Anabela foi-se sem dar trabalho, como prometeu aos filhos. Morreu dormindo, durante a madrugada do dia 30 de junho. Seis dias antes tinha completado 65 anos. O filho Cleyton Prado o encontrou sem sinais na cama às 3h da manhã e não deu tempo de chamar a ambulância. 

Tinha partido por infarto fulminante, deixando três filhos, esposa e um legado de quatro décadas como em

Valderli Ramos do Prado começou na área em 1978. Mato Grosso do Sul tinha acabado de se separar do vizinho Mato Grosso e o Brasil enfrentava a sob o comando do então presidente Ernesto Geisel. 

Desde lá, Anabela, como é conhecido Valderli, viu a cidade crescer, bairros nasceram, ruas ganharam asfalto e casas foram emoldurando a paisagem enquanto o taxista rodava pela cidade.

O taxista ficou longe da praça apenas em 1986 quando foi para o Pará acompanhar o irmão no garimpo. Retornou para Campo Grande doente. Pegou malária e voltou quase morto. 

“Se não fossem os meus avós que são evangélicos”, atribui Cleyton as orações sobre a recuperação do pai naquele ano. O filho é taxista há oito anos e entrou no ramo influenciado por Anabela.

Ele trabalhou na época em que só existiam táxi. Nos anos 90, os mototáxis chegaram e em 2016 os aplicativos de mobilidade começaram a operar na Capital, mas nada abalou a confiança sob a sua clientela. Viu pessoas entrando e saindo como taxista, mas permaneceu firme no ramo. 

Valderli trabalhou por 20 anos na rodoviária antiga, um ano na nova rodoviária, passou pela rua Vasconcelos Fernandes, no bairro Amambaí, e na loja Americanas na rua Dom Aquino. Em 2012, fixou como local de trabalho o Fort Atacadista, na Avenida Coronel Antonino, onde fez corridas até poucos dias antes de falecer.

Era querido pelos funcionários, clientes e moradores de bairros próximos, como Monte Castelo, Coronel Antonino, Vila Rica e Margarida, que só o conheciam pelo apelido Anabela.

“Às vezes ele saía cedo, tinha que levar no posto de saúde, no serviço, no mercado, ele não precisava de aplicativo, era só ele com o celular e os contatos”, relembra Cleyton. Além dos clientes do Fort, também era requisitado pela diretoria do atacadista, fazia corridas particulares, tornando-se em um motorista de confiança.

Além da região do Coronel Antonino, o taxista era frequentador assíduo da Comunidade Tia Eva. Passava por lá para tomar uma cerveja na mercearia, comer petiscos e prosear com os amigos. Quando a notícia da sua morte chegou na região, contaram a Cleyton que uma amiga do falecido chegou a passar mal.

Pai e filho às vezes revezavam o atendimento aos passageiros e, em alguns casos, Cleyton precisou avisá-los que o taxista tinha falecido. 

“Muita gente me ligou dizendo ‘seu pai não atende o celular' e eu precisava explicar que ele tinha morrido. Fiquei preocupado com algumas pessoas porque são idosas e ele ajudava muito”, diz o filho.

“Lembro que depois de dois dias após postar no WhatsApp dele que tinha falecido, meu irmão foi olhar e tinha mais de 90 conversas de clientes”, complementa.

Valderli, religiosamente, a igreja Universal na aos domingos nos últimos anos e agarrou-se na fé para ajudar a superar o falecimento de três irmãos por Covid-19, um também taxista, em um curto intervalo de meses entre as mortes. 

“Ele ficou sem chão”, lamenta Cleyton.

“Ele carregava uma bíblia no carro e sempre que tinha um tempo lia e deixava ela aberta. Sempre fazia orações antes de sair”, recorda.

Nas quatro décadas que trabalhou como motorista, envolveu-se em dois acidentes em que os motoristas dos outros carros bateram na traseira e dianteira do táxi. 

“Para mim ele foi um herói no volante porque andou todo esse tempo e nunca cometeu nenhum acidente”, narra admirado.

Atualmente, trabalha com o carro do pai e pretende continuar com o veículo enquanto permanecer como taxista. “Vou tocando o barco, não sei se vou continuar no táxi”, Cleyton avalia.