Após limpeza na antiga rodoviária, usuários migram para outros locais em Campo Grande

Três pontos de Campo Grande se tornaram refúgio para os expulsos da ‘cracolândia’

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Limpeza Antiga rodoviária
Usuário se abrigando aos arredores da antiga rodoviária após 'limpeza'. (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

Há cerca de duas semanas era decretado o fim da ‘Cracolândia’ em Campo Grande. Em um mutirão, guardas civis, policiais militares e comerciantes limparam o prédio da antiga rodoviária e ‘expulsaram’ usuários de entorpecentes e pessoas em condições de rua que conviviam no local. As primeiras impressões foram de resolução de um antigo problema, que poucos dias depois, se mostrou ineficiente, apressado e “político”, avalia um especialista.

Com segurança privada, o interior do prédio onde funcionava a rodoviária da Capital segue limpo e sem a presença de ‘intrusos’. O cenário animou os comerciantes e conseguiu atrair investidores para a região. Entretanto, o aumento de usuários de drogas e pessoas em situação de rua em Campo Grande não diminuiu e aqueles que tinham o prédio como um local de refúgio ou comércio de entorpecentes se deslocaram para novos endereços espalhados pela capital.

De acordo com o diretor da faculdade de Direito na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e delegado veterano da Polícia Civil, Fernando Lopes Nogueira, a ação realizada na antiga rodoviária não é suficiente para excluir o problema e transforma a façanha em mero ato político. “Só para mostrar que estão fazendo”.

“É preciso alinhar assistência, saúde e trabalho policial. O Estado precisa realizar um estudo social e relacionar isso com o sistema de saúde, para entender o porquê daquela pessoa estar ali”, explica. Para Nogueira, o trabalho é longo, pois muitos recusam a ajuda e o desafio está em acompanhar essas pessoas, entendê-las e então convencê-las a aceitar ajuda.

“O erro do estado é fazer uma ação rápida, para mostrar que está fazendo. A curto prazo a consequência será o retorno dessas para o mesmo local. É provável que se crie uma nova ‘rodoviária velha’, com possibilidade de ser próxima da atual, porque eles [usuários e moradores] possuem familiaridade com a região”, esclarece Fernando Lopes Nogueira.

A reportagem buscou entender essa ‘rota migratória’ apontada por Nogueira. Ainda no mesmo local, o retorno de antigos frequentadores já é visível. Não como antes, no interior do prédio, mas nos arredores, regressando a sensação de insegurança entre comerciantes e clientes, mas suficiente para endossar o discurso de ‘rodoviária limpa’.

Lojas esquecidas por seus proprietários na Rua Barão do Rio branco foram arrombadas e se tornam ‘lares’ daqueles que passam os dias em busca de abrigo, comida e entorpecentes. Outra porção segue na Rua Vasconcelos Fernandes. Para comerciantes da região, apenas a revitalização — avaliada em R$ 17 milhões com previsão para iniciar ainda neste ano — resolveria o problema de forma permanente.

O diretor da faculdade de Direito na UFMS concorda que a revitalização do prédio poderia acabar com a acomodação de usuários e pessoas em situação de rua no local, mas transferiria o problema para outro local. O cenário previsto pelo especialista já é perceptível e relatado por comerciantes e servidores que atuam na segurança.

Há poucas quadras dali uma abordagem policial era acompanhada pela reportagem. Policiais militares da Força Tática, que atuam no 1º BPM, abordavam alguns suspeitos de integrar o comércio de drogas na Orla Ferroviária. Para os agentes, o aumento de usuários é nítido, coincidentemente ou não, logo após o ‘limpa’ na rodoviária antiga.

“Eles [seguranças particulares] não deixam [os usuários] ficarem lá e vão esparramando. Com isso, eles fazem essa migração, mas trabalhamos em cima dessa situação”, disse um militar, que não será identificado. “As abordagens aumentaram bastante aqui”, finalizou.

Policial militar realizando abordagem a suspeitos na Orla Ferroviária. (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

Além da orla ferroviária, frequentadores da antiga rodoviária também migraram para a esquina entre as Ruas Tv Lydia Baís e 15 de Novembro, também na área central de Campo Grande e já conhecida como ponto de refúgio para usuários e moradores de rua. Uma comerciante da região, que não será identificada, comenta ter percebido um aumento de pessoas que se refugiavam no local.

“É gente nova, estão começando a chegar”, comentou. “Eles não mechem com a gente, mas acaba espantando o cliente. Fica o mau cheiro, incomoda, fazem as necessidades nas árvores”, finalizou a comerciante. Em meio ao grupo de usuários, Nicole Alice Ferreira, de 25 anos, afirma que a migração de usuários é real, mas a maioria se deslocou para um local específico: Rua Bom Sucesso, na Vila Marcos Roberto, na Região do Nhanhá.

O endereço citado por Nicole Alice Ferreira inicia na Avenida Presidente Ernesto Geisel, corta a Avenida das Bandeiras e termina na Rua dos Jasmins, onde passa a se chamar Rua do Boticário. O local também é conhecido por moradores e comerciantes como ponto de tráfico e refúgio para usuários.

Um comerciante da região, que preferiu não se identificar, afirma ser notório o aumento de usuários no local após a limpeza realizada na antiga rodoviária. “Depois que colocaram segurança lá, eles vieram todos para cá. Se haviam 30, agora são 70 usuários”. Para ele, o aumento não causa insegurança, pois são raros os casos de roubos ou furtos, mas a situação tem prejudicado o comércio.

Fábio Henrique da Silva, de 28 anos, vive em situação de rua há quatro anos e está ciente da migração realizada por remanescentes da antiga rodoviária. “Tem bastante gente de lá vindo, além do estádio Guanandizão e a ponte”, comentou. A ponte citada por Fábio está localizada entre as Avenidas Manoel da Costa Lima e Presidente Ernesto Geisel, também conhecida por reunir pequenos grupos de pessoas em situação de rua.

Mapa indica pontos onde usuários e pessoas em situação de rua se estabeleceram após limpeza na antiga rodoviária. (Foto: Júlia Rodrigues/Midiamax)

Questionada sobre a situação, a SAS (Secretaria de Assistência Social) informou não possuir programa específico relacionado com a migração de pessoas em situação de rua expulsas da antiga rodoviária, mas atende aos mesmos por meio do Seas (Serviço Especializado em Abordagem Social), abordando pessoas que utilizam espaços públicos, praças, entroncamentos de estradas, terminais de ônibus, dentre outros — como espaço de moradia e sobrevivência.

Em nota, a secretaria explica que atua de “forma contínua e programada, por meio de busca ativa ou atendendo denúncias da população, que entram em contato por meio dos dois celulares disponibilizados pelo serviço”.

O programa é realizado, principalmente, na região central de Campo Grande e busca estabelecer vínculos com os usuários e assegurar trabalho social de abordagem e busca ativa que identifique, nos territórios, a incidência de trabalho infantil, exploração sexual de crianças e adolescentes, situação de rua, dentre outras, construindo com o processo de saída das ruas e possibilitando condições de acesso à rede de serviços e a benefícios assistenciais.

A Prefeitura de Campo Grande também foi questionada sobre ação específica em virtude do fenômeno migratório relatado na matéria, mas não informou projetos ou trabalhos programados.

‘Fim da Cracolândia’

No último dia 5 de março, um grupo realizou uma ação de limpeza no prédio da antiga rodoviária. A ação contou com pessoas que atuam na administração do prédio, moradores do entorno, policiais militares, guardas municipais e até servidores da prefeitura, que levaram um caminhão basculante da Sisep (Secretaria Municipal de Infraestrutura e Serviços Públicos) e recolheram sujeira e entulhos.

Além das calçadas ao redor do prédio, o mutirão também abordou usuários de drogas que ocupavam imóveis desocupados da região. Conforme um dos envolvidos, as reuniões para discutir o assunto começaram no início do ano. Em seguida, guardas foram nomeados para monitorar o local, além de uma eleição que elegeu um síndico e subsíndico. Os policiais plantonistas intensificaram as rondas na região.

Rodoviária após o mutirão de limpeza:

Novos investidores

Depois da Prefeitura de Campo Grande abrir licitação para reforma do prédio da Antiga Rodoviária em 2022 e os comerciantes se unirem para decretar o fim da “cracolândia”, muitas novidades estão a caminho para atrair investidores e fazer o local renascer das cinzas do esquecimento. Quem passar pelo local pode inclusive se surpreender com síndico e outras pessoas se comunicando via rádio e fazendo a vistoria rotineiramente.

Uma das pessoas envolvidas no projeto é a presidente da associação dos lojistas do Centro Comercial Condomínio Terminal do Oeste, Heloisa Cury, de 65 anos. Ela relata que, atualmente, investidores interessados estão visitando a antiga rodoviária diariamente e o prédio já começou a sentir os impactos positivos das intervenções.

Corredores da antiga rodoviária após ‘limpeza’. (Foto Leonardo de França/Midiamax)

O prédio com 215 salas e 250 vagas de estacionamento subterrâneo guarda consigo um passado histórico e crucial na memória de vários sul-mato-grossenses, e que os comerciantes esperam reviver.

A licitação para revitalização

A Prefeitura de Campo Grande abriu licitação no dia 31 de março de 2022 para reformar a antiga rodoviária, localizada no Bairro Amambaí. A requalificação, que será feita na área pública, já tinha sido anunciada em 2021.

Segundo divulgado anteriormente, a revitalização vai manter algumas características do prédio, como a laje. Haverá instalação de jardim vertical, espaços de descanso e estacionamento.

Projeto de revitalização da antiga rodoviária em Campo Grande. (Foto: Divulgação)

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