Num dia desses, Marcelo Serrado chegou mais cedo ao Projac. Passou pela maquiagem, vestiu seu figurino e, com o horário um tanto folgado, decidiu almoçar antes de gravar. Na praça de alimentação, aconteceu o inevitável: todos os olhares se voltaram para aquele que trajava uma bermudinha e exibia um topete provavelmente nunca visto na área.
 Ele não hesitou, engrossou o timbre – soltou um “E aí, meu irmão?” quase invocado, para contrastar com a imagem que ostentava – e fez seu pedido em uma lanchonete. O mordomo gay Crodoaldo Valério, seu personagem na atual trama das 21h, assinada por Aguinaldo Silva, diria que a voz certamente veio do útero. De volta à Globo depois de três novelas na Record, Marcelo conseguiu protagonizar o que poderia ser chamado de um case de sucesso. Na pele de Crô, o fiel servo de Tereza Cristina (Christiane Torloni), o ator se tornou a figura masculina mais querida pelo público em “Fina estampa” e ainda afirmou sua versatilidade em cena.
– Venho de dois vilões completamente diferentes. Tem gente que acha que para viver um deles basta fazer cara de mau, mas ninguém é uma coisa só: um bom ator, e são tantos que admiro, é capaz de fazer coisas diferentes e ir a lugares que a gente nem imagina – digressiona Marcelo, pouco antes de mais um dia de gravações.
Os vilões a que ele se refere fizeram com que não só os telespectadores passassem a vê-lo com outros olhos. No meio televisivo, é consenso que o ator teve mais papéis de destaque depois de partir para outro canal. Em “Vidas opostas”, de 2006, o perverso delegado Dênis Nogueira tinha um pé na psicopatia. Em 2010, o ator encarnou o poderoso e maquiavélico Bruno Villar em “Poder paralelo”, antagonista de Tony Castellamare (Gabriel Braga Nunes). 
Com Crô, Marcelo vira a página e encarna um tipo solar, que ele mesmo classifica como “divertido, sem ser espalhafatoso”.
– Estou meio surpreso. Sabia que ele poderia ser popular, mas estava no fio da navalha. Uma amiga que trabalha com literatura já me disse que Crodoaldo é um gay melancólico – comenta, ciente do reposicionamento profissional que vem vivendo, mas sem imprimir um clima de volta por cima: – Lá (na Record) interpretei vilões com uma trajetória muito rica. Também já fiz novelas em que a coisa simplesmente não aconteceu. Acho, humildemente, que sou um trabalhador, um operário. Mas sou grato ao Aguinaldo por ter apostado em mim e à Globo por ter aceitado a aposta dele.
Nem sempre a gente acerta. Mas se não puxarmos para a realidade, é difícil chegar a um lugar interessante.
A aposta em Marcelo veio de um desejo, tanto de Aguinaldo quanto de Wolf Maya, diretor da trama, de que um ator heterossexual interpretasse Crô. Fascinado pela patroa, a quem tem como uma Cleópatra moderna – em seu vocabulário, expressões vindas do Egito, como “rainha do Nilo” e “divina Ísis”, são praticamente vírgulas -, o mordomo guarda, por trás de seus trejeitos, mistérios como um amante secreto. Para o autor da novela, o personagem caiu nas graças do público por ser “verdadeiro, íntegro, digno, carinhoso e caloroso”.
– Ao contrário dos bonecos de plástico que nos últimos tempos representavam a facção homossexual nas novelas, ele é reconhecidamente humano: é uma pessoa, antes de ser gay – acredita Aguinaldo, ressaltando que Marcelo deu ao personagem a dimensão que o texto pedia. – Se estivéssemos em Hollywood, ele já seria aposta certa para o Oscar de ator coadjuvante. Sempre o achei muito talentoso, mas ele teve a oportunidade de provar isso, sejamos justos, durante sua passagem pela Record. Pensei que o altíssimo risco de fazer um papel totalmente fora de suas características seria benéfico para a sua carreira, por isso fechei a questão: o Crô seria ele ou mais nada. E deu certo – comemora.
Para compor o mordomo, o ator se entregou à observação. Foi a boates gays, claro; assistiu a filmes e, mais que tudo, tentou trazer a ficção para a vida real.
– Existem vários gays por aí; queríamos um dentro da realidade. Além do humor, tentei dar a ele uma tristeza, uma dose de sentimento. Crô ama aquela mulher que só pisa nele e que, para ele, é uma deusa. Poderia ir por um caminho mais fácil, mas seria uma coisa corriqueira, de dar pinta e pronto. Cada um tem sua graça, mas o nosso gay tem uma sofisticação – defende o ator.
Amigo de Marcelo desde a minissérie “Desejo”, de 1990, na qual trabalharam juntos, Wolf Maya conta que estudou intensamente o personagem com o ator antes da estreia do folhetim. A ausência de teatralidade e a presença constante do humor, aponta ele, é o caminho da identificação com o telespectador:
– Pesquisamos, buscamos referências, fizemos reuniões de leitura de capítulo. E o Marcelo é um ator muito observador, muito estudioso, ele trabalha com inteligência. Em cena e como diretor, acertamos uns detalhes, mas ele já vem para o estúdio com o personagem pronto. Aqui na Globo e fora também, ele demonstrou ser um ator completo e de muita segurança.
Sempre vi nele um ator versátil, com uma veia cômica pouco explorada
Para Marcílio Moraes, autor de “Vidas opostas”, Marcelo deve estar se divertindo exercitando seu lado mais cômico. O novelista diz que espera trabalhar com ele novamente.
– O delegado Nogueira era ao mesmo tempo refinado e brutal, corrupto e representante da lei, generoso por um lado e perverso pelo outro. Se o ator não atingisse a densidade proposta, faria uma caricatura. Felizmente, Marcelo entendeu e deu vida ao personagem na sua essência. Um desempenho magnífico, reconhecido pelos prêmios que ele recebeu. Revelou-se ali o grande ator que ele é – acredita.
Em “Fina estampa”, apesar das cenas carregadas de humor, Crô também protagonizou momentos fortes e densos. Na praia, foi humilhado por um grupo de fortões, liderados por Ferdinand (Carlos Machado). Recentemente, defendeu Celeste (Dira Paes) do violento marido Baltazar (Alexandre Nero). No entanto, o seu mordomo não levanta bandeiras: diante da ameaça, revidou na mesma moeda e montou um time gay de vôlei para enfrentar os machões em seu território. E é com Tereza Cristina que o personagem acaba tendo seus mais inspirados momentos. Porém, a admiração do servo por sua rainha do Nilo, adianta Aguinaldo, enfrentará um sério baque. Decepcionado com o passado da patroa, ele se aproximará da agora milionária Griselda (Lilia Cabral).
– Os dois se complementam afetivamente: Tereza Cristina precisa dele por perto, servindo-a. Apesar de tratá-lo muito mal algumas vezes, ela demonstra afeto mantendo a sobrinha dele, Vanessa (Milena Toscano), no restaurante do marido. É a estratégia da rainha, né? Mesmo que seja para esfolar, a pessoa precisa estar perto – diverte-se Christiane Torloni.
A atriz enxerga o colega como “outro obsessivo”:
– Marcelo gosta dos detalhes, das pequenas coisas que realmente constroem um personagem e das relações entre eles. Trocamos muito em cena e é maravilhoso poder contracenar com um ator que se entrega também.
A entrega que Christiane cita vai além da televisão. No cinema, Marcelo ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Paulínia pelo papel do conquistador Luiz Mário em “Malu de bicicleta”. Adaptado do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o filme o traz em um romance com a carioquíssima Malu, vivida por Fernanda de Freitas. O diretor Flávio Tambellini acredita que a transição para a comédia na TV fez bem ao intérprete:
– A partir do momento em que o Marcelo começou a interpretar personagens diferentes e a mostrar não somente a sua força para o drama, mas também para a comédia, ele deu um pulo na sua carreira, pois provou que não era um ator de um personagem só, mas, sim, um artista de característica e talentos múltiplos. Isso se aplica tanto no cinema, quanto na TV. Sempre vi nele um ator versátil, com uma veia cômica pouco explorada – elogia.
Enquanto o público e a equipe da novela celebram o acerto do personagem, Marcelo prefere não bobear. Manter o rigor até a reta final da trama, ele diz, é fundamental.
– Nem sempre a gente acerta. Mas se não puxarmos para a realidade, é difícil chegar a um lugar interessante. Crô é diferente: em vez de aplaudir, chora – avalia.