O preconceito, explícito ou velado, existe historicamente na sociedade brasileira, seja ele racial ou pelo sexo. E as mulheres negras estão na intersecção dessas duas minorias sociais. Tanto o racismo, quanto o machismo pesam em seus ombros todos os dias. E a prova está nos números. Quatro jovens negras, Danielle Almeida, Gabriela Coniutti, Rusylene Cá e Yasmin Alexandra, nos contam como é sofrer isso, literalmente, na pele.
Segundo dados do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência de 2017, desenvolvido pela Unesco, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Secretaria Nacional da Juventude, o riscos de que jovens negras sejam assassinadas no Brasil é duas vezes maior que jovens brancas. Isso se deve ao racismo, que leva a população negra em geral ao topo da lista de homicídios do país.
Ana José Alves, presidente do Coletivo de Mulheres Negras de MS Raimunda Luzia de Brito e co-fundadora, reitera que mulher negra faz parte da base da pirâmide social.
“As mulheres negras, a juventude negra é desfavorecida, na base da pirâmide. A mulher negra, na casa, assume a tarefa de cuidar dos filhos, vai ao trabalho, se torna a frente da responsabilidade. Em todas as fases políticas, quem está em desvantagem somos nós as mulheres negras. Existe ainda o racismo além do sexismo”, afirma Ana José.
“A solidão da mulher negra é independente da geração. A gente enfrenta todas as formas de desigualdade e violência. Os órgãos públicos estatísticos devem fazer o recorte de gênero e raça em relação ao feminicídio e à violência contra a mulher”, ressaltou.
Mas só a mulher negra sabe o que passa. Por isso, eu como homem, tomei a liberdade neste Dia Internacional das Mulheres, de dar à elas a oportunidade de contarem um pouco das suas histórias e o que pensam sobre a problemática da solidão da mulher negra na sociedade. Confira os relatos de 4 jovens mulheres negras que vivem em Campo Grande:
Danielle Almeida, a ativista
Ser mulher negra na sociedade é resistir todos os dias e todo momento. Se não é objetificada, é desrespeitada de alguma forma. Temos que impor nosso respeito. O que me assusta é o racismo velado. É algo que nós mulheres negras mais sofremos.
A junção do racismo e do machismo é muito difícil de lidar, tem que ter uma firmeza. As pessoas não querem assumir um relacionamento com uma pessoa negra, e muitas vezes acabamos aceitando essas situações como normais, e não é. Não só em relações amorosas, mas de amizades. Temos que tratar esse assunto com mais discernimento.
Todos os dias tento que me impor aos padrões de beleza. Não sou nem um pouco padrão, e não os sigo. Minha aceitação própria foi bem fácil. Foi um processo tranquilo de assumir como sou, meu corpo, minha cor, meu cabelo. Mas já passei por preconceitos velados e explícitos, e são feridas que ainda continuam abertas. Se reconhecer, se amar, se cuidar, do físico, mental e espiritual, é importante. Mas o principal é respeitar o que sente.
Gabriela Coniutti, a crespa
Viver com medo, acredito eu, são as palavras que melhor resumem a questão. Estamos presenciando um momento de total impunidade. Existir sendo mulher e negra passou a ser ainda mais difícil, não que antes fosse fácil. Seja por orientação sexual, tonalidade e textura dos cabelos, roupas, personalidade… tudo! A sociedade faz com que estejamos na mira sempre.
Existe um trecho da música Mulheres Negras da Izalú que diz: “enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo as negras duelam pra vencer o machismo, o preconceito, o racismo lutam pra reverter o processo de aniquilação que encarcera afrodescendentes em cubículos na prisão não existe lei maria da penha que nos proteja da violência de nos submeter aos cargos de limpeza…”.
A música em si diz muito sobre o que é ser uma mulher negra, tendo que lutar pra sobreviver não apenas por ser mulher, mas também por carregar estigmas, estatísticas, preconceitos etc.
Com certeza a solidão da mulher negra existe, e o padrão, principalmente estético, está muito ligado a isso. A mulher negra é sempre colocada a um nível completamente baixo, onde nos relacionamentos apresentar para familiares e amigos passa a ser um “grande feito”, porque isso geralmente não acontece. A apresentável é sempre a mulher branca, traços finos e cabelos lisos. Fazem com que tenhamos vergonha dos nossos traços.
A partir do momento que aceitei meu cabelo crespo, e depois quando tive a oportunidade de começar a ir atrás de textos que falavam sobre colorismo me reconheci como mulher negra, passando a me conhecer melhor e a prestar atenção no que eu realmente gostava e não mais no que me era imposto.
A aceitação foi um processo muito demorado, que as vezes acaba doendo até hoje, mesmo depois de muito tempo. Os olhares maldosos, o jeito que te tratam, os gritos na rua machucam, mas me aceitar foi uma das mínimas liberdades que eu consegui e que não podem mais tirar de mim.
Já passei por inúmeros constrangimento ou racismo e machismo! O último foi com um motorista de aplicativo. Ao entrar no carro ele me perguntou “o que eu era”, e um pouco constrangida respondi que eu tinha me formado em jornalismo recentemente, logo depois de alguns minutos ele perguntou “o que esse cabelo significa?”
Disse a ele que era só meu cabelo, um pouco mais firme. Chegando próximo a minha casa ele me pergunta se eu trabalho em uma emissora de TV, e eu respondo que não, pois eu havia acabado de me formar. Logo em seguida ele fala: “é porque você sabe que não pode trabalhar na TV com esse tipo de cabelo assim desse jeito né?”. Naquele momento eu não sabia o que fazer, fiquei incrédula e só queria descer do carro.
Acho que a mulher negra tem que entender que mesmo com tudo contra ela, ela é importante e necessária. Saber que ela, suas tias, avós, amigas são sobreviventes e que elas precisam continuar resistindo.
Rusilene Cá, a africana
Ser mulher negra hoje é simplesmente um ato de resistência todos os dias. Se antes a mulher já teria que se esforçar mais para ter o seu espaço, hoje em dia esse esforço triplica. Pra mim o racismo assusta mais, porque querendo ou não é algo novo pra mim, eu vim de um país africano, Cabo Verde, onde o racismo é algo muito raro, o machismo infelizmente desde pequena já convivia com ele, então já meio que sei lidar. Mesmo estando 1 ano no Brasil, ainda o racismo me assusta.
Não tem como não existir uma sociedade que (falando sobre homens) não vê a mulher negra apenas como um objeto sexual. Ela não é vista como a esposa, a namorada, a mãe dos filhos… Ela será sempre a peguete/ficante. Embora saibamos que esses casos não se aplica a 100%, mas é claramente a maioria.
Já me impus contra os padrões e, frequentemente mesmo. Eu já me considero uma afronta aos “padrões sociais” pq sou tudo o que eles dizem que não deveria ser ou fazer. E eu nunca tive problemas com a auto-aceitação. Sempre tive um entendimento claro do que sou e do que posso ser.
Já sofri racismo velado, sim. Eu sinto isso bastante quando falo, por exemplo, que faço Odontologia na Universidade Federal. Eles tem uma reação clara de que eu, como negra e africana, não é o “padrão” estar fazendo um curso de elite desses.
Na minha opinião, a jovem negra tem que no mínimo uma base familiar boa, que mostre a ela desde cedo que ela pode ser o que ela quiser, quando quiser e onde ela quiser. Que a cor da pele nunca deve ser uma barreira na vida dela e menos ainda o fato de ser mulher.
Falo isso por experiência própria, porque desde pequena tive esse exemplo na minha família e acho que isso foi essencial para ser quem sou hoje, estudar em outro país sozinha e nunca ter problemas de auto confiança e do meu potencial, mesmo no contexto político e social que o Brasil se encontra hoje.
Sabemos que nem todas tem esse exemplo ou apoio em casa, então que procure grupos de mulheres negras para conversarmos, ouvir relatos de casos de sucesso ou superação de mulheres negras e nos motivarmos em conjunto.
Yasmin Alexandra, a visionária
Ser mulher negra no contexto político atual, é algo que sem dúvidas me deixa apreensiva. Me sinto muito mais desprotegida do que antes….só em pensar que posso sofrer qualquer tipo de violência e quem tem um governo que legítima tais discriminações é de entristecer.
Com certeza me amedronta a junção do racismo com o machismo, porque os dois podem significar perigos reais pra mim, ou seja é como se eu tivesse que estar alerta o tempo todo com os amigos que faço ou os relacionamentos que tenho….a minha cabeça simplesmente não tem descanso.
Quando eu assumi meu cabelo natural, foi uma aceitação difícil pra mim e pra mim família que achava uma decisão errada, pois eles acreditavam que o cabelo liso era bem mais bonito e fácil de cuidar. Eu decidi aceitar meu cabelo quando meu pai me levou num show de aniversário de SP Capital, e ali eu, ao redor de tantas mulheres maravilhosas igual a mim, que me toquei o eu estava fazendo comigo mesma. A partir daí fui me descobrindo e firmando minha identidade como mulher negra que antes era escondida.
Racismo senti quando, em uma entrevista de emprego, eu fui super arrumada e uma colega foi comigo também disputar a vaga. Era branca dos olhos azuis e foi com roupas inapropriadas pra uma entrevista de emprego. Na minha vez de ser entrevistada o homem me fez mil perguntas, me testou de várias formas diferentes, inclusive meu inglês e espanhol que a vaga precisava.
Logo após agradeceu e falou que entrava em contato. Já com a minha amiga, ele elogiou a beleza dela. Perguntou se morava perto e já perguntou a disponibilidade dos horários, depois a contratou. Nem me ligou, mas disse pra ela que eu não era preparada. Depois de muito tempo ficou claro que era racismo velado.
E já de machismo foi na dança de salão onde eu tanto sou conduzida, quanto conduzo. Um homem chegou um dia e me disse que meu lugar não era aquele, pois nasci pra ser dama e estava desrespeitando a estrutura da dança.
Acredito que o mais importante é tentar sempre desconstruir os estereótipos e limitações que colocam nas nossas vidas e ter para si que merecemos estar onde quisermos! E sempre buscando o quê nos faz feliz.