“Eu já fui abusada. Mas nem minha mãe sabe”. O relato começou com um aviso bem importante. O desabafo que viria a seguir era o segredo que ela guardou a sete chaves durante toda a vida, desde os 7 anos. Hoje, aos 39, ao contar sobre o abuso sexual que sofreu na infância, as lembranças vêm com choro, traumas, algumas dúvidas, mas também alívio em colocar para fora aquilo que sempre a sufocou por dentro.

“Foi pela empregada da minha mãe. Foi ela”. A denúncia tem o sabor forte da coragem, também tem o peso da insegurança e do medo de ser traída pela memória e pelos bloqueios que o trauma acarreta. “Por muito tempo eu achei que estivesse louca, mas uma criança de sete anos não inventa histórias deste tipo e com detalhes tão requintados e sórdidos”.

“Lembro que a cozinha era americana e tinha uma geladeira vermelha. Ela me deitava no chão, tirava a minha calcinha e fazia sexo oral em mim. Depois, deitava e me obrigava a fazer sexo oral nela. Era muito nojento”.

Outra lembrança vaga é a presença do filho da empregada. “Ele tinha mais ou menos da minha idade, mão me lembro dele junto quando essas coisas aconteciam. Só sei que ele nunca fez nada”.

Ela não sabe dizer quantas vezes essa cena se repetiu dentro da própria casa. “Me recordo que foram várias vezes, mas não sei quantas. Até que um dia ela deixou de trabalhar lá. Não sei se de alguma forma minha mãe descobriu. Nunca fiquei sabendo, meus pais tinham o pensamento de que assuntos sérios não eram conversados com crianças”.

As dúvidas

“Não sei porque eu deixava ela fazer isso comigo e porque eu a obedecia”, reflete. E talvez este seja o questionamento que mais maltrata uma pessoa, pois vem com um certo sentimento de culpa, mesmo com toda a certeza de ter sido vítima.

“Lembro que uma das vezes que eu reagi, ela me arranhou o braço inteiro, fiquei com três marcas profundas, e me depois me ameaçou caso eu contasse para a minha mãe”.

A lembrança do que aconteceu depois disso foi apagada da memória. Quem sabe, pela dor. “Minha mãe viu que meu braço estava arranhado, mas não lembro o que eu falei. Tenho fragmentos. Tem cenas que são nítidas na minha cabeça, mas tem coisas que eu não consigo juntar”.

Reflexos de uma infância roubada

“Resolvi não contar para ninguém, carregar sozinha a minha cruz. Só que é muito doído. Sei que muitos problemas que eu tenho com a minha própria imagem, de ter uma imagem destorcida de mim, vem disso. Eu cresci e fui tocando a vida. Mas às vezes, sinto que preciso fazer terapia para tirar isso de mim”.

O complexo do corpo e a sexualidade confusa foram só uns dos reflexos que ela carregou de uma infância roubada.

“Eu sempre sento muita vergonha do meu corpo e de fazer sexo com a luz acesa, por exemplo. Mas por outro lado, tem uma parte de mim que parece que despertou muito cedo essa questão sexual, tenho um lado meio pervertido, que eu acho horrível. É um conflito dentro de mim”.

Conflitos que não param por aí. Tem uma coleção de interregoações. “Às vezes, um lado meu questiona o motivo de isso ter acontecido comigo. Por que eu? Será que de alguma forma tive culpa? E depois eu penso que não, que eu era uma criança, tinha 7 anos de idade. Como teria culpa de algo feito por um adulto? Ninguém tem culpa de ser estuprado”.

Tem o medo do julgamento. “Já tentei contar pra minha irmã e ela disse que eu estava louca, que eu estava mentindo. Já pensou se eu contar pra minha mãe ou para outras pessoas, vão dizer que eu estou querendo chamar atenção depois de velha. Por isso decidi nunca contar”.

Tem a dose de culpa. “A única coisa que eu sei é que isso deixa uma marca profunda em qualquer criança e é praticamente inevitável não levar para a vida adulta. Eu sei que não tive culpa de ter sido estuprada quando era criança, mas é um peso que eu carrego”.

Os filhos e os pais

Mãe de coisa filhos, ela confessa que nunca os deixou com babá ou empregada por medo de a história se repetir. “Sempre ensinei a eles que se um dia qualquer pessoa passasse a mão neles ou fizesse qualquer tipo de coisa anormal, tinham que me contar, que eu nunca iria brigar, mas sim defendê-los de qualquer coisa”.

Baseada na própria experiência, ela afirma que tenta passar segurança aos filhos por saber que o medo na criança é algo muito forte e que as ameaças do abusador são aterrorizantes. “A criança nunca vai ser culpada, porque ela sente medo de muita coisa, de deixar a mãe triste, o pai bravo… E também de falarem que está mentindo, inventando porque criança é fantasiosa e não sabe de nada”, diz.

Contudo, ela garante que não culpa os pais pelo ocorrido. “Acho que eu queria que minha mãe tivesse percebido, talvez tenha me sentido desprotegida. Mas falar que ela teve culpa, não. A culpada é de quem cometeu o crime. Só queria que ela tivesse percebido para me defender. Mas entendo que ela tinha que trabalhar. Meus pais trabalhavam muito”.

Nesta sexta-feria (18), é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Contra a Criança e o Adolescente, e cuidar deles é uma responsabilidade de toda a sociedade. Por isso, a qualquer sinal de abuso ou exploração, denuncie através do número 100.

*A história é real em todos os detalhes e todos os dias uma criança tem a infância roubada. Por questões éticas e de respeito, a identidade da vítima foi preservada e mantida no anonimato nesta matéria.

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