Dizimadas por doença, mangueiras que ainda resistem trazem infância à memória

No dicionário, afetividade pode ser descrita como uma forma de ligação carinhosa com algo ou alguém. Para moradores de Campo Grande, essa conexão pode ser descrita com um pé de manga. Sim, isso mesmo. É que as mangueiras são personagens da maioria das histórias de família, por trazerem à memória as longas rodas de conversa […]

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No dicionário, afetividade pode ser descrita como uma forma de ligação carinhosa com algo ou alguém. Para moradores de Campo Grande, essa conexão pode ser descrita com um pé de manga. Sim, isso mesmo. É que as mangueiras são personagens da maioria das histórias de família, por trazerem à memória as longas rodas de conversa embaixo das árvores, quando celular não existia e televisão não era para todos.

O problema é que elas começaram a sumir. Não só para dar espaço a ruas e construções, mas também por conta de uma praga, que dizimou várias mangueiras frondosas em Campo Grande desde então.

Para quem cresceu em um sítio no interior de Mato Grosso do Sul, reunir a família em torno da árvore com copa frondosa vem desde a infância, era e segue sendo tradição, como conta o músico Luis Clovis, de 45 anos. “Final de semana era roda de viola com família e amigos embaixo de dois pezões de manga, era uma infância boa”, comenta.

Dizimadas por doença, mangueiras que ainda resistem trazem infância à memória
Luis Clovis, aos fundos o seu pé de manga (Foto: Leonardo de França/ Jornal Midiamax)

Para Clovis, por exemplo, o simples ato de lavar roupa consiste num grande marco na sua vida: Luis recorda com felicidade do trajeto e tempo dedicado para a atividade, quando tinha apenas 11 anos. “Descíamos com a minha tia para ir lavar roupa no rio, eu e mais dois. Quando eram 15h, o lanche era manguerita”, revela.

Mesmo distante das suas raízes culturais, o músico faz questão de manter vivo o costume que moldou o seu caráter, transferindo a tradição da zona rural para a cidade. “Até hoje faço moda de viola, sentamos embaixo do pé de manga da minha casa e assamos costela com família e amigos”.

De geração em geração

Maria Benedita, de 75 anos, também fala com singularidade sobre mangueiras. Ela conta que a paixão por árvores foi passada pela geração antecessora da família – desde os 4 anos  apreendeu a gostar da árvore , quando ainda morava próximo da rodovia Mogi Bertioga, na cidade de São Paulo. “Sempre plantei árvore, puxei a minha vó, ela gostava de plantar no sítio”, disse ela, que há mais de 20 anos plantou um pé de manga no terreno ao lado da sua residência.

Dizimadas por doença, mangueiras que ainda resistem trazem infância à memória
Maria Benedita (Foto: Leonardo de França/ Jornal Midiamax)

Maria também havia plantado um exemplar na sua casa, mas foi consumido pelos cupins. Mesmo depois de anos, ele relembra com saudade a época de criança. “Brincava muito, subia na árvore, balançava no galho e tomava suco da fruta, hoje as crianças não gostam de manga, só de suco de saquinho”, finalizou

Relembrando o período da adolescência, o auxiliar contábil, Emilio Trigueiro, de 30 anos, guarda com carinho as vezes que ficou às sombras do pé, na frente da sua casa. “Tem épocas que nos reunimos por causa da sombra, família e amigos embaixo do pé de manga” disse ele.

Além do abrigo contra o sol, Emilio também conta que nos períodos frutíferos, as crianças eram as que mais aproveitavam com a abundância da fruta. “Tinha época que pegávamos de manhã, no período da tarde e distribuíamos entre as crianças da família, era muita manga” encerrou.

Seca da mangueira

Apesar de toda memória afetiva, muita gente tem vivido com a escassez das mangueiras na cidade. Isso é muito reflexo de uma doença conhecida como ‘seca da mangueira’, que nos últimos anos dizimou vários pés de manga pelo Estado e também no Brasil.

A doença está relacionada ao besouro da espécie Hypocryphalus mangiferae a um fungo, de acordo com o doutor em Agronomia e professor da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) no polo de Aquidauana, Felipe Graichen. Ele explica que o fungo cresce dentro dos xilemas (vasos condutores da planta). “O fungo entope os respectivos vasos condutores, impedindo que a planta transporte água da raiz até o topo da planta, causando a morte por falta de água em até seis meses”, explica.

A cadeia de disseminação é iniciada pelo fungo: ele cresce nos vasos condutores da planta, gerando um odor que atrai o besouro. Para se alimentar, o besouro cava uma galeria até chegar ao xilema. Lá dentro, ele põe os ovos no interior dos vasos condutores, que nascem contaminados pelo fungo. Depois de grande, eles saem, contaminados, e reptem o ciclo em árvores sadias.

Dizimadas por doença, mangueiras que ainda resistem trazem infância à memória
Engenheiro Agrônomo e Doutor em Fitopatologia, Felipe Graichen (Foto: Arquivo Pessoal)

Segundo o pesquisador, essa doença é bem comum no Estado e causou um surto em 2015, na cidade de Aquidauana, e em 2016, em Campo Grande. Para ele, a teoria mais provável é a resposta dos insetos às variações ambientais, aumentando a reprodução: quando o ambiente se estabiliza, o número desses insetos volta a população normal.

Para evitar a perda dessas mangueiras, o professor recomenda usar mudas sadias, compradas em viveiros. “Elas não vem contaminadas e usam tipos de manga com genéticas diferentes, algo que as domésticas não tem e que as torna mais sucessíveis a doenças” explicou.

Graichen ressalta, ainda, que fungicida não resolve o problema. Porém, se uma infestação for identificada já nos primeiros sintomas, quando um único galho estiver seco, é possível salvar a mangueira apenas cortando o galho infectado mais próximo do tronco.

Dizimadas por doença, mangueiras que ainda resistem trazem infância à memória
Carregada, mangueira é xodó entre vizinhos (Foto: Leonardo de França, Midiamax)

 

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