O debate sobre o trabalho análogo à escravidão ganhou as trends das redes sociais há semanas, considerando o podcast da Folha de São Paulo ‘A Mulher da Casa Abandonada’. A questão também culmina na escravidão contemporânea que assola Mato Grosso do Sul, cujo cenário é diferente, pois os empregados são atraídos para oportunidades enganosas em regiões do interior do Estado. O número de flagrantes este ano já supera os resgates das fiscalizações dos últimos seis anos.
O balanço do MPT-MS (Ministério Público do Trabalho em MS), até 21 de julho, aponta que das oito ações fiscais, 72 pessoas foram resgatadas de trabalho análogo à escravidão em Porto Murtinho, Bela Vista, Ponta Porã, Corumbá e Naviraí. Em fazendas, chácaras ou sítios, os funcionários desempenhavam funções de trabalho braçal, como aplicação de herbicidas; reformas e construção de cercas; carregamento de eucalipto; roçada de pasto; plantio de cana-de-açúcar; e criação de bovinos.
Um dos únicos casos que ocorreu na área urbana aconteceu na região central de Campo Grande, em 2021, quando trabalhadores denunciaram as atividades em uma construção civil. O ano fechou com 63 flagrantes em 11 operações, nas cidades de Sidrolândia, Porto Murtinho, Anastácio, Antônio João, Ponta Porã e Corumbá.
Em 2020, foram 43 flagrantes em quatro fiscalizações; 43 em 2019 durante seis operações; 19 em 2019; e 82 em 2016.

Mais de 20 anos de trabalho análogo à escravidão
Um dos últimos casos que aconteceu em MS foi flagrado no Pantanal, incluindo a exploração de um idoso. Nove trabalhadores foram resgatados em três propriedades rurais de Corumbá e Porto Murtinho, durante uma operação entre o MPT, DPU (Defensoria Pública da União), Ministério do Trabalho e Previdência, por meio da Auditoria-fiscal do Trabalho, e realizada entre os dias 11 e 22 de julho.
Na Fazenda Matão, localizada em Porto Murtinho, o idoso era o único mantido pelo empregador em um alojamento extremamente precário, dividindo espaço com animais e com agrotóxicos. Em depoimento, ele relatou estar nestas condições há mais de 20 anos, e antes da Fazenda Matão, trabalhou na Fazenda São Francisco, do mesmo proprietário, sem registros e direitos trabalhistas, como FGTS e férias.
Todos ali bebiam água com resíduos sólidos, e precisavam pagar pela própria alimentação. Caso consumissem carne fornecida pela fazenda – cuja principal atividade é a criação de bovinos – um valor era descontado da remuneração mensal, de R$ 1,5 mil. O grupo tinha acesso à cidade mais próxima, Bonito, apenas uma vez ao mês, e era conduzido na carroceria de um caminhão da fazenda em uma estrada de chão, por mais de 130 quilômetros, com visibilidade severamente prejudicada pela poeira.
Após o flagrante, as autoridades convocaram o empregador para audiência administrativa para um acordo entre ambas partes. Os advogados do fazendeiro recusaram o acordo proposto pelas instituições, prevendo o pagamento das verbas rescisórias ao trabalhador, calculadas pela Auditoria-fiscal do Trabalho – valores relacionados à FGTS, férias e 13º, que não foram pagos pelo empregador durante todo o vínculo – ou seja, que ele recebesse pouco mais de R$ 84 mil pelos serviços prestados na propriedade ao longo de duas décadas, além de uma indenização, no valor de R$ 75 mil, equivalente a 50 vezes o salário do trabalhador, a título de danos morais individuais, e a fim de reparar a grave lesão à sua dignidade.
Na entrada da fazenda, há uma placa indicando que a propriedade é destinatária de recursos públicos, da ordem de mais de R$ 915 mil, por meio do Fundo Constitucional do Centro-Oeste, e cuja finalidade é a aquisição de bovinos. No entendimento do MPT, tal circunstância agrava ainda mais a situação, uma vez que o acesso a recursos públicos é condicionado ao cumprimento da função social da propriedade.
“Todos nós, membros da força-tarefa, lamentamos o descaso deste patrão, que na oportunidade de firmar um acordo, encontrava-se no Canadá. Diante da possibilidade de reparação da situação de abandono e indigência a qual conscientemente submeteu o trabalhador por todo este tempo, crendo na sua impunidade, manteve-se inerte”, avalia Paulo Douglas de Moraes.
Após a recusa via extrajudicial, além do trabalhador ser imediatamente afastado da propriedade, o MPT e a DPU irão pleitear, em juízo, a integral reparação às lesões materiais e morais suportadas pelo trabalhador por mais de 20 anos.
Acordo com os empregadores garante reparação às vítimas
Segundo o MPT-MS, nas outras duas propriedades rurais, em Corumbá, os proprietários das fazendas se comprometeram, ao assinarem Termo de Ajuste de Conduta, a pagar cerca de R$ 22,5 mil para cada um dos oito trabalhadores flagrados em condições degradantes, totalizando, entre verbas rescisórias e danos morais individuais, mais de R$ 180 mil, além de mais R$ 80 mil a título de dano moral coletivo a ser revertido na aquisição de bens para o aparelhamento da PMA (Polícia Militar Ambiental).
“Os Termos de Ajuste de Conduta, para além da reparação financeira, visam corrigir as irregularidades identificadas pela Auditoria-fiscal do Trabalho no decorrer da operação de resgate e, sobretudo, à proteção de futuros trabalhadores contratados para a execução dos serviços rurais”, explica o ministério.
Trabalho escravo contemporâneo Não é apenas a privação de liberdade que torna o trabalho análogo ao de escravo, mas sim, a ausência de dignidade. Estes nove trabalhadores foram flagrados sob parte dos quatro elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo, conforme o artigo 149 do Código Penal: condições degradantes de trabalho, incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais e que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador; jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida); trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele). Os elementos podem vir juntos ou isoladamente.