos próximos anos.

A participação chinesa em tudo que o Brasil vende ao exterior vem crescendo, ano após ano, desde 2015. Mas essa escalada vinha acontecendo em ritmo mais lento: entre 2018 e 2019, por exemplo, essa fatia nas exportações aumentou pouco mais de 1 ponto porcentual. Com a pandemia do novo coronavírus, porém, a participação chinesa explodiu, avançando 4 pontos porcentuais: de pouco mais de um quarto para um terço das exportações, batendo em 32,3% em 2020.

Em um ano, as vendas aos chineses subiram de US$ 63,4 bilhões para US$ 67,8 bilhões (alta de 7%, em termos nominais), segundo dados do antigo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (Mdic), hoje ligado ao Ministério da Economia. E isso se deu enquanto o total das exportações brasileiras caiu de US$ 225,4 bilhões, em 2019, para US$ 209,9 bilhões em 2020, por conta da crise internacional.

Recuperação desigual

Dois fenômenos ajudam a explicar o aumento da dependência em relação à China no ano passado, diz o estrategista do Banco Ourinvest e ex-secretário nacional de Comércio Exterior, Welber Barral. “O Brasil exportou mais carnes para a China, já que a peste suína lá fez crescer a demanda pelo produto, e também subiu a quantidade de outros produtos básicos demandados por eles no segundo semestre.”

A expectativa do Banco Mundial é que o principal parceiro comercial do Brasil tenha crescido 2% no ano passado, enquanto a média mundial deve ser de uma queda de 4,4%.

Como efeito da retomada do país, os chineses voltaram a comprar do mundo, chegando a estocar alimentos, e as vendas de commodities brasileiras começaram a reagir, impulsionando o agronegócio, mesmo em um ano de recessão mundial.

“A China teve um desempenho muito bom no quarto trimestre de 2020. É um dos poucos países que devem ter crescido no ano, enquanto nos EUA, o número de mortos é assombroso e a pandemia segue descontrolada”, avalia o coordenador de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), Armando Castelar.

Ele lembra que o apetite chinês pelas commodities de que o Brasil depende para ter vantagem nas suas exportações – como a soja e o minério de ferro – deve crescer também este ano, dado que as projeções do Banco Mundial estimam uma alta de 7,9% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e alguns analistas já projetam crescimento de 9%.

Enquanto isso, a economia americana, o segundo principal destino das exportações brasileiras, pode crescer 6%, caso o presidente Joe Biden consiga colocar em prática seu pacote de estímulos de US$ 1,9 trilhão. “A maior parte do crescimento da demanda pelos produtos brasileiros, portanto, se dará pela China e a nossa dependência vai aumentar”, reforça Castelar.

Relação conturbada

Parte dos atritos do próprio presidente Bolsonaro, do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e de aliados com os chineses se deve pelo alinhamento do governo brasileiro com o então presidente norte-americano Donald Trump, que não conseguiu conquistar um segundo mandato no ano passado.

Em algumas dessas demonstrações, Bolsonaro chamou de “vachina” a vacina fabricada pelo Instituto Butantan, em parceria com o laboratório chinês Sinovac, e desacreditou diversas vezes o imunizante contra o coronavírus. As declarações dos bolsonaristas chegaram a gerar reações irritadas da diplomacia chinesa ao longo do ano.

Enquanto os chineses ganharam terreno nas vendas brasileiras ao exterior, no entanto, as exportações para os Estados Unidos caíram 27,6%, de US$ 29,7 bilhões em 2019 para US$ 21,5 bilhões em 2020, afetadas pelo tranco no comércio internacional durante a pandemia.

“Apesar dos atritos com o Brasil, a China é pragmática e se planeja para o longo prazo. Eles sabem que, da mesma forma que Trump passou, Bolsonaro também vai passar”, diz Barral.

No fim de janeiro, temendo que as rusgas atrasassem o envio da matéria prima para vacinas, o presidente fez um giro em seu discurso e afagou o governo chinês em suas redes sociais, agradecendo a autorização para a vinda dos insumos.

“A revisão da postura do Brasil tem acontecido. É verdade que forçada pela necessidade de importar os insumos para a fabricação das vacinas contra a covid-19, mas é bom que o governo reveja sua postura e ponha os interesses do País em primeiro lugar”, completa Barral.

“De fato, a economia chinesa voltou ao patamar anterior à pandemia e é hoje a mais dinâmica. É a que entregou crescimento e, por isso, é natural que demande mais”, diz a economista Fabiana D’atri, coordenadora de economia do Bradesco e que também é diretora econômica do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).

A China, acrescenta Fabiana, abriu sua economia antes, conseguiu atender a sua própria demanda e depois a procura mundial por bens ligados à pandemia – máscaras, luvas etc. – e depois toda a parte de equipamentos usados para as atividades de home office, principalmente equipamentos eletrônicos, celular, cabos e fones

 

Os analistas avaliam que a China se beneficiou no ano passado em duas pontas: primeiro, porque reconheceu e confirmou rapidamente a pandemia. Em seguida, por ter gerado os estímulos para responder à crise e ainda ganhar mercado. O Brasil, por sua vez, entrou na tendência global de demandar bens ligados à pandemia, seja eles na saúde ou tecnologia.

“Não é à toa que o valor do frete da China também explodiu. Mais uma vez, o que a gente pode perceber não é o Brasil ditando a sua exposição, mas a China ditando o ritmo não só do Brasil, mas do mundo inteiro”, avalia Fabiana.

 

Ex-diplomatas defendem pragmatismo

Vai ser difícil para o governo do presidente Jair Bolsonaro manter o discurso ideológico fortemente ‘antichina’, que marcou a primeira metade do seu mandato, se quiser que o Brasil evite atritos ainda mais graves com seu principal parceiro comercial. Sob condição de anonimato, um diplomata do Itamaraty que já serviu ao País em Pequim revelou que o discurso de representantes e apoiadores do governo Bolsonaro contra a China virou motivo de piada entre membros de outras representações diplomáticas, sobretudo em um momento em que o País depende mais do comércio com os chineses.

“É como se o dono de uma loja cheia de dívidas resolvesse, sem motivo aparente, ofender seu principal freguês. Iria à falência em pouco tempo.” E a opinião não é isolada: embaixador na China entre 1989 e 1992, Roberto Abdenur falou ao Estadão que a relação entre os dois países é mais de parceria do que de dependência, mas o governo brasileiro precisa reverter a “destruição” da política externa provocada desde 2019.

Já o representante do Brasil em Pequim de 2004 a 2008, Luiz Augusto de Castro Neves, aposta no pragmatismo chinês para contornar as tensões com Bolsonaro e diz que as negociações recentes de autoridades chinesas diretamente com governadores, em vez do Itamaraty, é parte da nova lógica internacional.

 

‘Houve uma destruição da política externa brasileira’

O saldo dos dois primeiros anos de governo Bolsonaro nas relações exteriores é destrutivo, avalia o ex-embaixador na China Roberto Abdenur. Na entrevista a seguir, o ex-diplomata, que também já representou o Brasil em Washington, ressalta que a postura de “subserviência” do governo brasileiro em relação ao ex-presidente americano Donald Trump foi ruim para o País sob diferentes aspectos.

 

  • É possível classificar a relação atual do Brasil com a China como uma dependência comercial?

A China despontou como parceiro comercial brasileiro, graças à imensa demanda por commodities, mas não creio que o Brasil seja dependente deles, no sentido de que eles não têm poder para ditar rumos ao governo brasileiro, assim como não éramos dependentes dos Estados Unidos, quando o peso deles era maior na balança brasileira.

 

  • O que temos é uma parceria?

Temos uma parceria estratégica, que ajudei a lançar quando era embaixador em Pequim, até o início da década de 1990. De lá para cá, isso floresceu, graças ao extraordinário crescimento da China. Na época, já via o avanço chinês com otimismo, mas não imaginei que eles fossem sustentar esse crescimento por quase 30 anos, e que o país se transformaria em uma potência econômica, comercial, militar e tecnológica.

 

  • Como definir a política externa brasileira no atual governo?

O que houve nos dois anos de Bolsonaro é que o Brasil não teve, a rigor, uma política externa. Houve uma destruição da diplomacia. As coisas de que falam o chanceler, Ernesto Araújo, e os assessores da ala ideológica são devaneios, uma nuvem de teorias da conspiração. Chegamos a considerar as próprias Nações Unidas algo indesejável. Nos tornamos o único país do mundo que ataca o multilateralismo.

 

  • O saldo da relação muito próxima entre Bolsonaro e Trump é negativo para o Brasil, portanto?

No ano passado, houve um forte encolhimento do comércio com os EUA, muito por conta da pandemia, mas também por protecionismo. O ex-presidente Donald Trump impôs tarifas abusivas sobre aço, alumínio e etanol brasileiros. O comércio foi afetado, apesar de todas as concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura inacreditável de subserviência.

 

  • A afinidade entre os dois governos feriu o interesse nacional?

Na primeira metade de seu mandato, Bolsonaro se pendurou em Trump. Também já fui embaixador em Washington e as relações com os EUA eram conduzidas de outra forma. Ha- via diferença de tom, mas tam- bém uma linha de continuida- de que atravessou governos tão diferentes entre si, como o de Sarney, Collor, FHC e Lula.

 

‘Papel do Itamaraty se tornou secundário’

Para o embaixador do Brasil em Pequim, de 2004 a 2008, e hoje presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Luiz Augusto de Castro Neves, o governo chinês optou pelo pragmatismo e não tem levado em consideração os ataques recebidos de alguns membros do governo brasileiro. “O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades”. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão.

 

  • Apesar do discurso ‘antichina’ do governo, a exposição das exportações brasileiras à China saltou de 28%, em 2019, para 32%, em 2020. Teremos uma repetição deste aumento este ano?

Sim. A China, embora tenha crescido 2% no ano passado, sofreu uma desaceleração muito grande, o que gerou uma capacidade ociosa que deverá ser preenchida este ano. E o Brasil se mantém ainda em recessão e tem aumentado as exportações para o mercado chinês e reduzindo suas importações. O aumento das exportações para a China se dá por sua economia estar crescendo mais que a economia mundial.

 

  • Mesmo com as compras de insumos para vacinas as importações de produtos chineses não devem ter destaque este ano?

A compra de produtos chineses, de modo geral, tende a se estabilizar ou até diminuir. As importações dos insumos necessários para a fabricação de vacinas contra a covid-19, quantitativamente, não serão decisivas, no agregado, para gerar um aumento nas importações. Nossas importações da China são basicamente de bens intermediários essenciais para a indústria.

 

  • Os ataques feitos à China por membros do governo não causam ruídos nas negociações comerciais entre os dois países?

O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades. São manifestações vinculadas ao governo e que exprimem posições pessoais. Mas o que tem prevalecido é o pragmatismo e, bem ou mal, a China ainda é o nosso maior parceiro comercial.

 

  • Recentemente, os chineses andaram negociando com governadores e com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. É uma forma de reduzir o papel do Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores?

A China vai sempre negociar com interlocutores eficazes. O ex-presidente Michel Temer negociou com eles com a anuência do governo federal, mas é fato que o papel do Ministério de Relações Exteriores se tornou secundário. Mas esta tem sido uma tendência mundial. Se antes as negociações comerciais eram de exclusividade do Ministério de Relações Exteriores, hoje Estados e empresas privadas têm seus próprios canais de conexão com o mundo.

Falta de competitividade além das commodities ainda preocupa

Se a presença chinesa como principal comprador dos produtos brasileiros deve bater novos recordes, a falta de diversificação na pauta e no destino das exportações preocupa especialistas. Eles temem que a parceria, interesse de ambos os países, possa se transformar em uma armadilha para o Brasil.

Para Miguel Daoud, sócio-diretor da Global Financial Advisor e assessor econômico, ao mesmo tempo em que a relação comercial entre Brasil e China é alvissareira, é também preocupante na medida em que torna o Brasil dependente de um país.

“A gente sabe que a China vai continuar demandando. A nossa preocupação é com relação aos preços, porque estamos vivendo um momento de muita liquidez na economia mundial e esse dinheiro acaba indo para especulação em commodities.”

Ele diz que o Brasil tem de aproveitar este momento. Mas precisa ficar atento para buscar alternativas à dependência da China porque ela não é boa. De acordo com ele, buscar outros mercados agora é muito difícil porque nenhum país no mundo tem a demanda da China.

“A estratégia seria agregar valores aos produtos internamente. Mas para isso, seria preciso fazer investimentos direcionados para adicionar valor à soja, ao milho e à carne, por exemplo. Precisaria ter toda uma estruturação de logística e investimento na industrialização dos produtos agrícolas”, diz Daoud.

Só assim, segundo ele, o País terá mais segurança sem depender apenas dos pedidos da China. Mesmo porque os preços das commodities oscilam muito e, em algum momento, isso poderá prejudicar o Brasil.

A avaliação da economista Fabiana D’atri, coordenadora de economia do Bradesco e também diretora econômica do Conselho Empresarial BrasilChina (CEBC), é a de que a perspectiva da dependência brasileira da China tem que ser relativizada porque o contexto é de uma pandemia em que a China se posicionou bem.

Ao mesmo tempo em que as exportações para a China ganharam espaço, as importações de produtos chineses, sobretudo de componentes eletrônicos, também cresceram. Em 2020, 21,4% dos produtos importados pelo Brasil vieram de lá, ante 14,1% das compras feitas uma década antes, segundo estatísticas do Ministério da Economia.

“Vamos importar insumos e vacinas dos países autorizados e que os tiverem disponíveis. Parte importante virá da China, mas como porcentual da pauta, acredito que essa participação será pequena dado ao peso dos demais itens. Como falei, com a retomada da economia brasileira, vamos importar mais produtos manufaturados. Muitos vindos da China”, conclui Fabiana.

Para o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, o Brasil ainda precisa melhorar a competitividade da sua indústria, para conseguir ganhar mercados com produtos de maior valor agregado. Um fator que prejudicou a indústria nacional foi a queda de 13% em 2020 na exportação para a Argentina, principal comprador de manufaturados brasileiros. “Sem ficar competitivo em produtos de maior valor agregado, o Brasil não conseguirá ganhar peso internacional.”

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