Invisível, trabalho de cuidado reflete na desigualdade e na sobrecarga da mulher

No mundo dividido entre homens e mulheres, a responsabilidade de cuidar recai somente sobre elas e abre necessidade de debate

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(Madu Livramento, Midiamax)

Está nos dicionários que “cuidar” é o verbo que descreve a ação de tratar alguém, garantindo seu bem-estar e segurança. Também é descrição da ação de ocupar-se de algo, de responsabilizar-se por. É, portanto, um verbo que revela a relação de um pelo outro: alguém cuida enquanto o outro é cuidado.

O que os dicionários não apontam, contudo, é que um gênero é mais afetado por esse papel. São as mulheres que, culturalmente, arcam com a responsabilidade do cuidado. Filhos, pais, maridos, lar. É pelas mãos de mulheres que ocorre a execução dessas responsabilidades. E, de tão naturalizadas, passam invisíveis aos olhos.

Não é de admirar, portanto, que a redação da última edição do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) tenha trazido luz ao tema, o trabalho invisível que sobrecarrega e adoece mulheres, inclusive em Mato Grosso do Sul. Um tema que requer debate, conhecimento e, principalmente, soluções que passam pelo poder público.

Desde a última segunda-feira (4), o Jornal Midiamax publica – em alusão ao Dia Internacional da Mulher, celebrado na próxima sexta-feira (8) – reportagens que tratam de pontos nevrálgicos, que enquadram e dividem mulheres e homens numa linha imaginária, com duas lógicas estabelecidas, duas formas específicas de agir. Nesta, a sobrecarga feminina emerge como tema urgente de discussão e equação.

Uma entre milhares

“Levanto 4h para arrumar meus filhos, deixo eles na babá às 4h30 e pego o ônibus 5h10 para chegar às 7h no trabalho. Saio às 16h, pego ônibus, e consigo chegar em casa às 19h. Já é noite. Não tenho tempo para nada, chego supercansada em casa. Dou um carinho nos meus filhos, ainda faço o jantar, tomo banho… E, finalmente, dormir. Essa é minha rotina todos os dias”.

O relato comum entre milhares – ou milhões – de mulheres é de Jane Gonçalves, moradora de Campo Grande. Sem muito esforço, ela se encaixa no grupo que, desde muito cedo, precisou trabalhar, mas sem poder abrir mão ou sequer dividir responsabilidades do cuidado.

Talvez, ela tenha perdido a conta ou sequer parou para imaginar quantas horas na vida se dedicou ao trabalho de cuidado e às atividades domésticas. “Folgo no domingo, tenho tempo para lavar roupa, limpar a casa e brincar um pouco com as crianças. Sair? Nem sair eu saio, porque é cansativo”, relata.

Jane tem dois filhos, uma menina de oito e um garoto de seis anos. A família mora em uma comunidade carente da Capital. Antes de chegar aqui, a auxiliar de limpeza saiu de Corumbá para Sidrolândia em busca de oportunidades de emprego e vontade de crescer para dar melhores condições de vida aos filhos.

“Tudo estava muito difícil, emprego, e aqui construí meu barraco. Tive que me mudar para a favela. Arrumei um emprego, mas só tenho uma irmã que mora aqui [Capital], ela trabalha muito. Eu pago babá para cuidar dos meus filhos, que desconta a metade do meu salário. Eu pego Bolsa Família e o Mais Social. É pouco, mas dá para sobreviver. A minha rotina é cansativa, mas não dá para parar, a gente tem que comer”.

Sobrecarga no trabalho de cuidado de mulheres se torna invisível na rotina (Alicce Rodrigues, Midiamax)

Histórias comuns que só mudam o endereço

Josiane Garrido Arraes tem 30 anos e cinco filhos, moradora da mesma comunidade que Jane. Tornou-se mãe ainda muito jovem. Foi necessário trabalhar desde muito nova para conseguir manter o lar. A filha mais velha, de 12 anos, também acaba assumindo as responsabilidades divididas, como ajudar os irmãos na educação e afazeres da casa.

“As mulheres ficam mais carregadas com o serviço. Eu, por exemplo, tenho a casa para limpar, fazer minhas diárias, cuidar dos meus filhos. Não é fácil. A minha filha me ajuda muito, mas não deixo de conversar, de cuidar da educação, não deixo de dar atenção aos meus filhos. Só tenho o fim de semana de folga”.

Nas palavras de Josiane, quase há um espelho de Jane. Ambas vivem outro cenário comum no papel de cuidar: o desapego – ou descuidado – de si mesma. É a mulher que se torna mártir e abre mão de si para cuidado do outro. Já viu esse filme?

No caso de Josiane, a filha mais nova tem apenas um ano. Desde o nascimento da primogênita, ela não conseguiu concluiu os estudos. Ela é direta ao explicar se pretende obter a certificação de ensino, da mesma forma que descreve seus obstáculos. “Sim, mas vou esperar mais um pouco até as crianças crescerem”.

Cuidado é trabalho árduo e invisível

O trabalho doméstico sempre existiu e foi através desta mão de obra que a mulher passou a ingressar no mercado de trabalho remunerado, em 1930, na indústria. Nesse cenário também é possível identificar, por exemplo, em um núcleo familiar heteronormativo – ou seja, que segue a lógica dos papéis sociais separados entre homens e mulheres – que os companheiro e filhos de uma casa são livres, desde que as responsabilidades domésticas concentre-se nas mulheres.

São vários contextos de não reconhecimento do trabalho doméstico, e que resultam na invisibilidade na sociedade, como explica a socióloga, mestra em História Social das Mulheres e integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras, Nathalia Eberhardt Ziolkowski. Segundo ela, o problema é cultural, afinal, desde que a mulher “se entende por gente” tem atividades atribuídas subestimadas pelo gênero.

“A partir do momento que a gente sai para o mercado de trabalho, as mulheres se inserem e estão inseridas num campo estratégico de construção de novas relações, as relações sociais, econômicas, profissionais. A transformação do espaço privado não acompanha essa mudança. Então, é daí que vem a sobrecarga de tarefas que a socióloga Maria Betânia Ávila, fundadora da SOS Corpo, fala que é desempenhar várias funções”, detalha.

Equilíbrio não acontece

Ziolkowski aponta que, pela lógica, quando a mulher passa a assumir o espaço público, a trazer recurso financeiro, dinheiro, capital para dentro de casa, automaticamente a casa se repensaria e se reestruturaria para garantir sua sustentabilidade. “Mas, não é o que acontece”.

O cenário é que as atividades do cuidado seguem concentradas na mulher que, agora, tem ainda mais responsabilidades e acaba sobrecarregada. Muitas vezes, adoecida. Para a socióloga, ainda há um longo caminho para a ressignificância de uma mudança no reconhecimento do cansaço feminino em ser multitarefas. É necessário uma nova visão de todos os gêneros para estabelecer papéis dentro de casa, por exemplo, partindo do companheiro e dos filhos.

“A gente ainda ouve as pessoas dizerem: ‘ah, mas inventou de sair de casa, de trabalhar fora, de construir carreira’. Aquela velha história da responsabilização sempre ser da mulher, do sujeito subordinado na nossa sociedade ser sempre o feminino”, aponta.

A pesquisadora explica que, quando as mulheres passam para o mercado de trabalho produtivo, existem também outros agravamentos da situação. “Não só a sobreposição de tarefas, mas também a condição de exploração do trabalho das mulheres. A gente vê isso muito forte na desvalorização do trabalho. Inclusive, isso é tema de discussão hoje no processo de construção de políticas públicas pelo Ministério das Mulheres, como uma questão a se enfrentar no Brasil. Uma das principais é a diferença salarial entre homens e mulheres”, acrescenta.

Mais e mais camadas de sobrecarga

A sobrecarga gerada pelo ato de cuidar está concentrada no gênero feminino, mas atravessa outro segmento. No caso, raça e condições socioeconômicas. Ziolkowski exemplifica que as circunstâncias passadas por uma mulher branca e com maior poder aquisitivo são diferentes dos enfrentamentos de uma mulher negra, indígena ou de vulnerabilidade na sociedade.

“Essa profunda desigualdade social e econômica que a gente vê, que envolve essa interseção raça e etnia no nosso país, é um fator que é determinante para esse esgotamento das mulheres, sobretudo as mulheres negras, que têm baixa remuneração, que têm uma sobrecarga de trabalho muito grande e que sofrem com várias outras coisas”, explica.

Segundo ela, a realidade da mulher indígena no Brasil é ainda mais invisível, dada a indisponibilidade de indicadores e de pesquisas nesse nível.

“Então, é uma realidade que a gente ainda pouco conhece, mas que também sabe-se que é uma realidade bastante assustadora. Até porque sofrem com falta de terra, falta de lar, de casa. Todos esses fatores impactam no estresse mental dessas mulheres e, consequentemente, na sobrecarga”.

Maioria esmagadora de mulheres relata sobrecarga

De acordo com a pesquisa “Esgotadas: o empobrecimento, sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres” da ONG Think Olga, a rotina de jornada dupla em casa e fora tem levado elas ao esgotamento mental. A pesquisa de 2022 revela que 86% das brasileiras consideram ter uma carga de responsabilidade, sendo 57% das com 36 a 55 anos responsáveis pelo cuidado de alguém.

Nesse contexto, a maioria dos lares brasileiros está liderada por mães solos e mulheres negras – as principais responsáveis financeiras e pelo cuidado do lar.

“A gente tem um recorte muito crítico para a realidade da mulher negra, às vezes com menor condição escolar e de remuneração. Logo, muitas vezes precisa-se fazer trabalhos extras para conseguir ser uma chefe de família e sustentar seus filhos, seus pais. É uma realidade muito endurecida, com uma rede de apoio muito menor pela condição social e econômica que a população negra se encontra no nosso país ainda, em condições, normalmente, de realidades muito violentas, traumáticas, de insegurança, de sobrecarga mental muito grande”, finaliza a socióloga.

cuidado

Políticas públicas chegam até elas? Se chegam, são eficientes?

Segundo o Ministério das Mulheres, 83,3% das famílias têm uma mulher como responsável familiar. Isso significa que a maioria das famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família está sendo chefiada por mulheres. Em Mato Grosso do Sul, 213.355 famílias foram beneficiadas pelo programa social em fevereiro.

De acordo com o VIS Data, uma plataforma do Ministério do Desenvolvimento Social, em fevereiro deste ano, 58.585 famílias foram beneficiadas pelo Bolsa Família em Campo Grande, sendo 52.727 com mulheres chefiando o lar. O repasse do programa foi de R$ 35.491.958,00.

Já conforme os dados da SAS (Secretaria Municipal de Assistência Social) até o fim de novembro de 2023, ao todo, existiam 427.057 pessoas cadastradas no Cadastro Único em Campo Grande, sendo 192.872 famílias. Também há 247.119 pessoas identificadas como do sexo feminino, sendo 176.180 maiores de 18 anos. Ainda conforme o balanço, 143.835 famílias têm como responsável uma mulher.

Cruzados, os dados reforçam o panorama descorrido nesta reportagem. Mulheres são, sim, chefes de família e responsáveis por prover e cuidar. Como tal, estão sobrecarregadas. Que políticas públicas, portanto, seriam capazes de amenizar o trabalho excessivo desempenhado por elas?

Ação municipal

Segundo a secretária-adjunta de Assistência Social, Inês Mougenot, a Capital fornece Paif (Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família), que é oferecido em todos os Cras (Centros de Referência da Assistência Social) para apoiar famílias, prevenindo a ruptura de laços, promovendo o acesso a direitos e contribuindo para a melhoria da qualidade de vida.

“Por neio do PAIF, os técnicos dos Cras realizam visitas domiciliares que fazem um estudo das vulnerabilidades das famílias para contribuir com a qualidade de vida dessas pessoas. São feitas intervenções individuais ou de caráter coletivo que podem ser resumidas em acolhida humanizada, acompanhamento familiar, oficinas com atividades socioeducativas que ajudam a fortalecer os laços familiares, além de ações comunitárias e particularizadas. Também é objetivo do PAIF promover acessos a benefícios, programas de transferência de renda e serviços socioassistenciais, contribuindo para a inserção das famílias na rede de proteção social de assistência social”, explica a gestora.

Visitas domiciliares

A secretária detalha que, nessas visitas domiciliares, os técnicos identificam os pontos fragilizados da famílias e elaboram ações para prevenir a ruptura dos laços familiares, apoiando as famílias que possuem, dentre seus membros, indivíduos que necessitam de cuidados, por meio da promoção de espaços coletivos de escuta e troca de vivências familiares.

Quanto às mulheres que têm uma sobrecarga de afazeres domésticos, Mougenot diz que elas podem participar das atividades do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, que oferece atividades recreativas e esportivas, também oferecido nas unidades de Cras, Centros de Convivência do Idoso e Centros de Convivência. Assim, as mulheres podem participar, inclusive, de oficinas de capacitação nas áreas de culinária, beleza e artesanato, o que também contribui com a geração de renda.

“O serviço de convivência acontece de duas a três vezes por semana, mas há unidades em que é realizado todos os dias, até porque ele é dividido por faixa etária, sendo que há os dias para os adultos e outros para as crianças. Para participar do serviço, basta procurar o Cras mais próximo de casa com os documentos pessoais e solicitar o atendimento da equipe técnica. Caso a pessoa não esteja inserida no Cadastro Único, ela será cadastrada, já que essa é a principal regra para utilizar os serviços”.

Mais serviços

O Governo Federal abriu no ano passado uma consulta pública e um formulário eletrônico para ouvir mulheres sobre qual política nacional de cuidados é necessária para que a tarefa de cuidar das crianças, dos enfermos e dos idosos não recaia somente sobre elas, mas que seja reconhecida como responsabilidade do Estado, da sociedade civil e da família.

Agora, com a consulta pública encerrada, o poder público prevê elaboração de propostas para definição das ações. Também foi criado o GTI (Grupo de Trabalho Interministerial) para formular um diagnóstico sobre a organização social dos cuidados no Brasil, identificando as políticas, os programas e os serviços já existentes.

Confira as reportagens anteriores desta série:

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