“Sempre sonhei em ter uma família, mas acho difícil encontrar uma estando tão velho”. O relato de André, de 17 anos, uma das 700 crianças inclusas no sistema de Busca Ativa para adoção no Brasil, expõe um problema latente no país: características físicas frequentemente determinam quem tem o direito de ser adotado.
Na hora da adoção, fatores como gênero, idade e raça ainda são aspectos decisivos para muitos pretendentes. Dados do SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento) revelam que, das 5 mil crianças aptas para adoção, 2.800 têm mais de nove anos. Contudo, este não é o perfil procurado; a maioria dos pretendentes busca crianças de até quatro anos, sem irmãos e sem deficiências.
Enquanto esses critérios determinam quem é considerado apto para adoção, crianças e adolescentes que não se encaixam nesses padrões enfrentam uma longa espera no sistema, ansiando por um lar onde sejam aceitos.

Para reverter o problema, CNJ (Conselho Nacional de Justiça) criou o sistema de Busca Ativa, plataforma que aproxima a criança ou adolescente a um pretendente fora do perfil originalmente aceito, eliminando a necessidade de alteração no perfil do pretendente.
Prevista no Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária em 2006 e elaborada pelo Conanda (Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente), a Busca Ativa na adoção é um importante recurso facilitador no processo de adoção.
Último recurso aos que estão fora do perfil de adoção
“Tenho alguns problemas psicológicos como baixa autoestima e depressão devido aos problemas que passei na vida. Ainda assim, tenho meus sonhos”, André.
A Juíza Katy Braun, da Vara da Infância, Adolescência e Idoso de Campo Grande, explica que o SNA destina-se ao cadastramento de crianças e adolescentes que necessitam de uma família. Entretanto, o sistema enfrenta dificuldades em promover o encontro entre pais e filhos adotivos, especialmente quando se trata de crianças a partir dos 9 anos, adolescentes, com necessidades especiais e grupos de irmãos.

Nesse contexto surge a busca ativa de adoção. O sistema possibilita que habilitados fora do perfil das crianças e adolescentes as conheçam, oferecendo a oportunidade de repensar seu plano adotivo.
Por meio da plataforma, pessoas interessadas em adotar podem ter acesso a informações como nome, idade, cidade e uma breve apresentação sobre a criança ou adolescente.
“Existem programas de busca ativa fora do SNA, como o Aproximando Vidas. Eles permitem que pessoas não habilitadas para adotar, também tenham oportunidade de conhecer crianças e busquem se habilitar para formar uma família”, explica.
Conforme a juíza, a princípio, só é possível inserir nos aplicativos de busca ativa crianças sem pretendentes compatíveis no SNA.

Adoção tardia
Aos 16 anos, Luiz (fictício) está entre as crianças e adolescentes que receberam uma segunda chance por meio do sistema de Busca Ativa de adoção. Natural de Mato Grosso do Sul, o adolescente foi acolhido por um casal de Santa Catarina após passar por quatro famílias.
Mesmo antes de se casar, a empresária Juli Bedin, 37, mãe de Luiz, tinha um desejo claro para o futuro: adotar um filho. Porém, somente após 16 anos de casamento, deu início ao processo de adoção do seu primeiro filho.
“O desejo de adotar surgiu em meu coração antes mesmo de me casar. Quando me casei, compartilhei isso com meu esposo, mas ele não deu muita atenção. Com o tempo, ele decidiu orar sobre o assunto e ver se era essa a direção que deveríamos seguir. Em uma manhã, ele foi para a sala de oração, voltou e confirmou que sim, iríamos iniciar o processo de adoção”, relembra.
Juli explica que, ao iniciar o processo, o casal estabeleceu que desejavam adotar uma criança de Santa Catarina, com até seis anos, e que poderia ter até três irmãos.
“Nós decidimos que estaríamos abertos a irmãos, até duas ou três crianças, porque sabíamos que a adoção de irmãos era menos comum. Inicialmente, definimos que a criança teria que ser do nosso estado e ter até seis anos. No entanto, tudo mudou quando conhecemos nosso filho”, diz.
‘Quando o vi, sabia que aquele era meu filho’
Apesar de ter um perfil predeterminado, o casal estava aberto a conhecer crianças que preenchessem essas características, foi quando entraram em contato com o sistema de Busca Ativa e lá conheceram Luiz*.
“Quando começamos o processo, entramos em contato com a Busca Ativa. Lá, conhecemos várias crianças e adolescentes. Mas, quando vi o vídeo do nosso filho pela primeira vez, ouvi suas primeiras palavras, sabia que ele seria parte da nossa família”, relembra.

Foi instantâneo: a mãe relembra que estava sozinha quando viu o vídeo de apresentação de Luiz e sentiu que ele era a escolha certa, sem hesitar decidiu contar ao marido.
“Nem consegui finalizar o vídeo. Saí correndo para contar ao meu esposo. Meu esposo estava no trabalho, não podíamos verbalizar aquilo em voz alta naquele momento. Logo depois contei para ele e disse que se ele sentisse o mesmo, ele era o escolhido”.
‘Foram sete meses até ele me aceitar como mãe’
Para a mãe, apesar de tranquilo, o momento mais desafiador de todo o processo de adoção foi a fase de adaptação à nova família. Juli relembra que, inicialmente, Luiz tinha um grande receio em aceitá-los, o que resultava em uma recusa de qualquer demonstração de afeto.
“Ele carregava traumas e feridas de suas experiências passadas, o que causava um bloqueio e uma rejeição em relação a nós no início. No entanto, desde o primeiro dia, decidimos que estaríamos ali para ele sempre e que o amaríamos até que ele nos aceitasse”, conta.
Foram sete meses até que o adolescente verbalizasse o desejo de fazer parte daquela família. Até então, em respeito à escolha do adolescente, os pais apenas o chamavam pelo nome.
“Somente após esse período que ele expressou o desejo de ser nosso filho e nos permitiu chamá-lo assim. Respeitamos o tempo dele, mas como mãe, foi difícil não poder abraçar e cuidar do meu filho, mas com a ajuda de Deus, conseguimos superar todos os desafios”, explica Juli.
Juli conclui que a lição que tirou de todo esse processo é que as famílias interessadas em adoção devem estar abertas para conhecer pessoas fora do padrão tradicional de adoção. Segundo ela, a adoção tardia deveria ser mais incentivada, pois após os 14 anos, a maioria dos adolescentes perde a esperança de serem adotados por uma nova família.
“Esses adolescentes merecem uma oportunidade, mas é necessário estar preparado. Nessa fase, eles muitas vezes já perderam as esperanças de encontrar uma família e estão focados em atingir a maioridade, trabalhar e seguir adiante sozinhos. Hoje, meu filho estuda para se tornar um empresário e tenho certeza de que terá um futuro brilhante”, conclui.
76% das crianças não têm adotantes em MS

“Estudo para concurso público para ser alguém na vida. Quando conquistar minha estabilidade, pretendo auxiliar os necessitados para que não passem pelo que já passei”, André.
Em Mato Grosso do Sul, existem 118 crianças e adolescentes aptos para adoção. Deste total, 88 não têm pretendentes, e 57 estão na busca ativa, o que significa que 76% das crianças não possuem adotantes interessados.
Desde a implementação da busca ativa, Mato Grosso do Sul registrou 16 adoções pelo sistema. Entretanto, conforme Katy Braun, os números são maiores porque a falta de registro específico no SNA resultava em todas as adoções sendo registradas como ‘Adoções pelo Cadastro’.
Entre 2019 e 2024, diferentes famílias adotaram mais de 634 crianças acolhidas, enquanto cerca de 1.525 foram reintegradas a seus genitores. Outras 150 estão em processo de adoção e 116 em serviços de acolhimento.
Número de adotantes é maior, mas exigências impedem adoção

Se as características físicas frequentemente determinam quem tem o direito de ser adotado, não é de surpreender que o número de interessados em adotar seja maior do que o número de crianças e adolescentes no sistema de adoção.
No cenário atual, Mato Grosso do Sul tem 806 crianças coletadas, das quais 118 estão aptas para adoção. Em contrapartida, o número de pretendentes disponíveis é de 240 em todo o Estado, ou seja, mais de dois adotantes para cada criança ou adolescente apto a ser adotado.
O principal obstáculo para viabilizar o processo ainda é a preferência dos adotantes. A juíza destaca que todo pretendente tem a possibilidade de fazer suas escolhas, no entanto, é importante estar aberto a diferentes possibilidades caso suas expectativas não sejam atendidas.
“Ainda há bastante interesse em adotar crianças mais jovens, mas o perfil tem mudado à medida que há mais informação e divulgação”, explica Katy Braun.

‘Adoção não é um ato de caridade’
Psicóloga do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), Renata Queiroz Giancursi, ressalta que preconceito enraizado na sociedade é um dos motivos pelos quais o número de pessoas aptas para adotar é maior do que o número de crianças disponíveis.
“A grande maioria das pessoas que querem adotar busca uma criança branca, recém-nascida e do sexo feminino”, observa.
A psicóloga alerta que o processo de adoção não é um ato de caridade, mas é importante levar em consideração as prioridades dos pais. Mesmo assim, admite que em uma sociedade mais aberta, a fila de crianças para adoção seria menor.
“Há 20 anos, as autoridades encaminhavam crianças de 2 e 3 anos para adoção internacional. Existe esse preconceito no Brasil, que crianças com mais de 8 anos não criam vínculos ou têm a personalidade ‘estragada’. No entanto, elas criam vínculos, e a personalidade continua em desenvolvimento”, explica.
Meninas pardas são maioria na fila de adoção

Os dados revelam que as crianças e adolescentes incluídos no sistema de busca ativa em MS são predominantemente do gênero feminino (31), o que representa 54% do total, enquanto o percentual de meninos é de 45%, ou seja, 26 do total. No panorama nacional, a maioria é do gênero masculino.
Quanto ao recorte racial, observa-se que a maioria das crianças e adolescentes é parda, 64,9% do total, seguidos por brancos (14%), negros (10,5%) e indígenas (10,5%).
Em relação às pessoas com deficiência, 14,3% apresentam deficiência intelectual e 8% possuem deficiência física e intelectual. Outros 25% têm problemas de saúde não classificados como deficiência.

Como entrar no sistema de adoção?
Para iniciar o processo de adoção, é fundamental realizar o cadastro no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, essa etapa assegura uma abordagem organizada e eficiente para conectar pais e mães adotivos e crianças/adolescentes que esperam por um lar.
Antes de iniciar o processo, é importante verificar os requisitos estabelecidos pela legislação brasileira, que em regra inclui:
- Ser maior de 18 anos, independentemente do estado civil.
- Possuir diferença mínima de 16 anos entre adotante e adotando.
O procedimento de adoção é isento de custos e deve ser iniciado na Vara da Infância e Juventude mais próxima. Após efetivar o cadastro e entregar os documentos necessários, os adotantes terão acesso à “Busca Ativa”, enquanto aguardam ser consultados para adoção por meio da fila.
Aproximando Vidas
Para ter acesso às informações, todos os pretendentes precisam estar cadastrados nos sistemas de Busca Ativa. Katy Braun explica que para ingressar na Busca Ativa do SNA, o pretendente deve estar devidamente habilitado. Outros sistemas, como Aproximando Vidas, criado em Mato Grosso do Sul, permitem que pessoas não habilitadas conheçam as crianças em busca ativa.
“Somente estando devidamente habilitado é que o pretendente pode formalizar o pedido de adoção. A busca ativa pode motivar esse passo, mas o processo de habilitação e adoção é o mesmo”, explica.
Interessados podem acessar o site aproximandovidas.tjms.jus.br/, mesmo que não estejam habilitados para adoção. O TJMS (Tribunal de Justiça de MS) destaca que a iniciativa permite que o público manifeste interesse em se aproximar dessas crianças e adolescentes, para iniciar um processo de adoção.
Então, a partir desse interesse, os pretendentes passarão pelo processo regular de habilitação e preparação para entrar com o pedido de adoção.
A Busca Ativa na adoção segue regras estabelecidas pela Portaria CNJ nº 114/2022. O material é divulgado a partir da expressa vontade das crianças e adolescentes e com autorização do juiz responsável pelo caso.
Além disso, apenas os prenomes dos meninos e meninas são informados, e as imagens acompanham marca d’água com o nome ou CPF de quem as acessou, para garantir a segurança dos participantes.
Ficou com dúvidas? Basta acionar a Coordenadoria da Infância e Juventude pelos telefones: 67 3317-8604 ou 3317-86855.
* Foi utilizado um nome fictício para preservar a identidade do personagem Luiz
💬 Receba notícias antes de todo mundo
Seja o primeiro a saber de tudo o que acontece nas cidades de Mato Grosso do Sul. São notícias em tempo real com informações detalhadas dos casos policiais, tempo em MS, trânsito, vagas de emprego e concursos, direitos do consumidor. Além disso, você fica por dentro das últimas novidades sobre política, transparência e escândalos.
📢 Participe da nossa comunidade no WhatsApp e acompanhe a cobertura jornalística mais completa e mais rápida de Mato Grosso do Sul.