Ondas de calor escancaram desigualdades de quem vive em periferias e favelas de Campo Grande

Na terça-feira (24), Campo Grande registrou temperatura máxima de 39,8°C; o dia mais quente de 2024

Ouvir Notícia Pausar Notícia
Compartilhar
Água acaba quase todos os dias na Comunidade Mandela (Alicce Rodrigues, Jornal Midiamax)

“Não sei o que as pessoas pensam. Já está um calor terrível, o tempo está muito seco e de noite fica pior porque sempre colocam fogo na mata. Já estamos em um lugar que ninguém deveria morar e ainda fazem isso. Esse calor está de matar”.

“Hoje eu não tenho água, estou sem uma gota de água até para beber. Tenho cinco crianças em casa, que são meus netos. Hoje eles não vão para a escola porque estamos sem água para o banho”.

“Com esse calor está difícil, as crianças não conseguem nem dormir. Moramos em um barraco de lona, então, mesmo com as árvores e o córrego ali atrás, ninguém aguenta esse calor”.

O impacto das mudanças climáticas nunca esteve tão evidente como agora. Só em 2024, Mato Grosso do Sul registrou ao menos uma onda de calor por mês, com termômetros superando os 40 °C em diversos municípios.

Para quem tem ar-condicionado em casa, no carro, trabalha em empresa climatizada e tem acesso a umidificadores de ar, o clima extremo tem impacto, mas de maneira circunstancial, até banalizado. Há quem acredite, inclusive, que não passe de uma questão cíclica do clima, pouco ou nada relacionada com as mudanças climáticas.

Mas, para quem vive à margem da vulnerabilidade, sem privilégios e recursos – principalmente com bandeira tarifária vermelha – a realidade é clara: a desigualdade é intensificada nesses períodos do ano e não estamos preparados para as consequências do calor intenso a longo prazo.

As falas que abrem a 3ª reportagem da série especial sobre onda de calor do Jornal Midiamax são de moradoras da Comunidade Mandela, uma das mais de 50 favelas de Campo Grande que hoje abriga cerca de 36 famílias. Nesta matéria, seus nomes serão preservados.

Confira as reportagens da série climática já publicadas: 1 ano das ondas de calor e ecoansiedade.

Famílias periféricas são as mais prejudicadas com onda de calor (Alicce Rodrigues, Jornal Midiamax)

População periférica é a mais prejudicada com onda de calor

Os desabafos evidenciam como as instabilidades climáticas têm grandes consequências para os moradores de áreas periféricas. Se durante o frio há uma grande comoção social de amparo às pessoas em situação de rua ou nas regiões menos assistidas pelo poder público, no calor, isso não acontece.

Talvez isso se deva ao fato de estarmos acostumados ao calor em Mato Grosso do Sul, porém, as altas temperaturas registradas nos últimos meses não são normais. Com acesso restrito à rede de esgoto, com problemas crônicos de moradia, abastecimento de água e limpeza urbana, quem não tem acesso ao básico sofre ainda mais com as catástrofes climáticas.

“Quando temos água, tomamos uns quatro banhos por dia. De noite, só com dois ventiladores para aguentar. Para aliviar o calor das crianças, lavamos o rosto delas toda hora, molhamos um pano e passamos nos braços e pernas. De noite tentamos deixar as janelas abertas também, pra ventilar um pouco, mas agora tem muita gente vindo aqui de noite e a gente fica com medo, então fechamos as janelas”, conta uma moradora.

Nem mesmo as árvores e o córrego no entorno da Comunidade aliviam a sensação térmica. Conforme a moradora, eles reutilizam a água da limpeza para molhar o chão de terra, que forma os corredores das casas, na tentativa de diminuir a poeira que aspiram. Poeirão que, inclusive, tem prejudicado a saúde dos grupos mais vulneráveis, como crianças e idosos.

“Fazemos o que dá para tentar melhorar nossa situação aqui. Tenho ali uma caixa d’água onde armazeno água para dias em que ficamos sem abastecimento. É ela que bebemos, é com ela que limpamos e cozinhamos. Sempre dou um pouco do que armazeno para os vizinhos porque aqui é assim, somos um pelo outro. Mas tem dia que é difícil, porque acaba água e energia. E aí, a gente faz o quê?”, indaga outra moradora.

Conforme a cartilha de vulnerabilidade social em Mato Grosso do Sul, o índice de vulnerabilidade do Estado é de 0,41 (alto). No Estado, 20,9% dos sul-mato-grossenses não têm acesso à energia elétrica em casa e 26% não têm acesso à água tratada e encanada.

Com escassez de água, moradores acumulam água em recipientes (Alicce Rodrigues, Jornal Midiamax)

Pretos e pardos somam o grupo mais vulnerável

Alta densidade populacional, desigualdade em acesso a serviços de saneamento e infraestrutura precária, somados, caracterizam o que hoje conhecemos por racismo ambiental. Este, porém, não se configura apenas por meio de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, mediante ações que tenham impacto ‘racial’. Hoje sabemos que, historicamente, a maioria da população que vive em favelas, periferias e em situação de rua é preta ou parda.

“Estamos abandonados aqui. Ninguém vem aqui saber se estamos precisando de algo. Ninguém pergunta se precisamos de água. Estamos ao Deus-dará, esquecidos totalmente. Não estamos aqui porque queremos. Ninguém escolhe viver assim, mas as pessoas não enxergam dessa forma”, lamenta uma moradora da Comunidade Mandela.

Alguns quilômetros dali, no bairro Bosque da Esperança, Mariuza, de 47 anos, conta como sua rotina do lar é afetada pelo calor e fumaça intensa. O bairro, que fica em área periférica de Campo Grande, já não é arborizado como antes. Diariamente, moradores ateam fogo na vegetação, o que complica consideravelmente a vida de quem mora na região.

“Aqui eu não tenho ar-condiciado, então para dormir é só com ventilador. Sou do lar, cuido de casa o dia todo e, nesse calor, as tarefas simples ficam insuportáveis. Quando está muito quente, opto por tarefas feitas com água, como lavar roupa. Quando vou cozinhar, é insuportável. O cômodo fica tão quente que nem o ventilador dá conta”, explica.

“Fui cortada do Programa Mais Social e do Auxílio Emergencial, até hoje não sei o porquê. Aí fica difícil com as contas, porque só meu marido é remunerado. Não temos nenhuma condição de colocar ar-condicionado agora, infelizmente”, acrescenta.

Moradora caminhando por escombros na Comunidade Mandela (Alicce Rodrigues, Jornal Midiamax)

Efeitos na saúde

O calor intenso, a fumaça, o mormaço e a poeira são responsáveis por diversas complicações que afetam a saúde das pessoas, principalmente daquelas que vivem em situação de vulnerabilidade. Conforme o drº Paulo Eduardo Limberger, diretor-geral do HRMS (Hospital Regional de Mato Grosso do Sul), os sintomas a superexposição ao calor podem variar conforme a intensidade e o tempo de exposição. Entre as alterações clínicas, pode-se citar: exaustão pelo calor, insolação e cãibras de calor.

Paulo Eduardo Limberger, diretor-geral do HRMS (Alicce Rodrigues, Jornal Midiamax)

“Algumas condições crônicas podem ser agravadas, especialmente doenças cardiovasculares, respiratórias e renais. Mas além dos sintomas clínicos evidentes, também podem ser citadas alterações cognitivas e pode ter consequências significativas para a saúde mental, manifestando-se em diversos sintomas e desfechos adversos”, explica.

O especialista aponta ainda que as temperaturas elevadas também estão associadas a um aumento nas internações hospitalares e visitas a departamentos de emergência por transtornos mentais. Esses transtornos incluem ansiedade, depressão, esquizofrenia e transtornos relacionados ao estresse.

“Meus três sobrinhos têm problemas respiratórios que pioram bastante nesse período. O bebê tem 5 meses e precisa daquelas bombinhas de asma. O médico passa, mas não tem nos postos de saúde, aí pra comprar também fica difícil. Esses dias ele precisou ficar internado, tá difícil”, explica uma das moradoras do Mandela.

Perigos da exposição ao calor

Quem trabalha exposto ao calor intenso ou vive em locais vulneráveis corre grandes perigos de saúde, nem sempre associados à exposição direta ao sol. O simples fato de estar em local com mormaço intenso, como as casas nas favelas, pode acarretar questões sérias para a saúde.

“O corpo humano, possui sistemas de regulação térmica e mantém sua temperatura em torno de 36,5 °C e 37 °C, podendo apresentar outros problemas clínicos quando a temperatura estiver fora desse intervalo. Estudos apontam que temperatura do ambiente ideal para o funcionamento do corpo humano é em torno dos 23 °C, quando se está levemente vestido. Num ambiente de trabalho, temperaturas entre 24 °C e 26 °C são frequentemente consideradas ideais para manter performance cognitiva”, explica o especialista.

Paulo Eduardo explica ainda que quando uma pessoa fica exposta ao calor por longos períodos, o corpo ativa uma série de mecanismos de defesa para tentar manter a temperatura interna em uma faixa segura. Essas respostas são cruciais para prevenir superaquecimento e proteger os órgãos vitais.

Entre os mecanismos de defesa, o suor é o principal. O indivíduo sua através das glândulas sudoríparas, o suor na pele evapora, causando uma perda de calor que ajuda a diminuir a temperatura corporal. Outros mecanismos também podem estar envolvidos, tais como a vasodilatação, que pode ser percebida em pessoas de pele clara, com uma vermelhidão.

“Nesse processo, há uma dilatação dos vasos sanguíneos periféricos para que o calor seja dissipado para o meio externo. Tem também o aumento da frequência respiratória, que ajuda a dissipação de calor pela respiração. Além de mecanismos intrínsecos, que nos fazem instintivamente procurar sombras, o centro de sede do cérebro é ativado, e há uma mudança de comportamento com uma percepção de letargia, para que o corpo humano evite gastar energia e produzindo mais calor”, acrescenta.

Posicionamentos

O Jornal Midiamax questionou a Prefeitura de Campo Grande e o Governo do Estado acerca das medidas tomadas durante as ondas de calor e como esses grupos mais vulneráveis são assistidos pelo poder público.

Sobre as pessoas em situação de rua, a Prefeitura respondeu que, por meio da SAS (Secretaria Municipal de Saúde), desde o início da primeira onda de calor, as equipes do Serviço Especializado em Abordagem Social vêm intensificando as abordagens nas ruas com o objetivo de convencer a pessoa a aceitar o acolhimento em uma das quatro unidades da Rede de Assistência Social do município voltadas para o atendimento às pessoas em situação de rua e imigrantes.

As ações têm o objetivo de evitar a desidratação e oferecer bem-estar às pessoas em situação de vulnerabilidade. As equipes realizam abordagens diferenciadas, orientando as pessoas em situação de rua a buscarem o Centro POP, especialmente nos horários de calor intenso ou aceitarem o acolhimento para evitar danos à saúde.

Sobre as ações às famílias que vivem em áreas periféricas ou em favelas, não houve resposta.

Já o Governo do Estado não se manifestou até o momento. O espaço segue aberto ao posicionamento.

💬 Receba notícias antes de todo mundo

Seja o primeiro a saber de tudo o que acontece nas cidades de Mato Grosso do Sul. São notícias em tempo real com informações detalhadas dos casos policiais, tempo em MS, trânsito, vagas de emprego e concursos, direitos do consumidor. Além disso, você fica por dentro das últimas novidades sobre política, transparência e escândalos.
📢 Participe da nossa comunidade no WhatsApp e acompanhe a cobertura jornalística mais completa e mais rápida de Mato Grosso do Sul.

Conteúdos relacionados