A representatividade da maternidade atrelada aos cuidados privados da casa contribuem para reforçar estereótipos e alimentar muitas campanhas publicitárias de Dia das Mães. A sociedade ainda enxerga a maternidade como o destino natural das mulheres, que vem atrelado a renúncias. Como é o caso das mães que optam por abdicar de uma carreira, por exemplo, e ficam encarregadas de tarefas como cozinhar, limpar e cuidar dos filhos.
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Esta reportagem do Jornal Midiamax integra uma série especial em alusão ao Dia das Mães, celebrado neste domingo (11), e explora o campo minado da publicidade voltada a este grupo. Apesar dos avanços em discursos que apresentam múltiplas facetas da realidade materna, incluindo novas configurações familiares e mulheres que precisam dar conta da jornada de trabalho formal e dos cuidados da casa, a apuração se deparou com um mercado ainda tradicionalista.
Mas, se ao mesmo tempo as agências encontram dificuldades em engajar campanhas institucionais e algumas marcas varejistas optem por não se envolver em certos discursos sociais, elas ainda precisam se alinhar a eles para vender.
Retrato da maternidade para a sociedade
Segundo a gestora e proprietária da Agência SiM, Flávia Paniago, a vontade de inovar existe, mas nem sempre encontra espaço. Um dos maiores desafios está na rotina corrida das agências, em conjunto com a resistência de alguns clientes.
“Nem sempre temos tempo hábil para planejar e apresentar uma ideia diferente e defendê-la com energia, especialmente sabendo que ela provavelmente será rejeitada”, comenta a gestora.
Além disso, Flávia destaca que muitos profissionais têm medo da reação do público e preferem evitar polêmicas ou conflitos, mesmo quando gostam e apoiam alguma ideia. “Não dá para colocar toda a responsabilidade nos clientes. Estamos todos inseridos em uma cultura maior, que ainda reforça certos padrões e torna mais difícil romper com eles”.
A diretora de criação da MV Agência, Nadia Nadalon, de 36 anos, explica que quando o setor de varejo investe em campanhas publicitárias, existe uma expectativa de que o investimento gere bons resultados em vendas. Por isso, é difícil certas marcas abraçarem campanhas 100% institucionais.
“Nós temos um mercado aqui em Campo Grande mais tradicional, então a gente tem uma limitação de discurso e de debates da sociedade que as marcas vão se envolver. São campanhas que homenageiam, mas que ao mesmo tempo querem uma conversão. São campanhas que precisam trazer resultado”, defende a diretora.
Mercado busca diversificar nas ‘entrelinhas’
O diretor de criação Lucas de Mello, de 27 anos, analisa que nos últimos anos houve um importante avanço: as marcas estão cada vez mais abertas a explorar a diversidade de narrativas e alinhá-las à realidade das pessoas.
“Isso acontece porque não é só a publicidade que está mudando, mas a própria sociedade. O retrato social das famílias, das mulheres e da maternidade se transformou, e as marcas que desejam se manter relevantes entendem que precisam acompanhar essas mudanças. Nosso foco está em narrativas verdadeiras, humanas e com propósito, seja para marcas com forte apelo institucional ou para ações mais voltadas ao consumo”, detalha.
A diretora Nadia Nadalon complementa que a saída é buscar atrelar a parte institucional com a parte do resultado em uma comunicação estratégica, que faça sentido para o cliente. “Não é toda marca que faz sentido levantar uma bandeira muito explícita sobre determinado assunto. A gente tenta inserir esses debates de formas diferentes a fim de que as marcas se conectem a todas as pessoas sem fazer distinção”.
A gestora Flávia Paniago comenta que busca fazer um movimento constante de escuta e adaptação, para captar as diversas formas de ‘maternar’ e dar voz às histórias. “Ainda é um processo em construção e há um longo caminho pela frente antes de podermos dizer que estamos realmente exaltando a diversidade, mas estamos atentos e comprometidos em seguir nessa direção com responsabilidade”.

Publicidade tenta retratar ‘maternidades reais’
Para o diretor Lucas de Mello, o primeiro passo para evitar cair no estereótipo é ouvir mães reais, dentro e fora da equipe, e buscar compreender suas experiências. Isso contribui para desconstruir a imagem da “mãe perfeita e sorridente” e dar lugar a retratos mais honestos.
“A adaptação faz parte do nosso processo criativo e estratégico. Estamos sempre observando os movimentos sociais, ouvindo especialistas e analisando as transformações no consumo. Isso se reflete na forma como sugerimos narrativas, propomos representações mais reais e diversificadas e ampliamos o conceito de ‘mãe’ nas campanhas”, completa.
A gestora Flávia Paniago afirma que não adianta tentar surfar na onda da diversidade sem propósito. Para ela, uma campanha genuína nasce de um olhar realista para o público-alvo, e a compreensão de que existem muitas formas de amar, cuidar e maternar.
“As pessoas percebem quando a mensagem não é coerente com a marca. Acredito que o primeiro passo para fugir dos estereótipos é ouvir: entender quem é o cliente, quem é o público dele e quais são as referências de maternidade que fazem sentido naquele contexto. Nem toda mãe é carinhosa e delicada o tempo inteiro. Nem toda maternidade é biológica ou tradicional. Fugir do estereótipo é também assumir essa diversidade”, finaliza.
A publicidade e o ‘bom maternar’
A antropóloga e pesquisadora em temas de gênero, sexualidade, diversidade e educação, Anna Carolina Horstmann Amorim, explica que as campanhas publicitárias ainda recorrem ao estereótipo da mãe cuidadora e dona de casa porque esse modelo está enraizado na cultura e nos papéis de gênero historicamente atribuídos às mulheres.
A pesquisadora analisa a existência de uma expectativa social de que a mulher seja naturalmente voltada ao cuidado da casa e da família, enquanto os homens ocupam o espaço público e produtivo. Isso reflete uma lógica patriarcal que associa o feminino ao mundo doméstico — e, portanto, a atividades consideradas de menor prestígio — e o masculino ao trabalho externo e ao sustento da família.
Na contramão da visão tradicional da maternidade, Anna explica que debates sobre outras formas de maternar — a exemplo de mães que trabalham fora de casa, que compartilham o papel de cuidados da casa ou dos filhos, ou que não se encaixam no modelo da “mãe perfeita” imposto pela sociedade — vem ganhando espaço.
No entanto, essas experiências ainda enfrentam resistência social. “A mulher que trabalha fora ou a mulher que não cumpre com todos os requisitos da ‘boa dona de casa’ muitas vezes sente culpa, se sente pressionada, se sente insuficiente ou pode sentir que está falhando na sua função de mãe. A gente tem um mercado de consumo pensado e que insiste nesses estereótipos e reforça eles ao colocar determinados produtos, determinadas identidades ou determinadas funções atribuídas à mulheridade”, explica.

Ser mãe não é ‘destino final’ da mulher
Segundo a antropóloga, a publicidade é uma ferramenta poderosa de construção simbólica, que pode transformar percepções culturais ao mostrar outras possibilidades de existência para mulheres e mães. “Impactaria positivamente a gente ver publicidades abertas a outras maternidades possíveis, que não só essa grande mãezona do lar”, completa.
Além disso, Anna reflete que campanhas mais diversas têm o potencial de impactar positivamente tanto a representatividade quanto as vendas, porque dialogam com um movimento cultural já em curso: o questionamento dos estereótipos tradicionais ligados à maternidade.
“Ser mãe não é o destino final e nem o destino definidor da identidade da mulher. Talvez desvincular um pouco essas duas dimensões poderia ser importante, porque campanhas publicitárias, a mídia e a veiculação dessas representações importam para a gente construir o nosso imaginário. Essa construção se faz e se refaz a partir de discursos sociais”, afirma Anna.
Como romper com os estereótipos?
Conforme explicação da antropóloga, a figura estereotipada da mulher como mãe, cuidadora e responsável exclusiva pela vida doméstica tem “raízes profundas em uma sociedade machista e patriarcal”. Esse estereótipo não só limita as possibilidades femininas, mas impõe uma obrigatoriedade à maternidade como destino natural, que anula a individualidade e sobrecarrega as mulheres.
Anna destaca que romper com esse padrão envolve questionar essas construções sociais e valorizar a maternidade apenas quando ela for uma escolha, e parar de associá-la à ideia de renúncia total, além de apresentar novas narrativas da maternidade que fujam do clichê.
A antropóloga ainda acrescenta que a presença ativa dos homens no cuidado e nas tarefas domésticas é essencial nesse processo de mudança, já que a equidade só é possível quando as responsabilidades são compartilhadas.
Dividir o cuidado e entender que nenhuma atividade é “de mulher” ou “de homem” por natureza, ajuda a desconstruir essas desigualdades. “As mulheres também podem exercer funções de liderança, podem receber altos salários e continuar exercendo a função de mãe, mas sem que isso seja o único destino possível, sem que a maternidade, quando escolhida, não seja um evento que te impede de fazer as coisas, que te impede de ter uma vida particular”.
Afinal, o que querem as mães?
A técnica de enfermagem Nádia Cristina Evangelista, de 45 anos, comentou que os anúncios têm ficado cada vez mais “apetitosos”, e que, na sua visão, despertam nas mães o desejo de serem presenteadas. Por ser uma mulher caseira, e bastante apegada aos filhos, descreve que o anúncio ideal seria aquele em que a mãe é representada como “uma pessoa firme, que dá muito amor e carinho”.
A dona de casa Rosane Arantes, de 48 anos, relata que compreende que a data é altamente lucrativa para o comércio e varejo, e que existem múltiplas facetas maternas. No entanto, opina que mães querem ser vistas como mulheres, e não apenas como figura que sempre “doa” tudo de si.
“Como mulher, [eu gostaria de ser representada] bem cuidada, amada, e respeitada, acima de tudo. Tem pessoas que gostam de cuidar das outras, tem pessoas que gostam de ser cuidadas. Eu tenho sempre muito cuidado para falar desses parâmetros, porque cada um tem um tipo de sensibilidade”, expressa Rosane.

A fotógrafa Giovanna Resende, de 27 anos, relata que quando se fala em ‘Dia das Mães’, logo lhe vêm à cabeça produtos para pele, perfumes e demais itens de cuidados pessoais. Apesar de não serem necessariamente itens que colocam a mulher em posição de ‘doméstica’, a fotógrafa sente que esse discurso está “saturado, não é inovador”.
“Gostaria que o trabalho materno fosse mais reconhecido diariamente, não apenas em um dia, no qual a mãe só é lembrada e valorizada nessa data específica. Quero me enxergar de verdade, sem perfeição ou superficialidade como somos acostumadas a ver nos comerciais. A maternidade é tão complexa, imperfeita e cheia de amor, acredito que uma propaganda mostrando isso ganharia muito mais o meu coração”, opina.
A vendedora autônoma Rosangela da Silva Leão, de 54 anos, opina que a publicidade no dia das mães, ultimamente, tem se tornado bastante ‘fria’, pois tem a sensação de que a data não tem mais o mesmo peso e significado que costumava ter. Ao ser questionada sobre como gostaria de ser retratada em um anúncio, ela respondeu que seria como “uma mãe guerreira, porque a gente quando é mãe, tem que ser bem forte pra aguentar as quedas dos filhos”.

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