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Cotidiano

Em MS, 72 trabalhadores ‘pararam’ por burnout, mas casos podem ser subnotificados

A síndrome é uma doença ocupacional e o empregador pode ser responsabilizado se o ambiente de trabalho for tóxico
Murilo Medeiros -
Imagem ilustrativa. (Foto: Helder Carvalho, Jornal Midiamax)

Alexandre Goicochea, de 30 anos, dormia como pedra, mas só até meia-noite, quando acordava ansioso e se revirava na cama até as 4h da madrugada. Neste horário, o sono sumia de vez e tornava o cansaço em rotina. No trabalho, olhava para os alunos e queria ensinar, mas a mente ‘dava branco’ — era difícil manter a concentração. A dor de cabeça não passava nem com remédio forte e, sem motivo, o professor ficava constantemente impaciente e estressado.

Professor de História com 11 anos de experiência, Alexandre já estava acostumado com uma rotina extenuante: trabalho na escola, somado às horas de preparação e correção de atividades em casa. Em junho do ano passado, chegaram os primeiros sintomas. Passaram-se as férias de julho e, apesar do descanso, os sinais de alerta só pioraram. O cérebro pediu um tempo e Alexandre largou tudo para tratar uma doença silenciosa: o burnout — ou síndrome de esgotamento profissional.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) incluiu a doença na classificação oficial em 2022. A lei do Brasil reconhece o burnout como doença ocupacional, o que quer dizer que o empregador pode ser responsabilizado se o ambiente de trabalho contribuir para a condição de saúde. Um psicólogo ou psiquiatra deve acompanhar o tratamento, que, em alguns casos, exige afastamento da empresa. 

registrou 72 concessões de auxílio-doença por burnout em 2024, de acordo com o Ministério da Previdência Social, sendo o 9° estado com mais casos, proporcionalmente ao número de habitantes. Porém, é possível que estes dados sejam subnotificados, já que a fiscalização e a comprovação do nexo causal entre a doença e o trabalho ainda são desafios. Isto dificulta que a Justiça do Trabalho reconheça os direitos de trabalhadores ao afastamento temporário, além de eventuais indenizações.

Quando a luz vermelha pisca

A psicóloga Danielly Martins, especialista em questões profissionais, agrupa os sinais e sintomas de burnout em três dimensões: esgotamento, despersonalização e diminuição da realização pessoal. 

“No trabalho, a pessoa aparenta estar mais irritada e estressada, não consegue relaxar, concentrar-se, pensar de forma lógica, tomar decisões e ter iniciativa. Além disso, diverte-se menos, sente-se cansada, deprimida, angustiada, ansiosa, e em casa apresenta dificuldade para dormir. Aumenta o consumo de cigarro e café e, como sintomas físicos, pode apresentar problemas no aparelho digestivo, aumento da pressão arterial, dores de cabeça e problemas musculares”, destaca a psicóloga.

Foi assim com Alexandre Goicochea, que saiu de férias esperando voltar menos estressado, mas a condição  já tinha se tornado crônica. “Os sintomas não passaram, é algo bem estranho. O corpo e a mente estão piscando a luz vermelha no painel, mas, por conta dos estigmas da sociedade, mesmo observando essa luz, queremos continuar para ‘sermos fortes’”. 

Danielly Martins destaca que o estresse é uma resposta normal do corpo humano, mas pode ser um sinal de alerta. “Quando a pessoa é exposta a situações estressantes por longos períodos, como pode ocorrer em ambientes de trabalho tóxicos e disfuncionais, o burnout pode surgir como uma resposta ao estresse ocupacional crônico”. Isso quer dizer que o estresse é resultado de tensões passageiras, enquanto a síndrome de burnout resulta de tensões contínuas.

A psicóloga lista alguns fatores que favorecem desenvolvimento de burnout:

  • Assédio e violência no local de trabalho;
  • Excesso de exigências psicológicas; 
  • Falta de influência ou autonomia no trabalho; 
  • Ausência de suporte social; 
  • Má qualidade da liderança; 
  • Baixa remuneração;
  • Escassez de profissionais para a atividade;
  • Turnos de trabalho excessivos;
  • Contato direto com clientes ou usuários desafiadores; 
  • Falta de especificidade de funções e tarefas;
  • Ausência de autonomia e autoridade para tomar decisões; 
  • Excesso de cobranças e falta de apoio da liderança;
  • Relações difíceis com colegas ou chefia;
  • Falta de reconhecimento;
  • Pouca satisfação com o que se faz.

Sociedade doente

“É complicado você reconhecer que está com essa doença, pois são tantos preconceitos enraizados em nós e nas outras pessoas, que a sociedade pensa que estamos fingindo algo para não trabalharmos”, confessa Alexandre Goicochea. Ele diz que mascarou os próprios sintomas para evitar julgamentos, e isso facilitou o silencioso crescimento do burnout.

Para o professor, o afastamento do trabalho foi um fator importante no tratamento da doença, mas essa nem sempre é a solução. Danielly Martins explica que o burnout não é um problema do patrão com o empregado, mas de toda a sociedade. “É a ponta do iceberg, que escancara uma sociedade adoecida e esgotada. Está relacionado a uma mudança no trabalho e no ‘trabalhar’, decorrente de transformações tecnológicas, sociais, ambientais e econômicas”.

Alexandre demorou, mas percebeu que não dava mais para romantizar a ‘correria do dia a dia’. Então, o desafio seguinte foi contar às pessoas o que estava passando. “No início, eu preferi não expor publicamente, pelos preconceitos que via na sociedade. Porém, percebi que deveria, sim, falar sobre isso e busquei conscientizar as pessoas a procurarem apoio sempre que se sentirem mal”.

Burnout dá processo

A reação de amigos e familiares surpreendeu o professor. “A palavra ‘pare’ foi um consenso. Recebi mensagens de apoio de muitas pessoas, ninguém é forte o tempo todo. Fui me consultar com um psiquiatra, que me afastou do trabalho”, diz Alexandre. A primeira licença foi de 45 dias, depois ele terminou de cumprir o contrato até fevereiro de 2025 e se desligou permanentemente.

Existem muitos pontos que podem ser relacionados à ocorrência de burnout, mas a sobrecarga de trabalho é uma constante. Alexandre, por exemplo, precisava conciliar a rotina de professor com outras funções administrativas do colégio. Ele não guarda ressentimentos do empregador, mas o burnout pode até virar caso de Justiça, com ação de danos morais e materiais, se a empresa mantiver um ambiente de trabalho tóxico.

O Diego Granzotto, presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Mato Grosso do Sul, explica que a Justiça pode responsabilizar o empregador, especialmente se as condições do trabalho contribuírem para o desenvolvimento da doença. “Isso facilita a concessão de benefícios previdenciários, como auxílio-doença acidentário, e pode embasar ações trabalhistas, mas a fiscalização e a comprovação do nexo causal entre a doença e o trabalho são algo muito difícil”.

Se o afastamento for necessário, ele pode ser remunerado pelo INSS com depósito do FGTS. Após o retorno, o empregado tem estabilidade de 12 meses e direito a ajustes no ambiente ou na função, se possível, para evitar agravamento. Contudo, para isso, é necessário comprovar o nexo da doença com o trabalho.

‘Somos tão jovens

O tratamento de Alexandre Goicochea envolveu uso diário de medicamento e sessões de terapia semanais, mas a principal ação foi uma mudança radical no estilo de vida. “É um desafio largar tudo e começar uma nova carreira do zero, mas senti que era um momento para recomeçar. Hoje faço pós-graduação e estou me dedicando à profissão de criador de conteúdo digital, levo uma vida muito mais leve e menos corrida”. Ele tem uma página dedicada a lendas urbanas de no Instagram (@goicomagic).

O primeiro passo sempre é procurar um psiquiatra ou psicólogo para entender, caso a caso, quais mudanças são necessárias para superar a doença. Burnout envolve uma junção de fatores individuais, organizacionais e sociais. “O plano de tratamento personalizado pode incluir estratégias de manejo do estresse, reestruturação cognitiva, desenvolvimento de habilidades de enfrentamento, gerenciamento do tempo, modificação do estilo de vida e, quando necessário, uso de medicação. É preciso intervir nas causas do adoecimento”, explica Danielly Martins. 

“A doença, o tratamento médico e o apoio dos familiares e amigos me fizeram observar a vida de outro modo, desacelerando e refletindo bastante naquilo que realmente faz sentido. Parafraseando Renato Russo, somos tão jovens e temos tempo para tudo”, reflete Alexandre. Ele precisou de 11 anos de carreira e um burnout para perceber que trabalhava tanto, que faltava tempo para viver.

Muito além de bombom e palestra

“Cuidar da saúde mental dos trabalhadores não é a realização de palestras em meses específicos e distribuição de bombom em datas comemorativas, é muito mais que isso”, alerta a especialista Danielly Martins.

Quando o assunto é saúde, sempre é melhor prevenir do que remediar. Os empregadores devem investir em medidas efetivas para evitar a doença e proporcionar um ambiente de trabalho melhor para todos. Para a psicóloga, o primeiro passo é reconhecer que a organização da empresa pode ser fonte de adoecimento. 

“É necessário realizar diagnósticos organizacionais contínuos, escutar os trabalhadores com cuidado, revisar metas e formas de cobrança, garantir autonomia, reconhecer esforços, promover liderança humanizada, fomentar relações respeitosas e construir uma cultura organizacional que valorize o bem-estar”, explica Danielly. As empresas devem criar programas embasados teoricamente, e não ações pontuais e superficiais.

Do ponto de vista jurídico, também há medidas a serem tomadas para evitar o adoecimento de funcionários e, de quebra, blindar a empresa de eventuais processos.

O advogado trabalhista Diego Granzotto lista medidas preventivas que podem ser tomadas pelo empregador:

  • Implementar políticas de gestão de pessoas com foco no bem-estar, como, por exemplo, programas de apoio psicológico. 
  • Monitorar a carga de trabalho, evitando metas excessivas ou jornadas prolongadas. 
  • Promover treinamentos sobre gestão do estresse e prevenção de assédio moral. 
  • Criar canais de denúncia e ouvidoria para identificar problemas no ambiente de trabalho. 
  • Realizar avaliações periódicas de saúde mental.

A legislação trabalhista brasileira é considerada uma das mais avançadas do mundo no que se refere aos direitos dos trabalhadores, apesar de recentes precarizações. O reconhecimento do burnout como doença ocupacional e o direito da proteção à saúde do empregado são avanços importantes, na opinião do especialista, mas ele considera que a fiscalização é o principal desafio atualmente. 

“Sem dúvidas, há espaço para avanços, como normas específicas sobre saúde mental no trabalho, detalhando medidas preventivas, ampliação da fiscalização de ambientes tóxicos pelo Ministério do Trabalho e incentivos fiscais para empresas que implementem programas de bem-estar. Esses avanços reduziriam tanto os casos de burnout como as demandas trabalhistas”, afirma o advogado Diego Granzotto.

Contenção de danos

O problema é que nem sempre é possível contar com a boa vontade do empregador para melhorar um ambiente de trabalho tóxico. Nesse caso, o trabalhador precisa tomar uma decisão para evitar a doença: largar o emprego ou driblar as dificuldades. “É importante desenvolver estratégias de autorregulação emocional, estabelecer limites claros entre vida pessoal e profissional, buscar apoio social, respeitar os próprios sinais de exaustão e procurar ajuda especializada sempre que necessário”, afirma a psicóloga Danielly Martins.

Porém, a especialista também alerta que essas medidas são paliativas e só é possível resolver o problema quando houver mudanças reais na estrutura organizacional. “Promover momentos de descanso e lazer, cuidar do sono, da alimentação e da atividade física são medidas de autocuidado que ajudam na resiliência, mas não substituem mudanças estruturais no ambiente de trabalho”. 

Alexandre Goicochea deixa um recado para quem já sente que a luz vermelha do burnout está piscando na mente. “Fique atento aos sinais que seu corpo te dá, como: ansiedade descontrolada, estresse elevado, dores de cabeça, fome excessiva, cansaço extremo… Não são normais. Procure ajuda, existem profissionais que realizam atendimentos por um custo baixo. E converse com familiares e amigos, conscientize, ofereça apoio, escute sem questionar ou duvidar”.

Atendimento no SUS

O SUS (Sistema Único de Saúde) oferece cuidado em saúde mental por meio da atenção primária, com as UBSs (Unidades Básicas de Saúde), e dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial). De acordo com o Ministério da Saúde, a rede pública do Brasil registrou 405 atendimentos por burnout em 2022, 754 em 2023, 959 em 2024 e, em 2025, já foram contabilizados 327 atendimentos. 

Em Mato Grosso do Sul, o SUS realizou 8 atendimentos em 2022, 7 em 2023 e 11 atendimentos em 2024. O Ministério não registrou atendimentos em 2025. O Estado está em 17º lugar ao comparar o número de atendimentos por burnout no Brasil de 2022 a 2025, enquanto o estado com maior número de registros no mesmo período é Minas Gerais, com 407. 

“Ressaltamos que os números apresentados referem-se a atendimentos e não a pessoas únicas, ou seja, um mesmo indivíduo pode ter sido atendido mais de uma vez no período considerado”, conclui a nota do Ministério da Saúde.

Número de afastamentos por burnout

O Ministério da Previdência Social enviou ao Jornal Midiamax uma lista de estados por quantidade de benefícios concedidos por incapacidade temporária (auxílio-doença), relacionados à síndrome — caracterizada no código internacional de doenças (CID) como Z73. Em 2024, o Brasil registrou 4.880 benefícios deste tipo. Mato Grosso do Sul é o 14° estado do ranking em números absolutos e 9°, proporcionalmente, à quantidade de habitantes. Confira a lista completa:

Unidade da FederaçãoNúmero de auxílios-doença por burnout concedidos em 2024Casos por 100 mil habitantes
Distrito Federal1505,32
Rio de Janeiro6574,09
Minas Gerais7603,70
Rio Grande do Norte1223,69
3222,96
Santa Catarina2222,92
São Paulo12122,73
Pernambuco2452,70
Mato Grosso do Sul722,61
Paraíba972,44
Ceará1942,21
Espírito Santo822,14
Sergipe472,13
Rondônia271,71
Goiás1041,47
Mato Grosso521,42
Bahia1671,18
Roraima60,94
Alagoas290,93
Tocantins140,93
Piauí210,64
Acre40,48
Pará340,42
Maranhão280,41
Amazonas100,25
Paraná60,05
Amapá00,00
Fonte: Ministério da Previdência Social.

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