“Quando nós quatro fomos adotados por uma família, no começo foi ótimo, porque estávamos conhecendo eles, tendo uma rotina nova… Mas, depois, ficou complicado. Porque um dos meus irmãos tem TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), e eles não souberam lidar, não deu certo. Nos devolveram para a Casa um ano depois. Eles sabiam do diagnóstico do meu irmão quando nos adotaram”.

Este é o relato de Elias, um jovem de 18 anos. Aqui usaremos um nome fictício para preservar a identidade dele e de seus irmãos, hoje com 9, 12 e 16 anos. Os quatro foram deixados em uma Casa de Acolhimento de Campo Grande pelos pais, há 4 anos.

Marcado pela violência física, psicológica e sexual que sofria em casa durante a infância, falar sobre isso ainda é muito doloroso para o jovem. Elias lembra que, embora tivesse 14 anos quando foi levado ao abrigo, ninguém sentou com ele para explicar o que estava acontecendo. Todo o processo foi assustador, lembra.

“Quando eles nos deixaram, ninguém me explicou o que estava acontecendo, ou o que ia acontecer. Nós vivíamos apanhando, minha mãe também sofria violência doméstica. Fiquei decepcionado e triste por nos deixarem lá”, conta.

“Crianças não são brinquedos que você adota e devolve, caso queira”

Essa, no entanto, seria a primeira de muitas rupturas que se seguiriam na vida das crianças, e é neste ponto que voltamos ao trecho relatado no começo da matéria.

Em 2022, os quatro irmãos foram adotados por uma mesma família. Para eles, ela significava a esperança de que poderiam crescer juntos, em um lar de amor e respeito, diferente do que conheciam até então.

Elias, por exemplo, já havia passado por mais de uma Casa de Acolhimento. Aquela era a estabilidade que precisava e que queria para ele e para os irmãos.

Apesar de o começo ter sido bom, as coisas começaram a não funcionar mais quando a família não conseguia – ou não queria – lidar com o diagnóstico de um dos irmãos de Elias, que tem TDAH.

Segundo o jovem, quando a família procedeu com a adoção, já sabia do diagnóstico. Apesar disso, ao se depararem com as dificuldades, decidiram por devolver as crianças, que tiveram que se separar ao voltar para as casas de acolhimento.

Rupturas que marcam para a vida toda

Conforme a assistente social técnica da Casa de Meninos, Rosemar Gonçalves Cardoso Abelha, situações como essa são mais comuns do que se pensa. As pessoas romantizam a adoção, não se preparam como deveriam e acabam devolvendo as crianças e os jovens para as casas de acolhimento “como se fossem brinquedos”.

“Quando essa família devolveu eles, as crianças foram separadas, além de ser uma quebra de expectativas. Eles achavam que tinham conseguindo um lar. Então são muitas rupturas, passam por diversos traumas e eles geram sequelas. Existe todo um preconceito e uma romantização dentro da adoção. Lá na Casa, semana que vem, vamos receber outra criança que está sendo devolvida. Isso é muito triste e extremamente traumático”, afirma.

Atualmente, Elias estuda, trabalha e vislumbra a carreira de engenheiro mecânico. Ele mora próximo ao abrigo que os irmãos estão, o que facilita o encontro deles, quando saem para passear um pouco.

“Os dois meninos estão no mesmo local e o de 16 anos está se preparando para ingressar no mercado de trabalho também. O menino mais novo e a menina permanecem na fila de adoção. Mas essa situação é complicada. A sociedade não tem essa responsabilidade. Criança não é brinquedo, que você devolve depois de um tempo”, explica Rosemar.

Exigências comprometem o andamento em adoções

Apesar de os dois irmãos mais novos ainda estarem na fila de adoção, Rosemar pondera que as exigências e critérios das famílias são fatores complicadores. Afinal, muitos ainda buscam crianças na primeira ou segunda infância, brancos e sem deficiência.

Segundo a psicóloga Emília Luna, que trabalha com a abordagem Terapia Cognitiva-Comportamental em neurociência e tem certificação neurocompatível, esses critérios de adoção afetam diretamente o emocional de crianças e adolescentes que começam a entender que provavelmente não foram adotados por não atenderem, principalmente, determinadas exigências físicas.

“O adolescente percebe isso, com certeza. Ele vê aquela criança que está com ele no abrigo saindo e ele não, as crianças entrando, os bebês entrando e já saindo, e ele não, ele vai ficando”, explica.

“Isso só aumenta a sensação de desamparo, a sensação de que a outra criança merece e ele não, e aí vem os questionamentos: ‘por que eu nunca fui, por que ninguém me quis, por que eu não saí, por que eu não saí na idade que essa criança que está saindo hoje?’, entende?! Então, com certeza, causa, impacto e é um impacto muito grande”, acrescenta.

A não adoção também gera traumas

Em Mato Grosso do Sul, 96 adolescentes com mais de 16 anos estão nas instituições de acolhimento. Segundo a psicóloga, desde criança, qualquer ser humano precisa se sentir acolhido e se sentir incluído para um bom desenvolvimento.

“No caso das crianças que não têm essa possibilidade de ser adotada, um buraco é construído. Quanto mais tempo a criança passa em um abrigo, mais essa sensação é reforçada, de que ninguém me ama, de que eu não mereço morar com ninguém, de que eu não mereço uma família. Enfim, essa situação vai sendo reforçada na criança. Então, a gente precisa sempre pensar, voltando lá no início, que se a gente tem o desejo de ter um filho, a gente precisa lidar com as dificuldades desse filho”, afirma.

Já na fase da adolescência, esse sentimento pode afetar diretamente a autoestima do jovem, já que será gerada a sensação de que ele não é aceito e de que ele não merece uma família.

Dependendo das vivências anteriores, podem haver também alguns transtornos de personalidade, quadros de depressão e de ansiedade.

“A gente precisa considerar que esse adolescente teve uma vivência antes e após ser retirado de uma família. Além disso, provavelmente esse adolescente já passou por tentativas frustradas de adoção. São muitas vivências que contribuem para o que o adolescente se torne o que ele é hoje. Ninguém é só o que você apresenta hoje. Você é o que você viveu”, explica a psicóloga.

Dados em MS

Atualmente, Mato Grosso do Sul tem 129 crianças e adolescentes para adoção. Já as famílias habilitadas para adotar são 244. Em 2024, 17 adoções já foram concluídas e 39 processos estão em andamento. Em 2023, 120 crianças encontraram uma família.

Segundo a titular da Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso de Campo Grande, a juíza Katy Braun, a partir dos 14 anos, as crianças inseridas nos serviços começam a ser preparados para o mercado de trabalho, a fim de que, ao atingir a maioridade, tenham capacidade de se sustentar e viverem com autonomia.

“Alguns municípios oferecem aluguel social por algum tempo e em e outros, o Projeto Padrinho auxilia esses jovens. É muito desafiados viver por conta própria a partir dos 18 anos, especialmente quando não receberam os cuidados e formação educacional adequados enquanto estavam com a família”, explica.

Processo de habilitação de famílias interessadas

Os pretendentes precisam passar por um programa de capacitação que, em Mato Grosso do Sul, é realizado por meio de um curso online oferecido periodicamente pela Escola do Judiciário.

Os interessados em participar do curso devem fazer uma pré-inscrição das varas de infância e adolescência de suas comarcas. Após aprovados neste curso, poderão ingressar com um Pedido de Habilitação da Adoção, onde serão avaliados por psicólogos e assistentes sociais para verificar se estão com a motivação adequada e em condições de garantir os direitos fundamentais de um filho.

Por fim, a psicóloga Emília enfatiza: “A primeira coisa em relação a este assunto é ter claro que adoção não é um favor, nem um ato de caridade. A adoção você decide porque você quer um filho”.

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