Casas dos índios, em Dourados, levam o nome de chocolate por deboche criado pelos próprios moradores; elas foram erguidas com dinheiro público e simplesmente desmancharam na primeira intempérie. Vanessa, a da foto, faz pose ao lado do lugar onde mora, com teto, mas nada dentro

O João-de-Barro pacientemente constrói sua casinha no alto da árvore com uma portinhola voltada para o norte. Gravetos e barro no bico num vai-e-vem frenético até que a casa esteja pronta.

Ao mesmo tempo no primeiro semestre de 2004 uma espécie de João-de-Barro em forma de empreiteira venceu uma licitação milionária para construir casas para os índios da Reserva Indígena de Dourados.

A casa do João ficou pronta em menos de um mês e seis anos depois continua imponente numa aroeira postada numa das encruzilhadas da Aldeia Bororó, a mais paupérrima de Dourados.

Já as casas construídas pelo João Empreiteiro derreteram na primeira chuva por falta de cimento e consistência cidadã. Ficaram conhecidas como “Casas de Chocolate” e denúncia encalacrou no Congresso Nacional. Não deu em nada. Em nada mesmo para as famílias indígenas que continuam em barracos de lona.

Em 2004 enquanto o João passarinho e o João Empreiteiro amassavam o barro, Vanessa Marti estava com dois anos de idade e mal sabia o que era uma casa. As ocas pagas com dinheiro do Governo Federal cederam e viraram chão. Tiveram que ser reconstruídas. Mais prejuízos para o Governo e para a comunidade indígena que ficou um gosto amargo de desrespeito na boca e um ânsia por justiça.

Vanessa cresceu. Está com oito anos de idade. Estuda a terceira série na Escola Municipal Lacui Roque Isnardi na Aldeia Bororó onde aprendeu a ler e a ver o mundo de outras formas. Quando sai da aula, Vanessa vive o seu mundinho infantil rodeada de gatos e cachorros, alguns sarnentos outros não. A brincadeira da menina em seu universo indígena gira em torno dos seus animais de estimação. Enquanto abraça seus cachorrinhos, ao longe um belo gato preto espreita os cabelos de Vanessa ocres do sol.

 Vanessa acorda todos os dias e vê seus pais engalando uma casa nova construída rente a cabana onde dorme seus melhores sonhos. A Casa é uma daquelas “cinquenta” que o Governo do Estado inaugurou e “entregou” para as famílias em março deste ano com direito a falatório e foguetório colorido.

Acontece que a Casa de Vanessa assim como de dezenas de índios foram entregues inconclusas. O sonho da casa própria ainda continua sendo sonhado. Vanessa, na escola, aprende a língua da tribo, a língua portuguesa e outras linguagens verbais e não verbais. Aprende a força da semântica e de todas as significâncias.

Num desses passeios por dentro da casa “assombrada”, Vanessa cantava-recitava Vinicius de Moraes. Ela nem sabe quem foi Vinicius mas já decorou todos os versinhos de “A Casa”. Ela sabe que a sua casa não é de chocolate como aquelas que os índios ganharam em 2004, mas sabe também que não é uma “casa de verdade”.

Vanessa tem uma casa muito engraçada onde apenas uma galinha velha e seus pintinhos ciscam no chão sem cimento alguns bichinhos para comer.

Na casa da menina ninguém mora. Tem teto, mas não tem mais nada. “Ninguém pode entrar nela porque não existem contra piso”. Apenas o chão vermelho. Não tem janela! Na casa que os pais de Vanessa ganharam do governo Guaicuru as crianças não podem ler por causa da escuridão. Os fios da energia elétrica não apareceram. Na casa “muito engraçada” ninguém pode fazer pipi e muito menos “totô”, pois não tem pinico, não tem vaso sanitário, pia, torneira é um banheiro sem chuveiro muitos menos eira ou beira. A Casa foi mal construída sem nenhum esmero.

A casa não está na rua dos bobos, pois de tonto o índio de Dourados não tem nada. O que dá para sentir nos olhos da pequena Vanessa é que a esperança tem fim e a justiça com o povo Guarani precisa acontecer. Os olhos da menina, vivos e cintilantes são faróis de uma nova era que virá. Um novo tempo em que os Governos e a sociedade não tratarão os índios e os não índios como “bobos”. Um tempo onde não haverá mais casas de chocolate e muito menos engraçada.

Vanessa vê a sua casa sem janelas e sem vida enquanto continua vivendo e sobrevivendo das poesias vistas na pequena escola que tem portas, janelas, cultura, saber, comida numa Reserva Indígena salpicada de ermidas sem sal nem açúcar.