Diáspora. A palavra é utilizada nas escrituras sagradas para caracterizar o contexto em que o povo judeu deixou a Terra Prometida: contra a vontade, por necessidade — o motor das grandes narrativas bíblicas. Desde então, diáspora se relaciona às migrações compulsórias e se aplica bem para descrever grupos étnicos que saem das origens. Entre as razões estão, quase sempre, as guerras.

Foi numa jornada diaspórica, portanto, que a família de Vanessa Jerba, 42, veio para o Brasil, na década de 1920. Fugindo do entreguerras no leste europeu, seus bisavós viviam na Ucrânia e encontraram lar no Brasil. Do Rio de Janeiro, foram para Paranaguá (PR), até se fixarem em Ponta Grossa, no mesmo estado onde existe, atualmente, uma sólida comunidade de descendentes de ucranianos, onde crianças crescem ouvindo histórias, passadas de pai para filho.

Talvez por isso, assistir aos noticiários sobre as invasões russas na Ucrânia tenham um sabor mais amargo que o normal para Vanessa. É uma história que se repete — desta vez, televisionada e transmitida em tempo real pela internet.

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Vanessa em celebração à cultura ucraniana na adolescência | Foto: Arquivo pessoal | Reprodução

“É uma sensação de angústia, de que o mundo não evolui, de que gira em círculos que param sempre no mesmo lugar. Foi o que aconteceu com a minha família, que fugiu da fome, da desesperança. Eles encontraram oportunidade no Brasil, conseguiram nos proporcionar uma vida confortável, estável. Mas, a guerra é um fantasma e agora as outras gerações estão vivenciando isso. É completamente desesperador”, relata.

Mais que DNA

Vanessa conversou com o Jornal Midiamax na manhã desta sexta-feira (25). Nascida em Ponta Grossa, ela é bióloga por formação e veio para a capital sul-mato-grossense a trabalho, após concluir o doutorado. Aqui, firmou família e teve uma filha, atualmente com 13 anos. E mesmo longe de sua terra natal, a cultura eslava da qual a Ucrânia faz parte está mais que em seu DNA:  Vanessa também é artesã e produz, entre outros itens, Mótankas, bonecas feitas de pano que são tradicionais no país do leste europeu.

Mas, a relação com a cultura ucraniana vai além da arte que produz. A aproximação com o passado da família ocorreu na adolescência, quando integrou um grupo de danças folclóricas. A partir daí, Vanessa decidiu investigar as origens, a ponto de herdar, de um tio-avô, todos os documentos que contam desde suas raízes familiares até o processo de migração para o Brasil. Um tesouro histórico e, também, familiar, a partir do qual a sensação de pertencimento só cresceu.

“Eu me sinto muito pertencente àquele lugar, é minha história e diz muito sobre mim, de onde vim, de onde estou. Esse pertencimento é uma questão forte nos ucranianos, há uma cultura que não se dissipa. É claro que a gente assimila outras coisas, mas, mesmo nunca tendo ido até lá, há uma relação muito forte”, conta.

A viagem para conhecer a terra natal dos bisavós ocorreria em 2020, mas o plano foi adiado para agosto deste ano devido à pandemia do coronavírus. Além de conhecer familiares com os quais tem contato, Vanessa iria conferir a exposição de peças que produzira e que estão em exibições itinerantes, tendo passado por várias cidades, inclusive Kiev, a capital do país.

“É frustrante saber que isso não vai ocorrer. Desde que comecei a produzir as mótankas, minha proximidade com a cultura popular ucraniana cresceu muito e essa viagem seria um grande momento. Mas, mesmo que os conflitos terminem, não creio que a viagem vá ocorrer. Minhas bonecas iriam para um novo museu já neste domingo, não sei se isso ainda vai acontecer”, pontua.

 
 
 
 
 
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Além disso, a dinâmica dos conflitos decorrentes da invasão russa também impressionou a artesã. “Na comunidade, a gente já entendia que haveria um conflito, mas todo mundo achava que seria nas regiões separatistas. Minha família mora na fronteira com a Polônia, que é distante dessas regiões. Mas, quando lemos sobre os ataques contra Kiev [a capital ucraniana], ficamos chocados e assustados. O que temos visto, em contato com a minha prima, é que as famílias que estão tentando fugir já relatam até falta de remédios”, relata.

Enquanto desliga os noticiários para manter o controle emocional, Vanessa se dedica à confecção das bonecas, que vende na internet. Além delas, a artesã também confecciona pêssankas, que são ovos coloridos a mão e que guardam muito da simbologia ucraniana.

“A cultura ucraniana é muito rica em significados, principalmente na arte folclórica. É uma cultura de um povo que sempre viveu à sombra do conflito, por se tratar de uma terra muito disputada. E essa arte, que existe até hoje, resistiu a duas guerras mundiais, a conflitos dos tempos do império russo, à Guerra Fria. Nossa história sobrevive nessas peças, está impressa nelas”, finaliza.