Sargento trans que conquistou direito a farda feminina em MS é aposentada da Marinha
Alice tem 5 laudos de diferentes médicos que comprovam sua estabilidade mental, mas foi diagnosticada com transtorno de personalidade e inapta a exercer sua função
Lethycia Anjos –
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Mulher, negra, transexual e sargento da Marinha de Ladário, Alice Costa travou uma árdua batalha pelo reconhecimento de sua identidade de gênero, até que, em 2022, conseguiu na Justiça, o direito de adotar o nome social, utilizar uniformes e cabelos femininos durante o serviço militar. Passados dois anos e cinco meses, Alice foi arbitrariamente, segundo a análise da defesa dela, afastada de forma definitiva da corporação.
Pega de surpresa, Alice recebeu a informação de sua ‘aposentadoria’ na última sexta-feira (15) durante inspeção de saúde. Com um laudo arbitrário, a militar foi considerada inapta a exercer sua função.
“Confesso que não é algo que eu esperava. Fiquei impressionada porque mesmo com laudos que corroboram com minha estabilidade mental e minha melhora, recebi a notícia que receberei o incapaz definitivamente”, lamenta a sargento.
Para Alice, seu afastamento compulsório é um caso claro de transfobia, visto que durante sua atuação na Marinha, passou por inúmeras situações de preconceito.
Com objetivo de suspender a decisão, advogada da Sargento, Bianca Figueira Santos, decidiu entrar com uma ação na 1ª Vara Federal de Corumbá.
“A própria médica disse que Alice estaria sem depressão e sem ansiedade, mas que tinha Borderline e que essa doença não tinha cura, só controle, e que ela lhe daria um laudo de incapacidade definitiva, assim como fez com outros na mesma situação”, argumenta a advogada.
Laudos comprovam estabilidade mental de Alice
Alice possui uns cinco laudos de diferentes médicos que comprovam sua estabilidade mental e a condição de estar apta a retornar ao trabalho. No entanto, o laudo emitido pela médica oficial da Marinha se sobrepôs a todo o histórico médico da militar e a considerou inapta.
Segundo a sargento, durante a inspeção de saúde a médica admitiu sua estabilidade mental, mas emitiu o laudo com um diagnóstico de Boderline que a impede de permanecer na Marinha.
“Sei que você esta bem, curada da depressão, sem ansiedade. Só que Boderline não tem cura. Sou humana, não é nada pessoal com seu caso, mas esse ano fiz isso com outras pessoas com diagnóstico de crise de personalidade. Não seria justo você ter um tratamento diferente. Por isso, estou decidindo na incapacidade definitiva”, disse a médica.
Bianca Figueira destaca ainda que recentemente militares foram proibidos a portar aparelhos eletrônicos durante a inspeção médica, o que dificulta a produção de provas mais concretas.
“Já houve casos de militares gravarem e produzirem provas, os orientava nesse sentido. Agora, não podem mais. Nem o celular entra, eles são obrigados a colocarem em um armário antes de ingressar porque poderiam gravar, inclusive a conversa da Alice com a militar-médica poderia ter sido gravada se não fosse a proibição”, ressalta a advogada.
Além disso, o diagnóstico de Borderline, a qual Alice foi condicionada, pode ter fundamento na transfobia, uma vez que a condição consiste em um transtorno de personalidade caracterizado pela instabilidade e hipersensibilidade nos relacionamentos interpessoais e instabilidade na autoimagem.
“Esse diagnóstico é uma invenção, Alice foi afastada em agosto de 2021 por depressão e ansiedade. Isso surgiu durante o afastamento, ela nem conseguiu usufruir da decisão que concedeu o direito ao nome social e a farda feminina”, destaca a advogada.
‘Eles não toleram o diferente’
O caso de Alice não é uma situação isolada e para a advogada toda a situação expõe a transfobia intrínseca na corporação, uma vez que o laudo que a considera inapta foi emitido durante um período de afastamento.
“Esse suposto Borderline surgiu no período de afastamento em licença para tratamento de saúde, imposto pela Marinha, e que já perdura cerca de 2 anos e 4 meses. É uma nova suposta doença que eles criaram para afastar a Alice, eles não toleram o diferente, não admitem ter transexuais servindo à tropa”.
Além de Alice, a própria advogada, Bianca Figueira, passou pela mesma situação e foi reformada após se assumir trans.
“Eu própria fui reformada por ser trans. Além de mim, a lista é longa: 2º SG. Bruna Gurgel Batista, SG Alice Costa, CB. Allanis da Silva Costa, afastada por depressão e ansiedade e CB. Nicolly Dandara Ferreira Rodrigues, também afastada por depressão e ansiedade”, afirma.
A advoga esteve a frente de diversos casos parecidos, como o da GM Sabrina Rodrigues Pacheco, que após uma batalha judicial conseguiu uma determinação favorável da justiça.
“Sabrina passou no concurso para oficiais temporários e quiseram impedi-la de servir por alegarem um suposto hipogonadismo devido à cirurgia de redesignação sexual. Ela não foi promovida e aguarda decisão da justiça para sua promoção e para confirmarem a liminar”.
Bianca cita ainda o caso do 2º sargento trans Lucas da Cruz que, apesar de não ter sido afastado, está sendo prejudicado em avaliações e compromissos de carreira como embarque e comissões.
Decisão unânime garantiu direito a farda feminina
Em decisão unânime, três desembargadores da primeira turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região reafirmaram, no dia 27 de setembro de 2022, o direto ao uso da farda feminina a Alice.
Em janeiro do ano passado, a 1ª Vara Federal de Corumbá havia dado parecer favorável ao pedido de Alice, no entanto, a Marinha recorreu da decisão que foi para avaliação na segunda instância.
No Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o desembargador Valdeci dos Santos considerou que “a negativa de reconhecimento de identidade das pessoas transgêneros no âmbito das Forças Armadas se trata de ação deliberada e sistemática, caracterizando flagrante violação aos seus direitos fundamentais”.
“A União entende que a autora não pode ocupar as vagas reservadas aos militares do gênero masculino por ser uma mulher transgênero, mas, no momento em que prestou o concurso, seria dificilmente aceita no quadro de militares do gênero feminino porque ainda possuía ‘aparência masculina’, e tampouco estaria apta às referidas vagas na data atual em vista da ausência de mudança do nome do registro civil”, acrescentou o magistrado.
Para o desembargador, fica clara a interpretação da Marinha de que “em nenhuma hipótese Alice poderia ingressar nas Forças Armadas, uma vez que não está ‘qualificada’ em nenhum dos gêneros, o que configura uma clara tentativa de afastá-la do serviço militar por uma espécie de paradoxo de exclusão”.
O que diz a Marinha?
Em nota, a Marinha do Brasil afirmou que, em respeito à privacidade e à inviolabilidade da militar, não irá se manifestar sobre as questões de saúde de Alice, mas ressaltou que o afastamento não é caso de reforma.
“É suficiente esclarecer que o art. 106, II, da Lei n° 6.880/80, o Estatuto dos Militares, impõe a reforma de militar de carreira que seja julgado incapaz, definitivamente, para o serviço ativo das Forças Armadas, incapacidade esta que pode ser decorrente de qualquer uma das situações previstas no art. 108 do diploma legal supramencionado. Não obstante, cumpre ressaltar que no momento, a militar encontra-se temporariamente incapaz para o serviço ativo, não sendo o caso de reforma”, diz a nota.
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