Ronaldo Costa, ex-diretor clínico do HR, afirma que foi demitido por denunciar uma onda de infecção hospitalar que teria matado 33 pacientes do hospital; ele suspeita que o problema do passado, denunciado ao MPE, possa ter relação com o caso vivido por uma estudante que ficou paraplégica após ficar internada quatro dias

O Hospital Regional, em Campo Grande, um dos maiores de Mato Grosso do Sul, virou foco de notícias ruins nas últimas semanas. Note algumas delas: uma cabeleireira vestiu-se de palhaça e ficou dois dias e meio em frente ao hospital, um manifesto contra uma cirurgia mal-sucedida submetida lá há alguns meses. Outra: servidores do hospital acionaram o Ministério Público Estadual por discordarem da contratação de três funcionários, sem concurso público e, pior, os novos empregados seriam parentes de chefes de departamento, um indício de nepotismo. Já em janeiro deste ano, a estudante Rita Stephany de Ribeiro, 19, foi levada para o HU (Hospital Universitário) para fazer um procedimento de implantação de cateter para desobstruir o canal da urina. Embora simples, após a operação, Ritinha, como é mais conhecida, saiu do hospital sem andar nem falar e hoje vive de ajuda dos parentes, numa cama.

A direção do HU, em comunicado oficial, disse que a estudante chegou ao hospital com um quadro grave de infecção. Quatro dias antes, Ritinha tinha sido internada no HR.

Sete anos atrás, em 2003, o HR sofreu a invasão de agentes infecciosos, multi-resistentes, que teriam matado ao menos 33 pessoas. Àquela época, o diretor clínico do hospital, Ronaldo Costa, também médico do trabalho, denunciou o caso ao Ministério Público do Estado e, por conta disso, segundo ele, foi demitido pelo comando do hospital. Ele suspeita que o caso sofrido por Ritinha possa ter relação com o problema enfrentado antes pelo hospital. Costa, em entrevista concedida na sexta-feira passada, comentou situações administrativas supostamente ilegais que estariam ocorrendo no HR, uma delas diz que a empresa que administra o hospital aparece na lista do Cadin, cadastro dos inadimplentes. Eis o diálogo

Midiamax – Doutor Ronaldo, recentemente uma estudante de 19 anos de idade passou pelo Hospital Regional, onde ficou quatro dias internada, depois disso, ela seguiu para o Hospital Universitário para fazer uma cirurgia simples, a conhecida tirada de rim. Após esse procedimento, a jovem saiu de lá paraplégica e agora a direção do Hospital Universitário afirma que a paciente já chegou com um quadro sério de infecção, o senhor acha que o episódio sofrido por esta paciente, ocorrido em janeiro deste ano, tem a ver com o problema descoberto lá atrás, em 2003, quando houve um surto de infecção no HR?

Ronaldo Costa – Pode haver relação se após o surto de infecção hospitalar de 2003, as exigências dos processos de desinfecção, de padronização dos antibióticos, de educação continuada da equipe de saúde, de materiais necessários, de cumprimento da obrigação de divulgação do mapa mensal de infecções, no interior do HR, não tiverem sido efetivadas.

Midiamax – Quando houve o surto, o senhor recorda que medidas foram tomadas?

Ronaldo Costa – À época tomamos conhecimento de cinco casos de infecção hospitalar por uma bactéria multiresistente aos antibióticos. Levamos à direção geral do hospital a proposta de interdição da enfermaria até o desfecho total dos casos, oferecendo todo suporte de recursos humanos, estruturais e materiais para os pacientes no próprio setor onde se encontravam os pacientes contaminados. Montamos uma equipe multiprofissional e intersetorial para agir preventivamente em todo o hospital. Pois bem, a nossa proposta de ação foi fulminada pelo diretor geral da época e pelo secretário estadual de Saúde, que se intrometeu indevidamente onde não era de sua alçada. Afastaram-me ilegalmente do cargo de diretor clínico, depois me demitiram.

Midiamax – Mas o que a direção do HR fez para combater o surto?

Ronaldo Costa – Afirmaram que não havia infecção hospitalar e continuaram a internar pacientes na clínica médica, conduziram pacientes da clínica médica para outros setores do hospital. A infecção alastrou-se por todo o hospital, ao meu ponto de vista, propositadamente, uma vez que já eram conhecidos os casos de infecção. Insistir em expor novos pacientes a convivência em um mesmo ambiente em que se encontram pacientes com infecção por microorganismos resistentes, conscientemente é igual à condenação de um paciente à pena de morte sem ele ter cometido crime e sem ter havido julgamento. É execução sumária.

Midiamax – Mas a época o órgãos fiscalizadores, como o CRM (Conselho Regional de Médico), não se manifestou?

Ronaldo Costa – Imagine que o CRM foi fazer uma visita num dia no HR, sem comunicar e sem a presença do diretor clínico diplomado pelo próprio Conselho, e sem critérios técnicos afirmou que tudo estava normal no HR. Isso aconteceu após a morte 33 pacientes confirmados pela Anvisa pela causa de infecção hospitalar. Uma lástima do órgão máximo de controle do exercício profissional da medicina no Estado. Mas com alguns nuances a serem citados: o ex-presidente da Fundação de Serviços de Saúde [controlador do hospital], à época era o presidente do CRM e médico patologista do hospital, sendo que dos casos de óbitos, nem todos eram submetidos à necropsia para investigação da causa, podendo ter sido muito mais os casos do que os que foram confirmados pela Anvisa a partir dos exames bacteriológicos solicitados pelos médicos.

Midiamax – Então, o CRM passou por lá, afirmou não ter enxergado nenhuma irregularidade e não mais foi feito, é isso?

Ronaldo Costa – O diretor Geral do HR à época ao invés de assumir um viés técnico de ação preferiu o viés político, e aí foi o caos. O CRM abriu um processo contra mim, que investigou profundamente minhas suspeitas e reconheceu que agi de forma correta optando primeiramente pela boa prática da medicina e pela vida das pessoas. Mas mesmo de posse de todos os documentos, de igual forma como abriram processos ad hoc [é uma expressão latina cuja tradução literal é “para isto” ou “para esta finalidade”] contra o diretor clínico, isso não aconteceu contra os responsáveis pelos novos casos de infecção e consequentes óbitos. Ninguém foi processado. Ficaram sem “oportunidade de esclarecimento e julgamento da responsabilidade da parte de cada um”, em claro processo de dois pesos duas medidas.

Midiamax – Ronaldo, o Ministério Público Estadual conheceu a causa, fez alguma coisa?

Ronaldo Costa – O Ministério Público, tido o “guardião dos direitos da sociedade”, desde 2003 tem todo o processo em mãos e não concluiu até agora o inquérito 001/2003 da 32ª promotoria. Punidos até o momento apenas os pacientes, os familiares que perderam seus entes queridos, e profissionais éticos do hospital que agiram corretamente e foram transferidos, demitidos, transferidos do seu local de trabalho. Não entendemos até agora esta inação, ou ação de perdão por transcurso de prazo por parte do Ministério Público Estadual. Quando procuramos o Ministério Público procuramos por anseio de Justiça. Se clamássemos simplesmente por perdão procuraria a conciliação ou a religião.

Midiamax – Pelo que tem dito lá em 2003 havia uma equipe médica interessada em desenvolver um bom trabalho no hospital…

Ronaldo Costa – Na verdade percebemos mais tarde, que o corpo clínico do HR, jovem e competente, sem a concentração monetária do poder financiador da medicina no nosso Estado, estava de fato construindo um grande hospital. E novos serviços de alta e média complexidade era apenas uma questão de adequação estrutural e de tempo. Então foi entendido que este projeto pujante e eminentemente público ameaçava a hegemonia da privatização dos recursos públicos do SUS para as instituições privadas, como ocorre até hoje. Para se ter uma ideia do que isto significa nos últimos cinco anos uma instituição privada que internava 700 pacientes por dia e recebia R$ 3,5 milhões, hoje interna 288 pacientes por dia e recebe do SUS R$ 9 milhões. O HU continuou recebendo R$ 1,3 milhão para 250 leitos/dia e o HR R$ 1 milhão por mês para 350 leitos/dia. E o serviço que já era para ter sido instalado no HR, como a radioterapia, ainda não foi instalado porque o Ministério da Saúde e o Inca (Instituto Nacional de Câncer) vieram fazer a visita ao Hospital Regional, e para surpresa de todos, o hospital não tinha o Plano Diretivo anual. Logo, se não é conhecido de sua própria vocação e de seus projetos futuros, não está preparado para receber investimentos. À esta atitude (presumida?) de não fazer, antecipa-se o setor privado para assumir o dever público, mas só na Alta Complexidade, ou nos serviços mais caros.

Midiamax – Essa crítica alcança o Estado, é isso?

Ronaldo Costa – Agora percebam que o Estado não assume o papel de ampliador de uma rede pública própria, conforme deliberou a VI Conferência Estadual de Saúde, apenas contrata serviços privados, tenta privatizar o serviço público de saúde, como no Hospital Estadual de Coxim, não convoca concurso público para a saúde para repor os aposentados e demissionários e ampliar a rede pública com novos serviços. Não assume a deliberação do Tribunal de Justiça de implantar o Plano de Carreira, Cargos e Salários da Saúde há três anos e meio, desrespeitando clara e impunemente a justiça. Sim, impunemente, porque nas deliberações do TJ não é citada qual punição recairá sobre o governador ou à secretária de Administração se não cumprir a deliberação de implantar o PCCS-SUS. Para o Sindicato dos Trabalhadores em Seguridade Social, a deliberação já foi mais clara no período da greve. Se não voltar ao trabalho multa diária. Diferenças de tratamento incompreensíveis.

Midiamax – O senhor disse que o hospital contrata apenas serviços privados, isso é ilegal?

Ronaldo Costa – Para complicar mais ainda, a secretaria estadual de Saúde resolveu contratar uma empresa privada para dirigir o Hospital Regional. Com todo o corpo administrativo concursado, que conhece e saberia propor as soluções gerenciais para o HR contrataram a SPDM (Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina). Divulgaram a UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), mas com um erro grosseiro: a UNIFESP e o HR-MS por serem instituições públicas não incluiria remuneração por serviços, mas sim contratos mútuos de cooperação técnica e científica. Aí, após o ex-reitor da UNIFESP, membro da SPDM ser afastado, após a nova gestão, o Estado teve que colocar como contratado de fato a SPDM. Mas se desde o início já era SPDM, a mesma não poderia ter sido contratada, pois estava inclusa no Cadin (Cadastro de Inadimplentes da Fazenda Nacional) por sonegação de INSS. E o Ministério Público sabia de tudo desde o início e concordou com a contratação segundo informações da imprensa. O cidadão que tem uma dívida com a PGFN (Procuradoria Geral da Fazenda Nacional) perde o talão de cheque, o cartão de crédito, o crédito público, o direito de participar de licitações… Estranho mais este consentimento aconteceu

Midiamax – E a SPDM modificou a gestão do hospital?

Ronaldo Costa – E as mudanças propostas pela SPDM iniciaram: transferiram o almoxarifado do Hospital Regional e o Arquivo Médico para fora do hospital (e tem conselheiros do CRM trabalhando no HR). Na auditoria do DENASUS, em 2003, foi exigida a construção do almoxarifado no HR. O arquivo médico só poderia ser transferido para pacientes que já tivessem mais de 25 anos de prontuário em desuso. Como o HR iniciou as atividades em 2000, os arquivos só poderiam ser transferidos lá pelo ano de 2025. Então, diante de tantas permissividades, de estreitamento e diminuição do público diante do privado, o curso de precarizações dos ambientes de trabalho, das condições de trabalho, das condições materiais, o anseio frustrado de evolução dos processos e serviços hospitalares, da falta de democracia interna, sem eleição direta para diretores do HR-MS com a nomeação de estranhos.

Midiamax – Está dizendo que os servidores do Hospital Regional vivem hoje num clima de incerteza?

Ronaldo Costa – Todo este desprestígio do público, da prata da casa, do clima de incerteza enquanto não implantar o Plano de Carreiras Cargos e Salários do SUS, a contratação simplificada ilegal e consentida de profissionais sem concurso, tudo isto cria a atmosfera de insegurança e desconstrução, a meu ver proposital por parte de um governo que não investe nem os 12% obrigatórios na saúde, e dentro do que investe ainda coloca despesas não relativas à saúde, conforme denunciou Conselho Estadual de Saúde. E são decisões políticas, pois o governador do Estado, o prefeito de Campo Grande, os secretários de saúde são técnicos da saúde. Não podemos nem falar que os recursos são poucos enquanto estiverem sendo tão mal aplicados como agora.

Midiamax – Hoje o SUS, Sistema Único de Saúde, é tido como uma referência mundial, o recurso, então, não estaria sendo bem administrado?

Ronaldo Costa – Não caminhamos nenhum centímetro em direção à autonomia do SUS público em relação à contratação de serviços privados. A iniciativa privada pode participar do SUS em caráter complementar, mas complementar aqui em MS é o setor público, pois mais de 70% dos recursos são direcionados para o setor privado e menos de 30% para o setor público, incluindo ações ambulatoriais, de PSF (Programa Saúde da Família), de campanhas e de hospitais públicos. Imagine por exemplo se um hospital que vende 700 leitos dia, efetivamente interna 283 leitos dia, tem ociosidade SUS de 417 leitos dia, para que construir ali um Hospital do Trauma, com dinheiro público, sobre uma obra previamente financiada em R$ 4 milhões pelo Ministério da Saúde e não cumprida (Maternidade)? Deveria haver sim rigor da CGU (Controladoria Geral da União), TCU (Tribunal de Contas da União), MPF (Ministério Público da União) para obrigar a conclusão da obra anterior e punir os culpados pelo recebimento dos recursos sem a devida conclusão da obra. Este é um exemplo de gestão austera e eficiente? [comentário tem a ver com o projeto de construção de uma maternidade na Santa Casa]. Se existe impunidade neste campo, imagine em se falando de processo de controle de infecção hospitalar? Até agora, por agir corretamente defendo a vida das pessoas, os punidos foram os que agiram com precisão técnica e retidão. Termino, portanto a entrevista perguntando: há clima positivo e segurança para que haja prevalência do bem sob o crivo de domínios como os atuais nas políticas de saúde?