Segunda-feira, 4 de dezembro de 2023, a tempestade que a assolada encontra uma fresta no bocal de uma lâmpada. Em questão de segundos, a água invade a sala da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Leblon, enquanto uma mãe de 26 anos acompanhava os filhos, de 7 e 9 anos que recebiam atendimento no local.

A cena reflete apenas uma das inúmeras adversidades vividas pela população que precisou recorrer à saúde pública de em 2023. Considerado ‘cultural', as longas filas e a má estrutura das unidades de saúde se tornaram parte intrínseca do cotidiano da população e há anos figuram como um dos principais desafios do setor de saúde.

Secretário Municipal de Saúde de Campo Grande, Sandro Benites reconhece que a estrutura física das unidades de saúde foi o principal desafio enfrentado pela população em 2023. “De 124 unidades, herdamos 74 sem a menor condição de atendimento. Pontos de inundação, falta de estrutura, uma situação que considero vergonhosa para uma cidade como Campo Grande”, afirma.

Segundo o secretário, neste ano cerca de 30 unidades e o complexo que abriga a Sesau passaram por reformas, o que incluiu revitalização de toda a estrutura física como parte elétrica e hidráulica.

tempo seco
Situação é caótica em unidades de saúde. (Foto: Leitor Midiamax)

Mas o caminho que levou a população sul-mato-grossense até os hospitais e unidades de saúde percorreu um longo período marcado pelo surgimento de novas enfermidades, surto de doenças respiratórias, alta de acidentes de acidentes com escorpiões e pico de endemias.

Passagem da Mpox

A recomendação pelo uso do termo Mpox foi decidida pela OMS (reprodução)

O ano de 2023 iniciou sob a sombra de uma nova e misteriosa doença, a Mpox. Causada pelo Orthopoxvirus, a doença foi inicialmente denominada de “varíola dos macacos”, contudo, trata-se de um vírus que infecta roedores na África, sendo os primatas hospedeiros acidentais, assim como os seres humanos.

Até maio do ano passado, todos os surtos de Mpox estavam restritos ao continente africano. No entanto, a doença se disseminou globalmente, manifestando transmissão comunitária entre humanos em vários países, inclusive no Brasil.

Em 2022, Mato Grosso do Sul registrou 535 notificações e 160 casos confirmados da Mpox. Já em 2023, o número de casos notificados caiu para 72, com apenas uma confirmação ao longo do ano, revelando o controle da doença que chegou a matar no país.

Surto de doenças respiratórias lideraram óbitos

Pouco conhecida e de nome complicado, a SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) foi a principal causa de mortes por doenças no ano de 2023. A alta de casos foi determinante para a superlotação das unidades de saúde e hospitais em todo o Estado.

O vírus, que atinge principalmente bebês recém-nascidos, consiste em síndromes gripais que evoluem com comprometimento da função respiratória e, na maioria dos casos, leva à hospitalização, sem outra causa específica. Inúmeros fatores podem desencadear a doença, dentre os quais predominam os vírus respiratórios da Influenza do tipo A e B, Vírus Sincicial Respiratório, SARS-COV-2, Rinovírus, bactérias, fungos e outros agentes.

Em 2023, Mato Grosso do Sul contabilizou 7.338 casos confirmados da doença, desse total, 660 casos evoluíram para óbito, o que corresponde a 9% dos casos.

Mais de 50 crianças por dia à espera de vaga em hospital

crianças esperando vaga doença respiratória
Crianças esperam vagas em hospitais. (Foto: Fala Povo)

30 de março de 2023, UPA Leblon, Campo Grande. Uma bebê de 45 dias espera há cinco dias por um leito em hospital. Seu caso é grave, diagnóstico de bronquiolite. O prognóstico o médico diz que a paciente tem quadro potencial para evoluir para falência respiratória aguda e ventilação mecânica com risco de morte. Um entre as centenas de casos de SRAG que marcaram 2023.

No primeiro semestre do ano, Mato Grosso do Sul viveu um pico da síndrome. Em Campo Grande, pelo menos 50 crianças em estado grave aguardavam vaga em hospital nos corredores das UPAs. O número, registrado diariamente, evidencia o caos vivido pela saúde pública.

Dengue tem segundo maior pico de mortes em dez anos

Se por um lado a Covid figurou em estabilidade, a dengue seguiu como um dos principais desafios as autoridades de saúde. Em 2023, Mato Grosso do Sul contabilizou 42 óbitos pela doença, enquanto o número de pessoas contaminadas foi 40.460 neste ano.

O número de óbitos por dengue é o segundo maior da série histórica criada em 2014, ficando atrás somente de 2020, quando 43 pessoas morreram pela doença. Além disso, 75 das 79 cidades do Estado registraram alta incidência da dengue.

Em relação aos casos confirmados, o número registrado em 2023 é 90% maior que no ano passado – em 12 meses o total de casos confirmados passou de 21.328 para 40.713.

Com o número alarmante, a boa notícia para 2024 é que, ano que vem, Mato Grosso do Sul será a primeira unidade da Federação a aplicar a vacina contra a dengue gratuitamente no Brasil. 

A campanha será iniciada em Dourados, a 358 km de Campo Grande. O imunizante, fabricado pelo laboratório Takeda e denominado Qdenga, começa a ser distribuído em todas as UBS's (Unidades Básicas de Saúde) no dia 3 de janeiro para ser aplicado à população com idade entre 4 e 59 anos, 11 meses e 29 dias.

Com três mortes, Chikungunya seguiu ativa

Mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, zika e chikungunya | Foto: Apurv013 | WikiCommons | Reprodução

No ano em que os casos de dengue atingiram um recorde, pouco se falou sobre as outras arboviroses transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti: chikungunya e zika vírus. Mas, de janeiro até a segunda semana de dezembro de 2023, Mato Grosso do Sul confirmou três mortes e 1.319 casos de chikungunya. Do total, 36 foram identificados em gestantes.

Segundo o Ministério da Saúde, a doença é causada pelo vírus chikungunya e pode ser transmitida pelos mosquitos Aedes aegypti, responsável pela dengue, e o Aedes albopictus, transmissor da febre-amarela.

O período de incubação varia de dois a dez dias, e os sintomas incluem febre repentina acima de 38,5°C, manchas vermelhas na pele, dor de cabeça e dores nos músculos e articulações de pés e mãos.

Quanto ao zika vírus, os dados indicam que o Estado registrou 136 casos prováveis e 89 confirmações em 2023. Ao contrário da dengue e chikungunya, não houve registro de mortes relacionadas ao zika.

O alerta para o ano que vem é para nova epidemia de dengue, com possibilidade de ressurgimento dos tipos 3 e 4, o que fez o Ministério da Saúde anunciar neste mês estratégia para Mato Grosso do Sul, que fará parte dos estados que receberão investimento de R$ 256 milhões para o fortalecimento da vigilância das arboviroses no Brasil.

Acidentes com escorpião levam três crianças ao óbito

Citox/ escorpião (Nathalia Alcântara, Midiamax)

O clima intensificado pelas ondas de calor levou Mato Grosso do Sul a registrar um recorde de acidentes envolvendo escorpiões em 2023. Com 3.623 casos entre janeiro e novembro, os ataques superaram todo o ano de 2022, o que representa um aumento de 13,04% frente aos 3.205 casos registrados ano passado.

Quatro crianças preenchem a lista de vítimas fatais por picada de escorpião: Picado ao calçar o sapato para ir à escola Pyetro Gabriel Arguelho, de 5 anos, foi a primeira vítima do ano, na cidade de Ribas do Rio Pardo, a 96 quilômetros de Campo Grande. A partida de Pyetro gerou comoção em toda a cidade de 23 mil habitantes. Durante o velório, mais de 50 igrejas marcaram presença, para prestar apoio a família enlutada.

Aos quatro anos, Maria Fernanda foi picada por um escorpião enquanto dormia em sua casa, também em Ribas do Rio Pardo, a menina chegou a ser transferida para Campo Grande, mas não resistiu. A confirmação do óbito foi praticamente no mesmo horário da alta de um menino de 8 anos, também foi picado por um escorpião na mesma cidade.

velório
Cortejo após o velório de Pyetro (Foto: Reprodução/Notícias do Cerrado)

Sem identificação e com um histórico negligências que antecederam sua morte, a terceira vítima foi uma menina de seis anos, moradora de Brasilândia, a 328 km de Campo Grande. A criança foi picada pelo animal peçonhento em 23 de setembro, não resistiu e faleceu no dia seguinte após ser transferida para um hospital em Três Lagoas, onde foi constatado que a menina também tinha lesões que indicavam abusos sexuais.

A quarta morte foi confirmada em 11 de dezembro. José Guilherme Maracci, de 10 anos, morreu após uma parada cardiorrespiratória e síndrome da angústia respiratória aguda, causada por picada de escorpião. O caso ocorrreu em a 327 km de Campo Grande.

Somente em outubro deste ano, Mato Grosso do Sul registrou 311 ataques de escorpiões, conforme dados da Secretaria de Saúde. No ranking anual, Campo Grande lidera com 911 registros, seguida por Três Lagoas, com 554, e em terceiro, com 189 notificações. O aumento desses incidentes destaca a urgência de medidas preventivas e maior conscientização.

Raiva volta a acender alerta

Morcego
O morcego é o principal agente transmissor de raiva no perímetro urbano (Reprodução)

Há mais de uma década, Campo Grande não registra novos casos positivos de raiva em cães e gatos. No entanto, em 2023, a Capital confirmou oito casos da doença em morcegos, que são os principais transmissores da doença. Apesar do alerta, a procura pela vacinação antirrábica em cães e gatos em Mato Grosso do Sul permanece baixa, com apenas 10% de cobertura vacinal registrada.

Os casos de morcegos com raiva têm aumentado anualmente em Campo Grande. Em 2021, foram registrados quatro casos; em 2022, foram seis; e até dezembro deste ano, já foram identificados oito morcegos com raiva, dos 587 recolhidos.

Segundo o CCZ, o último caso de Raiva Humana registrado em Campo Grande foi em 1968. Quanto a cães e gatos, o último registro foi em 1988, e após 23 anos, houve um caso isolado de Raiva Canina em 2011, quando um cão contraiu a doença por contato com um morcego contaminado.

Mato Grosso do Sul registrou o último caso de Raiva Humana em 2015, em Corumbá. De 2019 a 2021, foram diagnosticados 192 animais silvestres positivos para a raiva em todo Estado. Mesmo sem novos casos em cães, gatos e humanos, a vacina antirrábica segue obrigatória em todo o território nacional.

Mato Grosso do Sul notificou 20 mil agravos em 2023

Posto de saúde (Marcos Ermínio/Midiamax

Tuberculose, hanseníase, sífilis e diversas outras enfermidades levaram os sul-mato-grossenses a buscar atendimento médico neste ano. No entanto, os casos de violência persistem como a principal causa de notificações, totalizando 10.021 atendimentos registrados.

De acordo com os dados do painel Mais Saúde da SES (Secretaria de Estado de Saúde), a segunda maior demanda por atendimentos decorreu de acidentes com escorpião, contabilizando aproximadamente 5.496 casos.

Em seguida, destacam-se doenças como tuberculose (2.040), sífilis em gestantes (1.381), sífilis congênita (360), hepatite (351), hanseníase (305), meningite (149) e doenças exantemáticas (59).

Mais de 40% dos bebês até um ano com vacinas atrasadas

Vacinação infantil é desafio no Estado (Prefeitura de Corumbá)

Pela primeira vez em quatro anos, o incentivo a vacinação em massa voltou ao centro das discussões políticas. No entanto, Mato Grosso do Sul ainda colhe os reflexos do ‘boom' dos movimentos anti-vacina que espalharam desinformação e desestimularam a imunização no país.

Dados do sistema Mais Saúde da SES (Secretaria de Estado de Saúde) confirmam que a maioria das vacinas tiveram uma cobertura abaixo do estimado, com percentuais entre 58% e 63% do público imunizado.

Fundamental para proteger os bebês contra uma série de enfermidades graves, a vacinação infantil foi uma das trincheiras das autoridades de saúde. Isso porque a baixa cobertura, sobretudo nos últimos anos, fez com que essa população voltasse a ficar vulnerável até mesmo a doenças erradicadas, como a poliomielite.

(Foto: Tomaz Silva/Arquivo Agência)

O maior percentual de bebês imunizados é referente à vacina BCG, com 65% do público-alvo atingido, o que corresponde a 8.343 vacinados. Já o número de crianças com a dose em atraso é de 4.397. A vacina BCG é de dose única e protege contra a tuberculose, doença contagiosa provocada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis. A doença não afeta apenas os pulmões, mas também ossos, rins e meninges (membranas que envolvem o cérebro).

A vacina meningococo C protege contra a doença meningocócica, um tipo de meningite causada pelo sorogrupo C. Em Campo Grande, o número de crianças imunizadas é de 7.791, ou seja, 61%. Enquanto isso, 4.949 bebês seguem com a dose em atraso.

Combinação de cinco vacinas individuais em uma, a pentavalente protege contra múltiplas doenças. Na Capital, a cobertura vacinal é de 58%, o que corresponde a 7.419 crianças imunizadas – 5.321 seguem com a dose atrasada.

Outra vacina que segue com baixa cobertura e gera preocupação é a da poliomielite, que protege contra a paralisia infantil. O percentual de bebês vacinados em Campo Grande é de 58%, o que corresponde a 7.443 crianças. Já o número de crianças com a dose atrasada é de 5.297.

Existem dois tipos de vacina contra Hepatite B destinada a crianças com menos de um ano. A primeira deve ser aplicada nos primeiros 30 dias de vida dos bebês, na Capital, 63% do público-alvo recebeu o imunizante, 8.059 crianças. O total de bebês que não receberam a vacina é de 4.681.

A vacina tríplice viral protege o paciente contra três infecções causadas por vírus: sarampo, caxumba e rubéola, disponível para crianças a partir de 12 meses de vida. Em Campo Grande, a cobertura vacinal em crianças até um ano é de 63%, cerca de 7.978 vacinados. Ou seja: 4.762 crianças estão com a dose em atraso.

Primeiro ano de estabilidade da Covid-19

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MS registra novas mortes por SRAG. (Foto: Henrique Arakaki/Midiamax)

Em meio ao caos, Mato Grosso do Sul vivenciou um alento com o primeiro ano de estabilidade desde a pandemia de . Em 2023, o número total de mortes pela doença foi de 205, o que representa uma queda de 83% se comparado ao mesmo período de 2022, quando foram contabilizadas 1.201 mortes.

De janeiro a dezembro, o Estado contabiliza 28.343 casos da doença, a queda é expressiva, visto que há cerca de um ano o número de infectados pela doença era 212.804 pessoas, ou seja, 184 mil a mais que em 2023.

“Durante dois anos só se falava de Covid-19, com a estabilidade foi possível que o município voltasse atenção para outras demandas como os mutirões de saúde. Com isso estabelecemos a meta de zerar as filas de cirurgias até abril de 2024”, explica Sandro Benites.

Covid estabilizou, mas vacinação segue imprescindível

Mesmo com a estabilidade, a Covid-19 seguiu vitimando os sul-mato-grossense. Somente em dezembro, dois bebês, de 2 e 11 meses, vieram a óbito em decorrência da doença.

A vacinação é a estratégia mais eficaz na prevenção de doenças infecciosas e desempenha papel fundamental na redução da morbidade e mortalidade em todo o país, além de ampliar a proteção coletiva por meio da imunização em massa. No contexto da pandemia de Covid, a vacinação se torna ainda mais crucial, sendo a principal ferramenta para controlar a disseminação do vírus e mitigar os impactos da doença na população.

Dados do boletim epidemiológico da SES-MS mostram que todas as faixas etárias estão com doses em atraso em Mato Grosso do Sul. A situação mais crítica é de pessoas com 35 anos ou mais que não completaram o esquema vacinal. Mais do que a metade, 52,6%, não recebeu a segunda dose de reforço. A vacina da Covid-19 segue disponível na rede pública de saúde. São mais de 50 unidades de saúde com imunização.

O equilíbrio entre estabilidade e caos reflete a complexidade enfrentada no sistema de saúde. O ano, marcado pela estabilidade da covid, também presenciou o recorde nos casos de dengue. Nesse contexto desafiador, a resiliência demonstrada pelos sul-mato-grossenses foi determinante para enfrentar as inúmeras lacunas da saúde em Mato Grosso do Sul.

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Máscara foram para o fundo da gaveta em 2023 (Nathália Alcântara, Midiamax)