Suicídio é considerado até hoje o principal tabu do jornalismo. Nenhum assunto ainda é tão controverso, na hora de passar o texto para a tela do computador, quanto o suicídio. Até mesmo temas como incesto, abuso sexual, aborto e drogas costumam ser melhor abordados pela imprensa.
Esta inabilidade pode estar relacionada tanto a lacunas na formação de jornalistas como ao medo, por parte das redações, de debruçar-se sobre o tema. Mas, o que parece seguir ignorado por parte dos profissionais é que noticiar suicídios, desde que de forma contextualizada, responsável e educativa, não só é oportuno como pode prevenir casos.

É nesse contexto que, desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) realizam a campanha Setembro Amarelo, cujo objetivo é colocar o assunto em pauta na sociedade, sempre na perspectiva da prevenção. E o jornalismo tem papel fundamental na iniciativa. Neste ano, o tema do Setembro Amarelo é “Suicídio é uma emergência médica”, e escancara a necessidade de se tratar o tema como um problema de saúde pública.
Suicídio: por que noticiar?
A ideia de que noticiar suicídios pode provocar a repetição de episódios semelhantes, o que é conhecido como Efeito Werther (personagem da literatura alemã do Século XVIII que se matou por um amor não correspondido e que teria influenciado leitores a fazer o mesmo) é controversa. Por um lado, está o fato de que pessoas com predisposição ao suicídio podem entender certas reportagens – ou filmes, livros e demais narrativas – como uma sugestão, caso o conteúdo seja apresentado de forma inadequada.
Do outro, especialistas no assunto entendem que uma boa reportagem, que apresente recursos para que a pessoa com propensão a se matar possa encontrar outro caminho, pode salvar vidas.
O médico psiquiatra Marcos Estevão dos Santos Moura destaca papel do jornalismo na prevenção ao suicídio (Foto: Luiz Alberto | Arquivo Midiamax)”90% dos episódios são decorrentes de transtornos mentais e podem ter tratamento eficaz. E quando a pessoa não vê saída, ela ou algum ente querido pode encontrar numa reportagem uma alternativa”, explica Marcos Estevão dos Santos Moura, psiquiatra de Campo Grande associado à ABP.
Segundo ele, transtornos mentais como depressão, esquizofrenia, transtornos de personalidade, reações decorrentes do uso de drogas lícitas ou ilícitas e demais problemas de ordem psicológica podem ser tratados se houver diagnóstico e acompanhamento médico. “São informações importantes para constar numa reportagem realmente informativa”, completa.

O que está errado?
Os principais problemas de conteúdos jornalísticos sobre suicídio moram na condução da pauta, muitas vezes tratada de forma meramente factual e superficial, e no detalhamento inadequado das mortes, como descrição de método, divulgação de cartas de despedida e demais informações que transformam os acontecimentos em sensacionalismo sob holofotes.
“É desta forma que o tema é inadequadamente abordado no jornalismo e o papel de contribuir com a prevenção não é alcançado. Em alguns casos, pode até estimular alguns indivíduos em situação de maior vulnerabilidade. É por isso que o assunto precisa ser tratado com cautela e responsabilidade”, explica o capitão capelão do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso do Sul, Edilson dos Reis.

Reis, que há cerca de 30 anos debruça-se sobre o tema e realiza, inclusive, treinamento de jornalistas Brasil a fora, também é coordenador do único Curso de Prevenção ao Suicídios do país, no Humap (Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian), integrado à UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul).
“A pressa em publicar é o maior inimigo de uma boa reportagem sobre jornalismo. Não se tratam episódios sobre suicídio com a mesma atenção que outros temas mais corriqueiros, porque ele precisa de reflexão. As palavras precisam ser pensadas. Precisamos, sim, noticiar essa realidade, que é um problema de saúde pública, mas de forma contextualizada, focando nos dados, nas pesquisas, nos contatos de apoio e nos exemplo de pessoas que superaram esses episódios”, aponta o capelão.
Avanços
Para o jornalista e pesquisador Patrick Alif Fertrin Batista, que investiga em seu curso de mestrado a relação entre portais de imprensa de Mato Grosso do Sul e temas considerados estigmatizantes, houve avanços consideráveis na imprensa do Estado ao noticiar o suicídio.
“Os principais veículos têm apresentado uma evolução significativa não só em relação ao suicídio, mas em relação a todos os temas considerados complexos, como aborto, questões de gênero e sexualidade e drogas”, destaca o pesquisador. “Em relação ao suicídio, já percebemos que as reportagens são mais completas, trazem a fala de especialistas e não se limitam ao factual”, completa.

Segundo o levantamento de Batista, o ano de 2015, o primeiro no qual notou-se um engajamento da imprensa com o Setembro Amarelo, é considerado uma espécie de marco. A partir dessa data, a abordagem adequada sobre suicídio nos jornais teriam se tornado mais consistentes.
“Entre os destaques estão as alternativas ao suicídio. O leitor se depara com informações tanto para dar suporte a alguém como para que possa ele mesmo buscar ajuda, para si. Isso é importante, porque além de colocar o assunto em discussão, pode efetivamente ajudar as pessoas”, explica.
Todavia, segundo Batista, os problemas em noticia suicídio ainda persistem, sobre tudo nos jornais menores e do interior do Estado. Dentre as inadequações mais comuns, continuam a divulgação de fotos, descrição de método de suicídio, eufemismos desnecessários e publicação de cartas suicidas.
“Quando o repórter detalha esse método, ocorre aquilo que chamamos de ‘trigger’, ou ‘gatilho’, que são as situações que podem refletir no comportamento do leitor. Se ele enfrenta uma depressão, um luto, ou qualquer condição que seja considerada vulnerável para o autoextermínio, há a possibilidade dele reproduzir, sim, o que lê”, detalha. “Ou pode induzir que o leitor banalize esses episódios tão lamentáveis”, completa.
O interesse por tratar o suicídio no jornalismo ocorreu ainda na graduação. Junto ao jornalista Victor Hugo Sanches Pereira, o pesquisador desenvolveu um livro reportagem sobre tema semelhante ao de sua dissertação. Naquela etapa, o capelão Edilson dos Reis foi co-orientador. Daí, surgiu a parceria, na qual desde 2015 o trio promove workshops voltados a jornalista.
Nos encontros, eles apresentam aos profissionais as principais orientações para tratarem do suicídio na pauta diária. Para tanto, seguem um Manual elaborado no ano 2000 pela OMS (Organização Mundial da Saúde), que aponta os caminhos para uma reportagem informativa sobre o tema. A ABP, que encampa a campanha Setembro Amarelo, também atualiza as informações sempre que pertinente (clique AQUI para fazer o download da última versão).
“É importante que essas informações circulem e que sejam tratadas pelos profissionais de jornalismo já durante a formação. O suicídio como tabu pode impedir que vidas sejam salvas. Precisamos continuar falando sobre esse tema”, conclui o pesquisador.