A obra foi intitulada pedofilia. A denúncia era de uma suposta apologia a este crime hediondo e, motivada pela pressão de parlamentares, a polícia foi ao local e consumou o fato, levando o quadro para delegacia. A grande polêmica de 2017 completa cinco anos nesta quinta-feira (15) e mais: o quadro voltou ao Marco (Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul), agora pendurado com o real objetivo, de incomodar a sociedade para um fato silencioso e ainda mostrar a resistência de artistas que não aceitam ser calados.

“Quando soube que ele estava novamente exposto, me bateu uma felicidade enorme. Ver o trabalho tendo efeito, mesmo após um tempo e tudo o que aconteceu, é muito bom. Agora acredito que ele pode ser visto com calma, entendido e compreendido. E não somente pelo olhar de três deputados e um delegado, que fizeram aquilo na época”, afirmou ao MidiaMAIS a artista visual Alessandra Ropre, de 44 anos.

Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax

Na época, Ropre fala que o quadro fazia parte de uma série que criticava o machismo e a violência contra a mulher. “Cada obra tinha o seu título e mostrava a violência, então, a intenção era realmente chocar a sociedade. No entanto, invocaram com o título justamente do meu quadro, sendo que a imagem não mostrava ato. Era somente para chamar atenção para algo que existe, que deixa as crianças vulneráveis e muitos fingem que não estão vendo”, argumentou.

Atualmente morando em Uberlândia (MG), a artista fala que pretende retornar a Campo Grande para prestigiar a exposição no Marco. Assim como ela, meses antes, Evandro Prado, de 36 anos, também foi alvo de protestos por conta de suas novas. O artista visual inclusive respondeu a dois processos, nas áreas criminal e cível. Ambos foram arquivados. Em seguida, ele se mudou para São Paulo e lá continua vivendo da arte.

‘Arte existe para incomodar e levantar questões’, afirma artista

Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax
Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax

“Vejo tudo o que aconteceu comigo e com a Ropre o que a gente sempre espera, principalmente por conta da relação histórica entre artes e a sociedade. A arte também existe para incomodar, levantar questões e a reação ocorre de diversas maneiras, ainda mais em setores retrógrados que buscam atacar a arte e os artistas”, avaliou Evandro.

Segundo ele, a arte precisa continuar sendo provocativa para alcançar a sociedade e também setores conservadores. “Quem vê o trabalho precisa ter uma mente aberta, uma leitura menos literal. Acho que isso tem piorado nos últimos anos, infelizmente. Quando tudo aquilo ocorreu, eu era apenas um estudante de 20 anos, que estava no último ano da faculdade de artes. Hoje, entendo que aquilo também levou muita gente ao local, mostrou a exposição, deu visibilidade”, disse.

Na ocasião, Evandro relembra que recebeu e-mails com ameaças, o qual “figuras do poder”, como um vereador, um deputado estadual e um bispo direcionaram palavras para ele e a família. “É o que a gente chama de discurso de ódio hoje. Vi todas essas pessoas poderosas, envolvidas naquele contexto e me lembro que foram 3 eventos no país. Um em Campo Grande, o mais grave porque chegou a apreender o quadro, e outros em São Paulo e Porto Alegre”, relembrou.

Atualmente, ainda conforme o artista, a única coisa que a categoria teme é uma autocensura. “Temos medo de alguém dizer: ah, nem vamos expor porque vai dar polêmica isso. Acho que é o pior de tudo isso, se acontecer. Na época, vieram me massacrar porque eu estava fazendo uma crítica ao consumismo e usei imagens religiosas para falar desse culto aos produtos, as marcas, fazendo a nossa senhora da Coca-Cola, por exemplo. Isso ofendeu muito, mas, era uma crítica ao consumismo. Tenho esperança que as coisas vão melhorar”, comentou.

‘Ninguém quis ouvir o lado da artista’, fala diretora do Marco

Recém-empossada como diretora do Marco, na época dos fatos, Lúcia Montserrat fala que chegou a prestar depoimento. “A investigação foi concluída, encerrada e estive na delegacia para prestar depoimento. Agora, a obra está novamente sendo exposta, na sala preta. Fiquei avaliando como as coisas são arbitrárias porque, na verdade, a obra foi apreendida por chamar pedofilia. Só que as pessoas que tiveram acesso à obra não queriam ouvir a análise do lado do artista, que estava propondo justamente uma ação contra a pedofilia. Ao contrário, colocaram como se ela estivesse exaltando”, comentou.

Conforme a diretora, existiam obras que ela considera “muito mais chocantes” no dia dos fatos, porém, o nome causou todo aquele tumulto. “A gente nunca tinha enfrentado uma situação como aquela, de ter na minha sala um delegado com quatro pessoas armadas junto. E aí tanta coisa foi acontecendo, as pessoas se revoltando por uma questão estética e sem absorver o conteúdo real da obra, foi bem complicado na época. Só que a gente vai superando. Agora, quando envolve qualquer questão da sexualidade, temos o maior cuidado, como está ocorrendo agora”, finalizou a diretora.

Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax
Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax