Mensagem de preso de Auschwitz é decifrada após 7 décadas escondida

Façanha foi possível graças à tecnologia digital

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Façanha foi possível graças à tecnologia digital

O depoimento de um prisioneiro do campo de concentração de Auschwitz, forçado a ajudar os esquadrões da morte nazistas, foi finalmente decifrado. A façanha foi possível graças à tecnologia digital.Mensagem de preso de Auschwitz é decifrada após 7 décadas escondida

O judeu grego Marcel Nadjari descreveu, em restos de papel de carta, como milhares de judeus eram levados para câmaras de gás diariamente – e “empacotados como sardinhas”.

Em 1944, o jovem de 26 anos só pensava em vingança. Ele havia escutado de outros judeus gregos que sua mãe, pai e irmã Nelli haviam morrido em Auschwitz-Birkenau, no sul da Polônia, no ano anterior.

“Muitas vezes eu pensei em ir junto com os outros (judeus), para dar um basta nisso. Mas a vingança sempre me impediu. Eu queria viver, vingar a morte do papai, da mamãe e da minha querida irmãzinha”, escreveu.

Nadjari era um dos cerca de 2,2 mil membros do Sonderkommando – grupo de escravos judeus da SS (guarda de elite nazista) que tinha que acompanhar outros judeus às câmaras de gás.

Eles eram obrigados a queimar os corpos, coletar obturações de ouro, cabelos de mulheres e jogar as cinzas em um rio próximo.

Indústria da morte

Por terem testemunhado de perto as engrenagens da indústria da morte nazista, esses judeus sabiam que era apenas questão de tempo até que fossem exterminados também.

Em novembro de 1944, Nadjari escondeu então seu manuscrito de 13 páginas em uma garrafa térmica, selada com um plástico. Ele colocou o frasco dentro de uma bolsa de couro, que enterrou perto do crematório 3.

“O crematório é um prédio grande com uma larga chaminé e 15 fornos. Sob um jardim, há dois porões enormes. Um deles é onde as pessoas se despem, e o outro é a câmara da morte. As pessoas entram nuas e, uma vez que há cerca de 3 mil lá dentro, são trancadas e expostas aos gases. Após seis ou sete minutos de sofrimento, elas morrem “, escreveu.

Ele narrou também como os alemães tinham instalado tubos para fazer com que a câmara de gás parecesse com um espaço para tomar banho.

“Os botijões de gás são sempre entregues por um veículo da Cruz Vermelha alemã com dois homens da SS. Eles soltam o gás por meio das aberturas – e meia hora depois, nosso trabalho começa. Nós arrastamos os corpos de mulheres e crianças inocentes para o elevador, que leva para os fornos.”

Ele detalha que as cinzas de cada vítima adulta pesavam cerca de 640 gramas.

No manuscrito, Nadjari conta ainda que testemunhou uma revolta desesperada de membros do Sonderkommando, liderada por soldados soviéticos capturados, que tentaram explodir alguns crematórios, usando pólvora roubada.

Os nazistas esmagaram o motim. Mas, como ele não estava entre os rebelados, escapou.

Nadjari incluiu no texto uma introdução em alemão, polonês e francês, pedindo a quem encontrasse o documento para encaminhá-lo à embaixada grega, para que fosse enviado ao amigo Dimitrios Stefanides.

Vida após a morte

Fica claro a partir das anotações que Nadjari esperava morrer no campo de concentração – mas essa era sua mensagem para o mundo lá fora. Uma mensagem que poderia ter lhe custado a vida, caso fosse descoberta pela SS.

Nadjari sobreviveu milagrosamente a Auschwitz e à deportação para o campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, quando o Terceiro Reich entrou em colapso.

Antes da guerra, ele trabalhava como comerciante em Tessalônica, na Grécia. Após o conflito, se casou e, em 1951, mudou-se para Nova York, onde ganhava a vida como alfaiate. Em 1957, sua mulher Rosa deu à luz uma menina, que foi chamada Nelli – em homenagem a sua irmã morta em Auschwitz-Birkenau.

Nadjari morreu em 1971, aos 53 anos, nove anos antes de sua mensagem ser descoberta.

A descoberta

Em 1980, um estudante polonês de silvicultura desenterrou por acaso a garrafa térmica, que estava a uma profundidade de cerca de 40 centímetros, durante uma escavação em Auschwitz.

A terra molhada danificou o conteúdo do manuscrito, que ficou borrado – e apenas 10% da mensagem estava legível, quando o historiador russo Pavel Polian decidiu recuperá-lo.

Segundo Polian, uma evidência direta tão rara é “central” para documentar o Holocausto.

O historiador recebeu uma versão escaneada do manuscrito de Nadjari que estava no arquivo do Museu de Auschwitz.

E, após falar em uma rádio russa sobre a má condição em que se encontrava o documento, foi abordado por um jovem especialista em TI, Alexander Nikityaev, que se ofereceu para ajudar.

Tecnologia de ponta

Nikityaev passou um ano fazendo testes com Photoshop, software para edição de imagem digital, no intuito de restaurar o texto borrado.

Ele usou filtros vermelhos, verdes e azuis – sendo o vermelho o mais eficaz – e chegou a alcançar uma legibilidade de 90%.

Com a ajuda de Ioannis Carras, acadêmico grego-britânico que mora em Freiburg, na Alemanha, o historiador conseguiu traduzir o texto do grego para o inglês.

Outros relatos
Polian está trabalhando agora em uma nova edição de Scrolls from the Ashes (Pergaminhos das cinzas, em tradução livre), livro russo sobre Sonderkommando, que vai incluir o texto de Nadjari.

Outros quatro membros do Sonderkommando também deixaram relatos escritos, sendo o mais importante o de Salmen Gradowski, um judeu polonês.

Encontrados anos antes, os documentos estavam em melhores condições. E foram redigidos principalmente em iídiche.

Número de vítimas

Em entrevista à BBC, Polian disse que ficou impressionado com a estimativa precisa de Nadjari em relação ao número de vítimas em Auschwitz: 1,4 milhão.

“Os presos obviamente contavam os trens que chegavam”, avalia Polian.

“A sede de vingança de Nadjari chama atenção – isso é diferente dos outros relatos. E ele se concentra muito na família. Por exemplo, especifica quem ele queria que ficasse com o piano de sua irmã morta”, acrescenta.

No total, cerca de 110 membros do Sonderkommando sobreviveram a Auschwitz-Birkenau, sendo predominantemente judeus poloneses. Na maioria dos casos, os sobreviventes só desejavam esquecer os horrores que viveram – poucos escreveram sobre a provação que passaram.

No mês passado, o Instituto de História Contemporânea de Munique publicou as descobertas do historiador (em alemão).

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