“Víamos os detidos apanharem e tínhamos de aguardar nossa vez”, diz refugiado sírio no Brasil
O engenheiro mecânico Khaled*, de 41 anos, retornava com sua família do Líbano, após concluir mais um curso de inglês, quando foi detido na fronteira de seu país, a Síria. Diante de sua mulher e o casal de filhos, Khaled foi preso por agentes sírios de inteligência sem sequer saber o motivo. Yasmine*, sua mulher, […]
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O engenheiro mecânico Khaled*, de 41 anos, retornava com sua família do Líbano, após concluir mais um curso de inglês, quando foi detido na fronteira de seu país, a Síria.
Diante de sua mulher e o casal de filhos, Khaled foi preso por agentes sírios de inteligência sem sequer saber o motivo.
Yasmine*, sua mulher, passou a se considerar uma viúva. Ela e os parentes não conseguiam obter qualquer informação de Khaled.
Seriam quase quatro meses de agonia.
O engenheiro passaria por duas prisões — onde ficou isolado em solitárias e enfrentou sessões de tortura. Golpes de cassetete elétrico eram aplicados em várias partes do corpo.
A agressão era acompanhada por uma intensa tortura psicológica: todos os detentos eram obrigados a participar das sessões no pátio do centro de detenção.
“Víamos outros detidos apanhar e tínhamos de aguardar a nossa vez. Ouvi também vozes, gritos e choros de mulheres, crianças e bebês.”
Em entrevista, Khaled relata o sofrimento vivido nas penitenciárias sírias, onde o governo recorre, constantemente, à tortura para “interrogar, intimidar e punir pessoas consideradas opositoras”, segundo a ONU.
Após as sessões de tortura, o engenheiro ainda era obrigado a dividir uma cela de 80 cm por 120 cm com mais 13 pessoas.
“Nós nos revezávamos para dormir. Uns ficavam em pé e outros agachados.”
O engenheiro só foi descobrir o motivo de sua detenção na cadeia: seu nome é semelhante ao de um homem procurado pelos agentes sírios.
Khaled achava que, desfeito o engano, ele poderia voltar para casa. Mas só voltou a ser um homem livre após uma troca de 48 pessoas do Exército iraniano (que apoia o regime do presidente Bashar al Assad), nas mãos dos rebeldes, por 2.163 prisioneiros do governo.
Após ser libertado, Khaled se apressou para fugir do país. Em duas semanas, pegou sua família, atravessou novamente a fronteira com o Líbano e tomou um avião rumo ao Brasil, onde aterrissou em 10 de dezembro passado.
Hoje, Khaled é um dos centenas de sírios que vivem no País à espera de um visto de refugiado.
Tortura diária
Ele, a mulher e seus dois filhos fazem parte dos 3 milhões de sírios que tiveram de abandonar suas casas desde o início do conflito, em março de 2011. Nesse período, mais de 130 mil pessoas morreram — metade deles civis.
Em São Paulo, os quatro foram acolhidos pela família de Amer Masarani, comerciante sírio que vive no Brasil há 17 anos.
O grau de parentesco entre eles? Nenhum. “É o meu povo. Como posso falar não ao meu povo?”, conta Masarani.
O comerciante também ajuda a traduzir a história de Samir*, o jovem de 29 anos e olhos verdes tristes que quer voltar para a Síria.
Antes de chegar ao Brasil, Samir administrava sua ótica na cidade de Homs, no norte do país, um dos locais mais atingidos pelos combates entre tropas do governo e forças rebeldes.
O rapaz foi preso quando resolveu participar de uma manifestação contra o governo. No trajeto, foi capturado junto a várias pessoas, enquanto outras tombavam a seu lado, mortas pelas forças de segurança que reprimiam o protesto.
Durante 20 dias, Samir conta que foi torturado diariamente.
Os tapas, socos e choques eram acompanhados por gritos de “burro”, “maluco” e vários xingamentos. Ele também teve seis unhas das mãos arrancadas com um alicate.
“Me amarraram em uma cadeira e arrancaram a unha. Uma por dia.”
Sem tratamento e higiene necessária, todas infeccionaram.
O jovem dividia uma cela de 1 m² com mais três pessoas, com quem compartilhava a pobre e escassa refeição.
“Davam comida para a gente não morrer. Apenas o suficiente para aguentar mais tortura.”
Enquanto esteve preso, sua família correu para juntar dinheiro e libertá-lo: cerca de R$ 7.000 (US$ 3.000).
Mesmo após sair da prisão, Samir relata que nenhum médico de sua cidade quis cuidar de suas feridas.
“Ajudar um ex-prisioneiro significa que você é contra o regime. E pode ser preso e morto também.”
No Brasil há um ano e dois meses, Samir vive com seus pais e dois irmãos na zona Leste de São Paulo. Ele trabalha no bairro do Bom Retiro, em uma confecção de jeans.
Apesar de a maior parte da família estar reunida, seu coração ainda fica apertado ao lembrar da irmã que ficou na Síria e da qual não tem notícias há um mês.
Com seu português enrolado, Samir revela seu desejo para que a guerra civil acabe logo e ele possa retornar à sua pátria.
“Quero voltar para a Síria. E quero que Bashar al Assad morra.”
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