“Fui para o Alcoólicos Anônimos (A.A.) em busca de um resgate, de viver bem comigo mesmo”, é o que relata João (nome fictício para preservar a identidade), que está sóbrio há 31 anos. No dia 23 de junho de 1992, João bebeu a quantidade que julgou necessária para ganhar coragem e foi para sua primeira reunião do A.A., pois, segundo ele, “uma característica do alcoólatra é ter medo daquilo que ele não conhece”.

Nesta terça-feira (20), comemora-se o Dia Nacional do Combate às Drogas e ao Alcoolismo.

Seu encontro com a Irmandade foi o começo para uma vida nova. “Eu achava que era um monte de bêbado, mas só eu cheguei. Fui bem acolhido assim mesmo, me falaram ‘você é importante, foi bom você ter vindo, se tem problema com a bebida: evita o primeiro gole, só por hoje', aí eu pensei comigo ‘amanhã eu posso beber, mas amanhã eu não vivi ainda, então é hoje que eu tenho que fazer o compromisso'. Mudou minha vida”. 

O Alcoólicos Anônimos foi criado em 1985, atua mundialmente e se autodefine como “uma Irmandade de pessoas que compartilham, entre si, suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolverem seu problema comum e ajudarem outras a se recuperarem do alcoolismo”. Ao chegar à Irmandade, João ganhou companheiros e companheiras que o ajudam a permanecer sóbrio, como Antônio e Carlos (nomes fictícios para preservar as identidades). Os companheiros renasceram no mesmo ano: 1983. Antônio parou de beber em agosto, Carlos em setembro. Neste ano de 2024, ambos completarão 41 anos sóbrios, 41 anos de A.A.

Os três sabem de cor a definição do grupo e explicam que “A.A. não está ligado a nenhuma seita ou religião, nenhum movimento político, nenhuma organização ou instituição. Nosso propósito primordial é mantermo-nos sóbrios e ajudarmos outros alcoólicos a alcançarem a sobriedade”. Além disso, a Irmandade se autossustenta a partir de contribuições voluntárias: “cada um dá o que o coração manda”, afirma Antônio.

Acolhimento

Carlos conta que precisou chegar ao A.A. em dois momentos distintos, no primeiro não ficou, disse para si mesmo que conseguiria parar de beber mesmo sem seguir os processos recomendados pelo grupo. “Eu vou ficar aqui um tempo e vou parar sozinho, vou mostrar para essa raça quem sou eu. Não consegui”, afirma. 

O A.A. realiza reuniões periódicas para decidir coletivamente as ações a serem realizadas no MS. (Foto: Ana Laura Menegat/ Jornal Midiamax)

Carlos voltou então para o A.A., viu a melhora acontecendo em sua vida e ficou. Porém, segundo ele, muitos chegam até o A.A. e vão embora. “No nosso programa, na nossa recuperação, poucos vêm com o intuito de continuar, a maioria vem querendo resolver o problema do momento: uma briga de casal, uma briga no emprego. Uma boa parte, quando resolve esse problema, se afasta e vai embora. A gente não tem o direito de obrigar, a gente só tem o direito de sugerir: seria bom se continuasse!”, relata.

Antônio afirma que “esse continuar é raro”. Ao ser questionado do porquê de continuar, Antônio afirma: “Se você não se sente bem em um lugar, você não volta lá, então houve uma atração. Nós aqui temos calor humano, nós não discriminamos as pessoas. A pessoa pode chegar mal cheirosa, mas se ele quiser assistir, nós recebemos, damos um cafezinho, isso é diferente de outros lugares que têm duas pessoas na porta não deixando entrar”.

João afirma ter tido sua vida salva pelo Alcoólicos Anônimos. “Cheguei destroçado e o programa de Alcoólicos Anônimos resgata a pessoa. Não é uma religião, mas é a busca da espiritualidade, a busca de viver bem. AA é uma irmandade de pessoas que compartilham experiências, força e esperança”.

Consciência individual e coletiva

A OMS (Organização Mundial da Saúde), desde 1967, considera o alcoolismo uma doença e demanda que esse seja tratado como uma questão de saúde pública. A publicação Álcool e a Saúde dos Brasileiros – Panorama 2022, realizada pelo Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), mostra que a região Centro-oeste apresentou os maiores índices de Consumo Abusivo de Álcool (BPE) nos anos de 2020 e 2021, totalizando, respectivamente, 24,3% e 21,1% de consumo. Em 2020, a região com menor índice foi a Norte, com 15,7%. Em 2021, o menor valor foi apresentado pela região Sul, com 15,1%.

Segundo o levantamento do Cisa, em 2020 foram registrados no Brasil 66.593 óbitos parciais ou totalmente atribuídos ao álcool. Dentre eles, 18,7% decorreram de cirrose hepática; 11,5% de violência interpessoal; 15,6% de acidente de trânsito; 12,2% de transtornos mentais e comportamentais e 42,0% atribuídos a outras causas.

João conta que precisava beber para enfrentar situações difíceis e fora de sua zona de controle. “Admitir para mim que eu sou fraco, um derrotado, foi difícil para mim. Até então o álcool era meu deus, tudo que eu ia fazer eu precisava beber para criar coragem”. Carlos complementa: “Beber é bom demais, a gente acha que tem o controle. Então a maioria chega numa situação ruim, mental, espiritual, física e social. Chega totalmente destruído, aí quando começa a resolver o problema, ele acha na mente dele que já resolveu”. 

Os entrevistados concordam que um dos passos mais necessários, difíceis e indispensáveis para passar por essa mudança de vida é tomar consciência de si. “O remédio para nós alcoólatras é a quebra de orgulho, um orgulho que o próprio alcoolismo deixa na gente: na minha vida eu mando, na minha vida cuido eu, bebo com meu dinheiro, quando eu quiser parar eu paro. Médico não tem remédio para isso”, afirma Carlos. 

Essa consciência precisa se tornar algo rotineiro, para que as pessoas que desejam parar de beber possam estar atentos e fortes, assim como canta Gal Costa na “Divino maravilhoso”: “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. 

Caminho para a sobriedade

O Alcoólicos Anônimos estimula a troca de experiências entre as pessoas, para que elas possam descobrir o que as levava até o álcool e vejam pessoas que já estão caminhando na direção oposta do vício, para assim se inspirarem. O A.A. indica caminhos possíveis a serem seguidos em busca da sobriedade, sendo eles os “Doze passos”:

  • “1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.
  • 2. Viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade.
  • 3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos.
  • 4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.
  • 5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.
  • 6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.
  • 7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.
  • 8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e dispusemo-nos a reparar os danos a elas causados.
  • 9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.
  • 10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.
  • 11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade.
  • 12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.”

Além disso, Carlos reforça que “a forma de ajudar no começo é deixar o bêbado ser responsável pelos seus atos, não adianta ficar colocando a mão na cabeça não”. Antônio complementa: “a gente fala assim: presta atenção! O importante para nós é o resgate do ser humano, não interessa se é homem, mulher ou outros. Queremos o resgate da vida”.

João foi para o A.A. “em busca de um resgate, de viver bem comigo mesmo” e não brinca com coisa séria: “estou há 30 anos sem beber, mas essa doença continua comigo, porque ela é emocional”. Todos os dias o processo continua e “se um companheiro chega hoje, a palavra dele é tão importante quanto a nossa com 40 anos de A.A.”, explica Antônio. Para Carlos, mesmo com as dificuldades do dia a dia, a rotina passou a ter um gosto menos amargo: “Quando eu fui arrumando a minha vida eu fui pensando ‘puxa vida, como o A.A. é bom'. Penso até hoje”.

O A.A. no Mato Grosso do Sul

O MS possui 37 grupos do A.A, divididos em 20 cidades. Campo Grande abriga a maioria deles, tendo 13 grupos do Alcoólicos Anônimos. Além da capital, as cidades que possuem grupos do A.A. são Amambai, Aquidauana, Bela Vista, Bonito, Caarapó, Cassilândia, Coronel Sapucaia, Corumbá, Costa Rica, Dourados, Glória de Dourados, Iguatemi, Ivinhema, Jardim, Maracaju, Miranda, Nova Andradina, Terenos e Três Lagoas. Por meio do link https://www.aa.org.br/informacao-publica/o-grupo-de-a-a/localizacao-dos-grupos-e-escritorios-listagem-e-mapa é possível conhecer todos os grupos do MS e do Brasil, conferir o endereço e horários de reuniões de cada um.