Vidas entregues à droga: Mesmo com ajuda em Campo Grande, por que é tão difícil abandonar o vício?

Mesmo em condições sub-humanas, dependentes que vivem em ‘minicracolândias’ rejeitam ajuda e psiquiatra aponta o motivo

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Na calçada, morador de rua dorme profundamente em cima de pedaço de papelão. (Foto: Nathalia Alcântara / Jornal Midiamax)

É pouco mais de 7 horas da manhã e o sol forte já toma conta de todo o paredão na Rua Barão do Rio Branco, ponto evitado por muita gente na cidade, bem em frente ao prédio da antiga rodoviária de Campo Grande. Na calçada, dois ou três sofás velhos e um amontoado de colchões sujos, livram corpos visivelmente exaustos do chão duro e rodeado de lixo. 

Para quem virou dias usando pasta base, nem o barulho da cidade acordando ou os raios do sol queimando a pele são suficientes para despertar o sono, que mais parece um ‘apagão’. Já para quem se mantém acordado, pequena faixa de sombra na Rua Vasconcelos Fernandes serve de abrigo para acender um cachimbo atrás do outro.

Cenários assim têm ganhado força em Campo Grande e fugido ao controle do Poder Público. Enquanto antigas ‘cracolândias’ se mantêm na região do Centro, novos pontos surgem e o narcotráfico doméstico avança também na direção dos bairros, a exemplo do Aero Rancho, Tiradentes e Nhanhá. 

Jornal Midiamax publica série de reportagens sobre ‘minicracolândias’ em Campo Grande e a disseminação de bocas de fumo pelos bairros da cidade, assim como as implicações sociais que esse tipo de atividade criminosa causa. Leia as outras reportagens da série: 

“Narcotráfico doméstico avança e ‘minicracolândias’ se espalham por bairros de Campo Grande”.

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Para quem mora ou trabalha próximo a esses locais, a situação é descrita como ciclo problemático do qual não se enxerga resquícios de solução. É assim para a proprietária de um dos tantos brechós que ainda resistem na região da antiga rodoviária, uma empresária de 42 anos que prefere não ser identificada. 

Calçada na Rua Barão do Rio Branco abriga usuários de droga em frente à antiga rodoviária de Campo Grande. (Foto: Nathalia Alcântara)

“Nada aqui tem uma imagem bonita de se observar. Estou há 9 anos nesse ponto e já presenciei situações constrangedoras e perigosas. Vi gente fazendo necessidades fisiológicas na frente de quem passava, briga de todo o tipo e até uma grávida, que era usuária de droga, já entrou em trabalho de parto na minha calçada”, comenta. 

Sem condições de deixar o ponto, a lojista afirma que a ela e aos colegas de trabalho só resta buscar se adaptar enquanto contabilizam prejuízos. “Para nós é muito ruim porque muita gente deixa de vir aqui por medo da região. É sujeira pra todo lado, gente dormindo na calçada e o cheiro constante de droga”, finaliza. 

Vidas entregues ao vício

A poucos metros do brechó, Enis Martins de Oliveira se prepara para mais um “pega”, que é interrompido pela aproximação da reportagem. Enquanto conversa com a equipe, o senhor de longa barba branca segura um pequeno cachimbo improvisado, feito com espécie de canudo de alumínio. 

Dos 60 anos de idade, mais da metade foram entregues ao vício em pasta base. “Se eu levantar e não tiver um pega meu dia não começa. Fico mal e com raiva. Uso a pasta base todo dia, só não uso quando estou dormindo”, confessa. 

Entregue à dependência há 32 anos, Enis garante que já não consegue controlar o desejo pela droga, que passou a usar para mascarar tristezas da vida. Para não ficar sem as pedras que fuma de hora em hora, já recusou incontáveis ofertas de ajuda enquanto se submete a condições sub-humanas.

Ajuda que chega versus dependência que afasta 

Para o público que frequenta as ‘cracolândias’, sejam os que circulam apenas de passagem ou aqueles que fazem a rua de casa, opções de ajuda surgem de diferentes lados, seja do Poder Público ou de instituições religiosas, privadas e de assistência social. No entanto, apesar de todo o amparo envolvido, na maioria esmagadora das vezes as ofertas não são o bastante.

Mas afinal, por que é tão difícil para um dependente químico sair da condição de rua? 

Equipe da Secretaria Municipal de Saúde faz curativo em atendimento a dependentes químicos. (Foto: PMCG)

Para além de qualquer julgamento sobre o assunto, é preciso evidenciar o que acontece no cérebro do dependente químico. Psiquiatra e coordenador de saúde mental da Sesau (Secretaria Municipal de Saúde), Eduardo Gomes de Araújo usa uma escala hipotética que vai de zero a 100 para exemplificar o que acontece com o funcionamento cerebral dos usuários. 

“O cérebro reage e se modifica conforme estímulos. Quando uma pessoa vê um filme, por exemplo, isso eleva a dopamina a um nível 10, em um beijo, eleva a 40, já em uma festa vai a 50. Para quem usa droga a elevação é máxima e isso provoca uma resposta de prazer, no entanto, o cérebro estimulado com frequência se modifica e passa a precisar da dopamina para funcionar, não mais para prazer”, detalha. 

Segundo ele, o resultado cerebral de quem passou a depender da droga é a falta da produção natural do prazer, situação que acarreta perda da alegria em fazer coisas que antes proporcionavam felicidade, como ver um filme ou fazer um passeio com a família.

“Essa falta de prazer acarreta em uma depressão que às vezes nem o tratamento com remédios faz as coisas voltarem a ser como antes. As recaídas, que são tão comuns, são justamente a busca por suprir essa falta de prazer”, completa. 

Apenas 3%

Para romper o ciclo do vício, existe grande e árduo caminho a ser percorrido. Por causa dessa dificuldade, literaturas que tratam sobre o tema fixam entre 3% e 5% o percentual de pessoas que conseguem se livrar do ciclo da dependência.

“O cenário é de briga constante contra o cérebro pedindo a droga. As crises de abstinência, por exemplo, envolvem vômitos, dores abdominais, diarreia e até desmaios. Não é como a vontade de um chocolate que você se controla e logo passa. Por isso, além de muita força de vontade, é preciso tratamento adequado com medicamentos e a reinserção no ambiente de emprego e social”, esclarece o médico.

Toda dificuldade e complexidade envolvida é apontada como a principal justificativa para os altos índices de recusa às ofertas de ajuda. 

“Para quem está em situação de rua, a droga é um mecanismo de fuga e compensação pelo sofrimento. Quando a ajuda é oferecida, essas pessoas são levadas para abrigos onde o uso de drogas não é permitido, por isso é tão difícil tirá-las dessa condição, muitos, inclusive, se adaptam e fazem a rua de casa”, explica.

De onde vem a ajuda?

Da Prefeitura de Campo Grande, a ajuda aos dependentes químicos que estão em situação de rua parte, especialmente, da Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) e da SAS (Secretaria Municipal de Assistência Social).

De acordo com levantamento da SAS, entre janeiro e abril de 2023, pelo menos mil abordagens foram feitas pelo Seas (Serviço Especializado de Assistência Social), que faz abordagens nas ruas. “Nosso serviço de abordagem social é ofertado de forma contínua, 24 horas por dia, e atua via denúncia e por busca ativa nos locais onde há concentração de moradores de rua”, explica o secretário da SAS, José Mário Antunes.

Abordagens feitas pela Secretaria de Assistência Social na antiga rodoviária de Campo Grande. (Foto: SAS)

Segundo ele, as abordagens são feitas por 11 equipes compostas por quatro servidores, que trabalham nas ruas até às 23h, depois desse horário, o atendimento se concentra no Centro Pop, (Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua), onde são oferecidas refeições, banho e atendimento psicossocial. Nos três primeiros meses do ano, 1.669 pessoas foram atendidas no Centro Pop.

Apesar do trabalho desenvolvido, o secretário afirma que todo esforço implicado, frequentemente, esbarra na recusa de atendimento. “Nosso grande desafio é que essas pessoas não são obrigadas a aceitar ir para o abrigo, eles têm esse direito. Hoje, o índice de acolhimento em um dia normal varia entre 10% e 15%, em dias de chuva ou na onda de frio, aumenta para até 35%, mas assim que o tempo normaliza eles voltam para a rua”, detalha.

Além do serviço da SAS, a Secretaria Municipal de Saúde leva consultório até a rua, onde oferece atendimentos clínicos e psicológicos de segunda a sexta-feira durante o dia, com plantão noturno até às 21h três dias da semana. Em outro programa, o Serviço Atenda, equipe faz rastreamento de pessoas em situação de vulnerabilidade com oferta de atendimentos de saúde, psicológicos e psiquiátricos. 

Nos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) Álcool e Droga, equipe multiprofissional atende 24 horas com possibilidade de internação em 20 leitos por até 15 dias. Além disso, acordos da Sesau mantêm 12 leitos de saúde mental no Hospital Regional e 20 na Santa Casa.

Semanalmente, instituições religiosas, privadas e de assistência social levam comida, roupas e itens de higiene aos pontos frequentados pelos usuários.

Sim, é possível

Aos 42 anos, Joelson Gomes é o exemplo de que mesmo com todo o cenário desfavorável, é possível vencer o vício. Líder da comunidade terapêutica RC Vidas, o pastor passou 15 anos da vida entregue ao uso da pasta base. Com a propriedade de quem entende sobre o assunto, ele lembra como, na maioria das vezes, se dá o ciclo do uso e dependência.

“A pessoa começa o uso para tentar preencher algum vazio ou por curiosidade e cai em uma armadilha. A dependência química é muito poderosa e tem um poder de destruição muito grande. A gente se engana com o argumento que consegue parar quando quiser, mas na realidade não é bem assim”, conta. 

No processo para abandonar o vício, Joelson lembra das severas crises que vivenciou todas as vezes em que o corpo pedia a droga. “Eu tinha muita vontade de usar, chorava, gritava e foi assim por três anos, mesmo depois que saí da casa de internação onde fiquei por um ano”, relembra.

Para ele, força de vontade, reinserção social e o apoio familiar são os principais pilares para vencer o vício. “O dependente é muito instável, por isso precisa de uma rede de apoio. Primeiro tem que aceitar que precisa de ajuda e que o processo não é fácil. Durante o tratamento, é importante saber que a família o apoia e depois disso, precisa de uma ocupação. Muitos passam um longo período em clínicas e são liberados com a justificativa de que estão prontos para ir embora, mas prontos para o quê? Ir embora para onde?”, expõe.

Desde 2012, Joelson mantém uma comunidade terapêutica em Campo Grande que já realizou mais de 5 mil acolhimentos de dependentes do álcool e de drogas. Segundo ele, na unidade são oferecidos tratamentos físicos, psicológicos e espirituais por 12 meses. Depois da alta, os pacientes são encaminhados para vagas de emprego disponibilizadas por empresários parceiros. Em uma década, o pastor afirma que mais de 100 pessoas atendidas por ele deixaram o vício, número comemorado por ele e por mais de uma centena de famílias, no entanto, quantidade que evidencia que ainda é baixo o índice de pessoas que conseguiram deixar o uso das drogas.

Como ajudar?

Além das abordagens feitas em pontos de uso de drogas, a população em geral pode entrar em contato com a Prefeitura informando a necessidade de visita em determinado ponto. Os telefones de contato são: (67) 996606359 e (67) 996601469.

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