Fevereiro de 2021. Em meio à disparada dos indicadores da pandemia, Campo Grande estava iniciando uma nefasta terceira onda da Covid-19, bem pior que as anteriores. Como ser imunizado era um sonho ainda distante, cancelar minha matrícula na academia pareceu uma decisão sábia.

É aí que a bicicleta entra na história. Incentivado por um amigo e após ler reportagens que consideravam o ciclismo um dos esportes mais seguros na pandemia, comprei um modelo de segunda mão, mas uma boa bike de entrada. E, assim, os fins de semana foram sendo destinados a pedalar. Primeiro 5 km, depois 10 km, depois 15 km. Quando eu vi estava fazendo uma média de 35 km em 1h30min. Pedalar é assim, rapidinho a gente ganha resistência.

Porém, enjoei do Parque das Nações e do Parque dos Poderes. Queria sair pela cidade, pedalar no meio do mato, mas, naqueles dias, uma jovem ciclista havia morrido após acidente na região, e isso me deixou bastante reticente. Não dá para um iniciante fazer isso sozinho, é preciso ter companhia. A partir daí, comecei a ficar de olho nos grupos, mas, não senti confiança em muitos deles. Atletas sem máscara, pouca paciência para quem tava começando, negacionistas… Era o que eu via nas postagens em redes sociais.

Até que um pneu furado me levou a uma loja próximo da minha casa. De lá, o vendedor me convenceu não só a remendar o pneu, mas a comprar meu primeiro traje de ciclismo. E eu fiquei feliz, estava com uma roupa descolada e específica àquele esporte, doido para estreá-la. E naquele mesmo dia, por WhatsApp, recebi uma mensagem do mesmo vendedor me convidando para uma pedalada à noite, dali a dois dias, com um grupo iria sair de frente da loja.

Pedal de Poodles

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Grupo visita de pontos turísticos a locais ermos da cidade | Foto: Nilson Young | Reprodução

No celular, acessei o Instagram do grupo “Pedal de Poodles”. Achei o nome engraçado. Imediatamente ficou claro que os integrantes gostam de pedalar e vento no rosto, como os poodles na janela dos carros, sem competitividade, pelo prazer de pedalar. E uma informação bacana: não todos, mas muita gente já tinha seus 45 ou 50 anos, e pelo tomado ao menos a primeira dose da vacina.

No dia combinado eu estava lá. Cheguei uns 10 minutos antes do horário, ofegante de uma subida chatinha na Spipe Calarge. E dando um desconto para o desconforto que é fazer algo com gente que você nunca viu na vida, tudo correu bem, o suficiente para querer mais uma vez. O tempo todo um dos guias me perguntava se eu estava bem e eu respondia que sim. Realmente, senti-me bastante acolhido e, por isso, decidi continuar.

Quando a terceira onda ficou feia em Campo Grande, eles resolveram segurar um pouco as saídas. Enquanto isso, comecei a treinar distâncias maiores com meu amigo e quando as pedaladas foram retomadas, voltei a integrar os Poodles. Nesse tempo, acompanhei as conversas no WhatsApp e vi que o grupo é composto por pessoas realmente apaixonadas por ciclismo. Fui contaminado por eles, no bom sentido. E foi quando a mágica aconteceu.

Uma outra cidade

Uma terça-feira qualquer de junho. Com os indicadores melhorando, o grupo já havia retomado, há algumas semanas, as pedaladas. Às terças, a partida é do relógio da 14 de julho, às 19h30. O rumo era incerto, mas prometia diversão. Ou seja: trilhas, lugares exóticos e aventura. Nunca falha.

Incrível a vista da cidade nos altos do Jardim Presidente | Foto: Nilson Young | Reprodução

À frente do grupo, como guia, costumam estar Marquinhos Garcia e Nilson Young — este, a propósito, é experiente em trilhas urbanas, tem até uma empresa na cidade conhecida por conduzir campo-grandenses pelo mato, com garantia de descobrir lindas paisagens. No grupo de pedal, Nilson cumpre a mesma promessa: semanalmente, ele guia cerca de 20 pessoas por rotas inusitadas, tirando-os do asfalto e proporcionando aventura noturna, conhecendo uma outra versão de Campo Grande.

Nesse dia, uma das paradas foi na região do Residencial Búzios. Eu jamais tinha visitado o bairro, voltei com muitas ideias de pauta que foram aproveitadas em reportagens. Numa das ruas, o cheiro do churrasquinho que estreava naquele dia fez com que a gente quebrasse o protocolo — normalmente, o “pedal gastronômico” é às quintas-feiras, mas aqueles espetinhos estavam convidativos demais. Sorte de principiante ou não, o dono do churrasquinho se deu bem naquele primeiro dia do negócio.

Comilança encerrada, o grupo seguiu Nilson e Marquinhos por mais alguns quilômetros, ainda em direção ao noroeste da cidade. Até que ambos param diante de uma das muitas florestas que existem naquela região.

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Casa abandonada marcou início de aventura em pedal noturno com direito a pneu furado, pular cerca e correr de vaca | Foto: Nilson Young | Reprodução

“Pessoal, vamos entrar agora na Floresta Aleluia. Vocês estão vendo esses carros aqui? São de pessoas que estão lá dentro orando. Eles oram bem alto, por isso chamamos de Floresta Aleluia. Vamos pedalar, seguindo a trilha, sem fazer barulho, sem tocar buzina, para não desrespeitá-los”, disse Marquinhos.

Essa foi a minha primeira grande surpresa, quando entrei na floresta e vi que havia “salinhas de oração” e um pequeno labirinto de trilhas. Mais alguns metros, nos aproximamos de um grupo que orava em alto volume. Todos nós em silêncio porque éramos os invasores ali. Caiu a ficha que eram evangélicos adeptos do “Monte”, uma prática bíblica de orar em meio à natureza, até o nascer do sol. Já tinha ouvido falar deles. Conferir ao vivo foi uma experiência ímpar.

Naquele dia, a volta foi pela Rua 14 de Julho. Nilson aproveitou e entrou numa área da ferrovia. Fomos parar em frente à Rotunda Ferroviária. Muitos dos membros não sabiam do que se tratava e foi minha vez de falar um pouco sobre o lugar. Dessa visita surgiu a ideia da pauta de atualizar a situação da revitalização daquela estrutura. Sim, pedalar fez com que meu banco de referências simplesmente se tornasse inesgotável.

Que bairro é esse?

Na última terça-feira, o grupo seguiu mais uma vez para a região norte de Campo Grande. Em diversos momentos, os integrantes se perguntavam “que bairro é esse”. Só o GPS do celular para responder. Uma subida meio sofrida nos levou até um mirante. Quem diria que o Jardim Presidente teria uma vista tão bonita de Campo Grande à noite?

Surpresa mesmo foi uma casa abandonada em meio ao trajeto que, mais tarde, ia nos levar à porteira de uma fazenda naqueles arredores da Mata do Segredo. Tomada pelo mato, a casa abandonada serviu de cenário para uma das muitas fotos em grupo que os Poodles gostam de tirar. A casa era tenebrosa, passar por aquela região, ainda mais à noite, só em grupo.

Outro dia, uma trilha em uma outra floresta – esta, bem próximo da minha casa – teve mais uma descoberta, e levou o grupo a uma pequena estação ferroviária nos arredores do Rita Vieira. Para mim, uma imensa surpresa. Sabia que havia um trilho naquela região, mas não que uma estação de trem estava “escondida”. O local, a propósito, parecia habitado. Quem será que reside num prédio histórico que ninguém da cidade conhece?

Cachoeira dentro da cidade

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Paraíso particular foi descoberto graças aos pedais | Foto: Arquivo pessoal

Pedalando com essa turma desde maio, a sensação que tenho é que todo mundo é bem-vindo, desde que deixe rixas, discussões e conflitos para trás. E há algumas regras: é preciso usar capacete e ter itens de segurança na bicicleta, como farol e luz. A camiseta customizada e acesso ao grupo do WhatsApp são privilégios para aqueles que acabam mais regulares. Depois de quase 3 meses, consegui a minha camiseta de Poodle!

Para completar minhas aventuras com o grupo, falta só acompanhá-los num dos passeios de fim de semana. Diferente dos pedais da semana, estes são durante o dia, um pouco mais puxados, sob a luz do sol, com rotas off-road que levam a cachoeiras, vagões de trem abandonados, e vacas que cruzam o meio da estrada.

Enquanto isso não rola, sigo de olho nas rotas, sobretudo as mais simples. Uma dessas acabou me apresentando a um lugar especial, que trato como um paraíso particular. Praticamente dentro de Campo Grande, uma pequena cascata numa área de canions, por assim dizer, é formada por nascentes da região, resultando em água limpinha, cristalina, com uma pequena praia e com muito a ser preservado.

Este foi o maior presente que o ciclismo me deu — meu novo lugar favorito em Campo Grande. Uma vez que chegar lá é ridiculamente fácil, minha preocupação é manter a cachoeirinha intacta da sujeira de visitantes mal-educados. Na última visita, sai de lá com 2 sacos pretos de 50 litros repletos de lixo. Assim, cada vez que me perguntam a rota eu prefiro falar assim: providencia a bike que te levo lá.