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Cotidiano

#CG123: Do porcelanato à terra batida, bairros vizinhos comportam desigualdades em moradias

Poucos quilômetros separam residências precárias, no Jardim Noroeste, do fino acabamento em condomínios de luxo
Thalya Godoy -
Bairros próximos ilustram desigualdades em moradias. (Foto: Midiamax/ Redes Sociais)

Todos chegam pela necessidade. Por não conseguir pagar aluguel, pelo sonho de um dia ser sorteado para uma casa ou lote, para ter um canto onde possa descansar ao lado da família no final de um dia de trabalho. Nestes 123 anos de , a cidade cresceu, ganhou prédios, casas de alvenaria e, esquecidos nas periferias, os barracos erguidos com madeiras e lonas continuam marcando território.

No , os aglomerados subnormais, termo técnico para onde é popularmente conhecido como favela, espalham-se pelo bairro, fazendo um contraste urbano com os condomínios de luxo localizados do outro lado da BR-262.

De um lado, o cheiro do chão batido de terra predomina o ambiente enquanto paredes pontilhadas de frestas permitem que rajadas de vento invadam o ambiente. A 5 minutos dali, mansões com pisos de porcelanato e fino acabamento chegam a custar mais de R$ 6 milhões.

De acordo com o doutor em arquitetura e urbanismo e professor da UFMS (Universidade Federal de ), Julio Botega, favelas e condomínios de luxo ocupam espaços nas periferias por motivos diferentes. No caso do Jardim Noroeste, é uma região com loteamento voltado para baixa renda, “passível de ocupação”, enquanto os condomínios fechados têm um modelo inspirado nos subúrbios dos Estados Unidos, em que buscam fugir do caos da cidade. 

“São moradores que não querem estar em apartamentos, nem em contato direto com a rua da cidade tradicional. Os condomínios são um simulacro da vida urbana em contato com a natureza e distante dos problemas urbanos”, explica o professor.

A família de Rosildo da Silva, de 42 anos, mora pela segunda vez na comunidade Vitória, no Jardim Noroeste. Quando chegaram a Campo Grande vindos de , em 2015, ele, a esposa e os filhos tinham apenas as malas nas mãos. Não havia onde morar. Dormiram dois dias na rua. “Passava na casa de um, na casa de outro, aquela humilhação. Não conhecia nada aqui. Chegamos a dormir na rua até que conseguimos uma casa. Aí roubaram o nosso botijão, televisão e tacaram fogo na nossa casa. Perdemos tudo”, ele lamenta.

Retornaram para a cidade natal em Corumbá, mas devido à falta de emprego voltaram para Campo Grande. Desta vez, mora ele, a esposa, seis filhos e dois enteados, somando dez pessoas dividindo um barraco de quatro cômodos, erguido em três dias com pedaços de madeira e telhas de eternit. No banheiro, não há chuveiro e nem encanamento. 

Rosildo está há anos cadastrado na Amhasf (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários) e aguarda uma oportunidade para se mudar com a família. Quando voltou de Corumbá pela segunda vez, até chegaram a pagar por um tempo o aluguel de R$ 500 por uma casa próxima à comunidade Vitória, mas somados água e luz, restava R$ 200 do salário de R$ 1.100,00 do trabalhador em serviços gerais para custear as outras despesas.

Barracos são construídos com madeiras e lonas. (Foto: Henrique Arakaki/ Midiamax)

A vida de Ramona Pereira, de 34 anos, tem uma saga semelhante de precisar recomeçar do zero quando já se tinha pouco. Residente há dez anos da comunidade no Jardim Noroeste, herdou da avó o barraquinho em que morou até dois anos atrás, quando o ex-marido colocou fogo na residência. 

Ela tinha recém dado à luz a filha mais nova e precisou sair às pressas do local. Perdeu tudo naquele dia. Com a ajuda de amigos e doações, conseguiu construir uma casa de tijolos com quatro cômodos no mesmo local. Assim como Rosildo, Ramona aguarda há cinco anos o sorteio de uma casa ou apartamento pela Amhasf para mudar de vida. 

“Hoje eu tenho quatro filhos, estou gestante e não tenho para onde ir. Estou esperando ver o que vai dar, não tenho condições de pagar aluguel também. Só recebo o Bolsa-Família [Atual Auxílio Brasil] e o Mais Social [gerenciado pelo governo de MS], não tenho renda”, conta a mulher.

Se de um lado a batalha pela sobrevivência é o que domina a vida de quem vive em barracos, de outro estão aqueles que usufruem de privilégios e vivem em residências luxuosas, em condomínios de luxo de Campo Grande. Para comentar sobre a desigualdade na ótica dessa outra parcela da sociedade, a reportagem tentou por semanas relatos de quem vive nesses condomínios, mas ninguém quis falar sobre o assunto.

Favelas e aglomerados ‘subnormais’

Segundo levantamento de 2020 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), Campo Grande possui 4.516 habitações distribuídas em 38 favelas. As maiores são a (901 habitações), Samambaia (434) e Mandela (300). Mato Grosso do Sul tem 54 aglomerados subnormais e a menor proporção do país de moradias em ocupações irregulares, com 0,74%.

“À medida que Campo Grande cresceu, permaneceu o ordenamento nas áreas contíguas ao arruamento proposto, mas as periferias começaram a se formar de forma autônoma, sem o mesmo ordenamento encontrado na área central. Isso resultou em áreas com habitações precárias, ruas estreitas, sem equipamentos públicos, transporte e etc.”, explica o professor de arquitetura da UFMS, Julio Botega.

A líder da comunidade Vitória, Helen Oliveira, de 40 anos, mora no local desde 2014, depois que não teve mais como pagar o aluguel de R$ 300 no bairro Morada Verde. A renda em casa caiu após o marido, que trabalha como jardineiro, ter sido atropelado por uma camionete que invadiu o supermercado em que estava. Hoje vive com pinos na perna e aguarda há cinco anos por uma cirurgia. No barraco erguido com doações e com o que encontrou no lixo mora a mulher, o esposo e duas filhas. 

Ramona precisou recomeçar do zero depois que seu barraco foi incendiado. (Foto: Henrique Arakaki/ Midiamax)

São paredes de madeira, lonas e um teto de telha eternit que protegem fracamente a família dos tempos de calor, frio e chuva. Em dias de tempestade, o barraco alaga. A fossa que fica do lado de fora enche o encanamento, que sobe até o banheiro e torna fétido o ambiente. “Fomos colocando as peças e está desta forma”, mostra Helen que ergueu a residência em um mês.

A mulher está há 15 anos na fila da Amhasf e garante que, mesmo com todas as dificuldades do local, gostaria de continuar no terreno se pudesse escolher onde morar. “Eu tenho uma comunidade junto comigo, tenho crianças no meio, eu vou desapontar? Elas vão ficar com quem em um bairro esquecido como esse, em que não tem nada?”, questiona a mulher miúda.

Na parte da frente do barraco, Helen passou cimento em um espaço para que 30 crianças da comunidade pudessem praticar capoeira. “Elas fazem capoeira, tem lanche, sopão com a ajuda de doações, tem igrejas também que vêm e eu cedo o espaço”, afirma.

Quem quiser ajudar com doações para a comunidade, o número de WhatsApp da Helen é (67) 9 9172-1295.

Formação dos bairros

No início do século passado foram propostos instrumentos importantes de regras sobre a localização das moradias e como deveriam ser construídas em Campo Grande, como o Código de Posturas, em 1905, e o de arruamento, de 1909. Com o desenvolvimento da Capital, os bairros afastados do centro começaram a nascer sem o mesmo planejamento da região central, como foi o caso do bairro Moreninhas na década de 1970.

“As habitações sociais que estavam próximas ao centro e atendiam aos trabalhadores foram substituídas por habitações financiadas pelo Governo, que as implantava em terrenos de valor mais baixo, localizados na periferia, um modelo que se mantém com poucas tentativas de reversão nos últimos anos, como a proposta de transformar o hotel Campo Grande em local de habitação social”, relembra o docente Julio Botega.

Quanto mais pobre, maior sonho da casa própria

Segundo o Censo Quinto Andar de Moradia, em parceria com o Datafolha, o peso de uma locação de um imóvel na renda mensal de quem vive na região Centro-Oeste é, em média, de 30%. Ou seja, quem recebe R$ 1,5 mil de salário gasta, geralmente, R$ 450 em aluguel. 

A pesquisa aponta que quanto mais rico, menor é o sonho de conquistar a casa própria. Ter uma residência quitada é desejo de 70% entre os entrevistados da classe A, enquanto entre as classes D e E a taxa sobe para 92%. 

O levantamento indica também que 80% dos entrevistados dizem que “sair do aluguel” e “realizar um sonho” são os principais motivos para comprar um imóvel. Joice Mertevic, de 26 anos, conquistou a casa própria há quatro anos por meio do programa do governo federal Minha Casa Minha Vida. Mora com o marido e o filho em uma residência com quatro cômodos no bairro Rita Vieira.

O casal, que pagava aluguel de R$ 800, deu entrada no imóvel com o FGTS (Fundo de Garantia do Trabalhador). A assistente em RH relembra que o processo foi demorado e burocrático, com muitas documentações e idas ao banco. “A casa própria era um grande sonho e, através do financiamento, foi possível realizar. Ao contrário de algumas opiniões, para meu esposo e eu o financiamento foi uma boa opção, já que utilizamos o FGTS como parte do pagamento, o que é nosso por direito”, ela afirma.

40 mil famílias na fila

Campo Grande possui atualmente 40 mil famílias na fila de habitação da Amhasf (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários). De acordo com o diretor de Atendimento, Administração e Finanças do órgão, Cláudio Marques, desde 2017 foram entregues duas mil unidades habitacionais e cinco mil lotes regularizados e a previsão até 2024 é que mais 2,5 mil casas sejam sorteadas. 

“Tem muita gente trabalhadora que paga o aluguel com dificuldades, com situações até que não consegue se alimentar direito para honrar o pagamento. Essas famílias também são a nossa prioridade. A gente precisa ressaltar que o processo de seleção precisa ser feito por sorteio, oportunizando a todos. Isso é fazer justiça social”, explicou o diretor sobre o processo de sorteios.

Entre os planos da Prefeitura no ramo da habitação está a regularização das maiores comunidades da Capital, que são a Homex, Samambaia e Mandela. Os três espaços estão no processo regulatório para que futuramente as famílias que estavam no local desde 2017 tenham o registro do lote no nome. O objetivo é que 90% das ocupações irregulares sejam normalizadas até 2024. “Nós queremos segurança jurídica e condições para que as famílias possam viver melhor”, afirma Cláudio Marques.

No ramo de aluguel, a Prefeitura disponibiliza o programa de Locação Social que ajuda com o pagamento de R$ 500 em locações que não ultrapassem R$ 1 mil. De acordo com o diretor da agência de habitação, o órgão procurou fazer parcerias com proprietários de imóveis que estavam sem utilização.

Até o momento, apenas 100 de mais de 700 famílias inscritas no programa foram contempladas com o benefício, mas a intenção é que o número seja ampliado nos próximos meses.

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