Geíza Ferreira dos Santos tem 40 anos, mas, até pouco tempo atrás, ela não se identificava com o corpo que nasceu. O processo de transição então veio em conjunto com o início do mestrado, um período de grandes desafios levando em conta a sua deficiência visual. Porém, nada disso foi impeditivo para que ela conquistasse o seu espaço que, até então, era segregado. Geíza ignorou todos os “nãos” escutados em sua vida e deu voz aos seus sonhos. Por isso, neste Dia do Orgulho LGBT, ela tem orgulho de bater no peito e se denominar mulher preta, transgênera e com deficiência visual com título de Mestra pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). Pioneirismo na academia é motivo de inspiração no Estado.

Psicóloga e pedagoga, Geíza conquistou o seu mestrado em psicologia com a pesquisa “Representações Sociais de Homens Gays sobre Homens Gays com Deficiência Visual” em 2023. Ela explica ao Jornal Midiamax que toda a sua vida foi pautada nas questões de gênero, então a pesquisa veio para complementar o que ela já conhecia de perto e para dar voz aos homens declarados homossexuais com deficiência visual que se sentem excluídos até mesmo dentro da comunidade LGBTQIA+. Nessa etapa ela é certeira ao afirmar que sua principal inspiração, além das próprias experiências, foi o seu marido, Márcio Ximenes Ramos, presidente do Ismac (Instituto Sul Matogrossense para Cegos Florivaldo Vargas). 

No entanto, é importante destacar que o diploma de Mestra é resultado de uma história iniciada ainda na infância de Geíza. 

Deficiência visual foi diagnosticada aos 3 anos

A deficiência visual de Geíza se chama Baixa Visão. A cegueira total do olho direito foi diagnosticada aos 3 anos de idade. Até que, na adolescência, a psicóloga sofreu um acidente de trabalho que gerou impacto muito forte no seu olho esquerdo, o que ocasionou na perda parcial da visão desse olho também. Além de conviver com a baixa visão, a falta de identificação com o corpo já a incomodava desde jovem. 

“Minha vida toda foi permeada pelas questões de gênero. Eu já me identificava com o gênero oposto na época e eu sempre fui uma pessoa muito sensível. Durante a adolescência, todas as crises de identidade que uma pessoa LGBT tem, eu tinha. Eu não me sentia atraída pelo gênero oposto. Então, eu tinha todos esses conflitos que uma pessoa LGBT tem e atravessados ainda pela deficiência visual”.

Mestrado fez ela se reencontrar consigo mesma 

O processo de transição começou na adolescência, na época ainda morava no Estado de Mato Grosso, e durou até os seus 25 anos de idade, momento em que já estava com sua identidade feminina assumida. Porém, depois de muita pressão social e também da família, Geíza abandonou a transição e decidiu focar no trabalho e nos estudos, quando também veio morar em Mato Grosso do Sul para abraçar novas oportunidades.

Em 2021, Geíza ingressou no mestrado pela UFMS. Ela afirma ter sido um período bem conflituoso por ter perdido a mãe em 2020 e também porque precisou lidar com muitos aspectos pessoais durante os estudos.

Geíza Ferreira dos Santos
Processo de transição foi retomado durante o mestrado (Foto: Nathalia Alcântara/Jornal Midiamax)

“Há cerca de dois anos e meio, pouco antes do mestrado, vieram de novo as crises de identidade. Então foi um conflito muito grande porque eu estava trabalhando coisas relacionadas à identidade, gênero e sexualidade em pessoas com deficiência e tudo o que eu lia batia com a minha vida. Então pensei ‘por que procrastinar mais? Por que deixar esse sentimento tomar conta de mim e não ter uma atitude?‘ Resolvi retomar meu processo de transição durante o mestrado”, recorda.

Pesquisa aponta “apagamento” dos homens gays na comunidade

“Representações Sociais de Homens Gays sobre Homens Gays com Deficiência Visual” é a pesquisa que deu a Geíza o título de Mestra. Ela nasceu com objetivo de estudar a sexualidade de homens homossexuais que possuem deficiência visual. 

“A minha inquietação enquanto pessoa LGBT, casada com uma pessoa LGBT que tem deficiência visual, sendo que eu também tenho, sempre foi estudar a sexualidade dessas pessoas com deficiência visual. Porque o que a gente percebe durante a nossa vivência é que as pessoas com deficiência são apagadas do contexto da sexualidade, como se não tivessem esse aspecto e atravessamento durante a vida. No meio das pessoas com deficiência visual, é incomum ver as pessoas LGBTs assumidamente”, explica.

Afinal, trata-se de um grupo constantemente impedido de exercer sua liberdade pelas pressões que acontecem dentro e fora de casa, além dos paradigmas que funcionam como “prisão” dessas identidades e suas sexualidades. Assim, Geíza trabalhou com a teoria do pensamento coletivo das pessoas sobre os assuntos pesquisados. 

“Eu quis saber quais eram as representações sociais de homens gays, sem deficiência, e homens gays com deficiência visual. Como já imaginávamos em nossas hipóteses, percebemos um apagamento dentro da sigla LGBT das pessoas com deficiência, e nesse caso no aspecto dos homens com deficiência visual. Então, a gente montou também conceitos que permeiam o capacitismo no sentido de subestimar que essas pessoas podem ter autonomia de exercer sua sexualidade e participar de lugares que o público LGBT acessam”.

A mestra em psicologia ainda ressalta que todo o seu percurso no estudo acadêmico foi possível por dois motivos: adaptação ao uso das tecnologias e ensino inclusivo oferecido pela instituição. 

Ensino inclusivo aliado à adaptação

Lembra dessa matéria? O Jornal Midiamax fez uma reportagem em 2022 sobre os caminhos que pessoas com deficiência visual fazem para ingressarem nos estudos em Mato Grosso do Sul. Na época, especialistas explicaram que, apesar dos avanços, muitas pessoas diagnosticadas cegas ou com baixa visão esbarram no capacitismo presente na educação, desde os primeiros anos da escola até o acesso a concursos públicos e universidades. 

A Geíza é, então, um exemplo claro de como a harmonia entre inclusão, adaptação correta e a abertura de oportunidades fazem todo esse processo dar certo, basta que as instituições se empenhem para isso. (Acesse a matéria completa aqui).

Ismac - Instituto Sul Matogrossense para Cegos Florivaldo Vargas
Instituto Sul Matogrossense para Cegos Florivaldo Vargas em Campo Grande (Foto: Nathalia Alcântara/Jornal Midiamax)

Ao chegar a Campo Grande, a psicóloga passou por aulas de adaptação no Ismac com acesso à tecnologia assistida, como leitores de tela e uso de lupas.

“Todo o meu processo acadêmico foi por conta de toda uma adaptação para pessoas com deficiência visual. Na época, quando comecei a fazer a faculdade em 2011, eu já estava na idade adulta, só consegui fazer porque tive acesso a leitores de tela bem primitivos. Aí fui descobrindo que o céu era o limite pra mim. Assim consegui estudar, converter os livros em áudio e estudar para o mestrado”.

Diante disso, Geíza ressaltou o quanto a UFMS proporcionou um ensino inclusivo, com professores facilitadores da sua jornada e com polo de acessibilidade para pessoas com deficiência visual. O Jornal Midiamax entrou em contato com a instituição para saber mais detalhes sobre a sua metodologia de ensino inclusivo, mas não obteve retorno até o momento. Espaço segue aberto para eventuais manifestações. 

Pioneirismo é fonte de inspiração

Após a conquista do mestrado, os próximos planos estão focados em passar em concurso público para ingressar como professora. Além disso, Geíza tem perspectiva de continuar os estudos e emendar um doutorado especialmente porque mais espaços precisam ser conquistados. Motivo pelo qual seu pioneirismo tem inspirado outras pessoas que se identificam com a sua história. 

Geíza Ferreira dos Santos
Geíza quer conquistar ainda mais espaços (Foto: Nathalia Alcântara/Jornal Midiamax)

“As pessoas transgêneras são as que mais sofrem no Brasil de mortes violentas, então o nosso Estado não deixa de ser diferente. Essas questões aparecem e falam da importância de dar a inspiração que essas pessoas vislumbram. Porque até certo tempo atrás a gente não via pessoas transgêneras em mestrado, em doutorados […] Nosso espaço tem que ser conquistado, a gente tem que assumir esses espaços, assumir a responsabilidade de estar ali, fazer um bom trabalho para que outras pessoas se sintam inspiradas também”. 

O mesmo é observado pelo orientador da Geíza, o professor Alberto Mesaque Martins. À equipe de reportagem, ele salienta o quanto a conquista da psicóloga é uma vitória para todas as pessoas representadas. Afinal, uma vez que a universidade surgiu num contexto histórico que aceitava apenas homens brancos, da nobreza, héteros e cisgêneros, a adesão de novos grupos – indígenas, homossexuais, PCDs – começou a partir de políticas públicas.

“Historicamente a universidade é um lugar importante pra sociedade, mas, ao mesmo tempo, muito excludente, são poucas as pessoas que ainda hoje acessam a universidade […] então a presença da Geíza é um reflexo de políticas de inclusão que vêm sendo desenvolvidas a partir dos anos 2000 que já pensam no acesso de outro grupo populacional ao ensino superior […] A vitória de Geíza não é apenas dela, mas também é do coletivo, desse grupo. Talvez vendo o exemplo o dela, as pessoas consigam ver que existem possibilidades”, explica Alberto.

Não é à toa que a psicóloga decidiu investir ainda mais na academia. A intenção é fomentar o quadro de pesquisadores e escritores que falem sobre as questões que permeiam sua vida, afinal, é comum ver pessoas sem deficiência falando sobre pessoas que têm. 

“Isso escancara uma evidência que as pessoas com deficiência não estão conseguindo acessar as pós-graduações, doutorados e cursos de mestrado. Então é importante que a gente esteja lá presente e falando da gente também. Eu, como pessoa transgênera, mulher preta, com deficiência, falando das necessidades dessa população, é muito importante. E podendo dar oportunidades para outras pessoas também queiram chegar até lá. A nossa missão é trazer mais pessoas, trazer essa necessidade de abertura de portas para pessoas com deficiência e pessoas transgêneras nas universidades”, conclui Geíza.