Nas mãos de Nelson Corrêa Tosta, de 62 anos, a carteira de habilitação conquistada no início da década de 90 representa mais do que a permissão para dirigir. Vai além. É um atestado da capacidade que ele jamais duvidou ter, mesmo com tantos olhares de dúvida ao seu redor.

“Para mim significa autonomia, liberdade e a prova da minha condição de ser livre para ir e vir sem depender de alguém todas as vezes que eu quiser ir ou voltar de um lugar. É um motivo de orgulho porque é uma superação, é saber que a gente pode, porque, por mais que tenhamos limitações, isso não é motivo para estacionar”, comenta orgulhoso enquanto segura a CNH (Carteira Nacional de Habilitação).

Nelson é uma pessoa com deficiência e, nesta reportagem – um epílogo da série encerrada na última sexta-feira (14), – dá voz a mais de 7 mil pessoas que, como ele, são habilitadas a conduzirem veículos em Mato Grosso do Sul, somente nos últimos dois anos.

Vivendo com a deficiência

Foi ainda no quinto mês de vida que Nelson teve o diagnóstico que mudou para sempre a maneira de viver e a complexidade de coisas simples do dia a dia. “Eu tenho poliomielite, a paralisia infantil”, explica. 

Por conta da febre forte, típica da doença, o desenvolvimento dos músculos das pernas parou e o dos braços foi comprometido. Devido a isso, o ex-servidor público usa cadeira de rodas. “Essa limitação me acompanha desde que me entendo como pessoa”, acrescenta. 

Apesar das restrições, render-se à doença nunca foi opção. Pouco depois dos 20 anos, Nelson adaptou uma mobilete, que virou o triciclo que ele usava para ir e vir pela cidade, experimentando os primeiros ensaios de liberdade.

“Eu me locomovia de maneira irregular porque naquela época era muito difícil fazer uma habilitação para triciclo”, relata.

Mas, com o passar dos anos, a necessidade de deslocar-se com mais conforto e segurança fez seus sonhos atingirem outro patamar. “Vi um Fusca em um leilão do e gostei muito. Daí, vendi meu triciclo por um valor suficiente para participar do leilão e dar um lance”, pontua. “Comprei o veículo”. 

Primeiro no Estado 

Com o primeiro carro em mãos, o jovem sonhador se viu diante de novo desafio. “O ano era 1992, naquela época não tinha nenhuma autoescola e nem o Detran tinha veículo adaptado para a pessoa com deficiência se habilitar. A gente tinha que se virar. No meu caso, eu mesmo preparei o meu carro e na autoescola, treinei e aprendi a dirigir no meu próprio automóvel”, lembra. 

Alavanca ao lado do volante é acelerador e freio do carro de Nelson. (Foto: Nathalia Alcântara / Midiamax)

Depois de muito empenho e dedicação, em março de 1992 veio o resultado de um processo que excedia o simples ato de dirigir. “Foi a prova de que a limitação não nos impede de crescer”, acrescenta. 

Três décadas depois, Nelson comemora avanços que, embora poucos, são necessários para a luta de milhares de sul-mato-grossenses. “Fico feliz em saber que as coisas estão evoluindo, mas ainda precisam evoluir muito mais. Avaliando uma cidade como , com tantas autoescolas, a quantidade de empresas preparadas para nos atender nos deixa reféns”, conclui. 

Apenas 4 entre 264 centros de formação habilitam PCDs

De acordo com o (Departamento Estadual de Trânsito), das 264 autoescolas espalhadas por 76 cidades de Mato Grosso do Sul, apenas quatro estão habilitadas para atender pessoas com deficiência. São elas: San Marino e a Capital, em Campo Grande; Estrela, em Três Lagoas; e Grand Prix, em Dourados.

Conforme o Departamento, empresa de prepara-se para também atender o público.

De acordo com Henrique José Fernandes, presidente do SindCFCMS (Sindicato dos Centros de Formação de Condutores do MS), o alto custo das adaptações é a principal justificativa para o desinteresse das empresas do setor.

“Quando uma pessoa adapta para ela, não é tão caro, porque vai fazer uma adaptação específica para aquele tipo de deficiência. No caso da autoescola, porém, é preciso atender todo tipo de especificidade. É muito mais complexo e, portanto, mais caro”, detalha. 

Fernandes afirma que a média de gasto varia em torno de R$ 12 mil e R$ 15 mil. “A demanda que estava tendo até então não era grande. Agora, está aumentando e existe uma tendência de mais empresas se qualificarem. Mas, no momento, o que dificulta é o custo, que infelizmente acaba tendo que ser repassado, já que a procura que não é grande”, finaliza. 

Aumento na procura 

Dados do Detran confirmam a tendência de aumento, apontada por Fernandes. Em 2021, o Detran-MS emitiu 1.725 carteiras de habilitação para pessoas com deficiência em Campo Grande e outras 1.325 no interior, um total de 3.050.

Já em 2022, o número cresceu para 2.226 em Campo Grande e 1.888 no interior, elevando as emissões para 4.111. Nos últimos dois anos, 7.164 moradores com algum tipo de deficiência foram habilitados para dirigir no Estado.

Nesse contexto, para as pessoas com deficiência, a inclusão no processo de habilitação de condutores revela que basta haver inclusão para que PCDs possam gozar de todos os espaços sociais, inclusive as estradas.

“É uma liberdade e uma alegria muito grande para aqueles, meus pares, saber que basta querer e ir atrás. Não é a limitação que nos impede de crescer. A gente pode crescer, sim, basta nos incluírem”, finaliza Nelson.