A rotina da professora Rosa Nogueira, de 69 anos, é idêntica há pelo menos duas décadas no . Na noite anterior, ela separa uma pasta com imagens dos pais falecidos, prepara garrafas d'água e conserva flores recém compradas na geladeira. Na bolsa, reúne algumas velas e rosários. Por volta das 7h, toma o ônibus em direção ao Cemitério Santo Antônio, atualmente o mais antigo da cidade.

Nos cemitérios municipais, zelo e honra a mortos contrastam com esquecimento de milhares
Abandono de túmulos contrasta com zelo de outros (Foto: Guilherme Cavalcante | Midiamax)

Ao chegar, atravessa as ruelas do cemitério e encontra os irmãos. Da bolsa, retira a pasta com as imagens, arruma as flores na lápide que já havia sido previamente limpa. Prepara as velas, a água e distribui os rosários entre os irmãos.

“Eu tenho que levar [os rosários] porque todo anos alguém esquece. A gente senta lá e começa a tecer o rosário. A gente passa a manhã no cemitério todo Dia de Finados, desde que mamãe morreu. Virou uma tradição familiar”, conta a aposentada. “Antes a gente pede para um senhor fazer a limpeza. Quando a gente chega ta tudo bonitinho”.

Assim como Rosa, milhares de pessoas são atraídas aos cemitérios no feriado santo, que é celebrado nesta sexta-feira (2), para homenagear antepassados. Lápides cuidadas, flores reais e de plástico, velas acesas e muitas preces tomam conta e, de certa forma, avivam a necrópole na data especial.

Mas, é inclinar o olhar para o lado e constatar que muitos dos mortos não recebem a mesma atenção de seus viventes. Túmulos sujos, mal-conservados ou simplesmente abandonados são elementos de contraste. Alguns, viram morada de corujas, que cavam tocas sob as lápides que são cobertas apenas com terra. Foram entes queridos de alguém, em algum ponto da própria história, mas que há muito tempo seguem na sepultados e cobertos pela deslembrança.

Tradição secular

O costume de dedicar um dia do ano para celebrar a memória dos mortos é uma tradição cristã, institucionalizada desde o século XI, quando a Igreja Católica passou a dedicar um dia por ano aos mortos. Nos três cemitérios municipais de – o Santo Antônio, São Sebastião (Cruzeiro) e Santo Amaro – os preparativos pelo Dia de Finados começaram há cerca de uma semana, com a limpeza das ruelas, poda de plantas e demais manutenções. A estimativa é que aproximadamente 170 mil pessoas visitem os locais nesta sexta.

Mas, chamam atenção os túmulos que há décadas não recebem visitas. Trabalhadores dos três cemitérios revelam que o abandono é “crônico” e que dificulta a manutenção dos complexos.

“É o que mais tem aqui”, responde um coveiro do Cemitério São Sebastião, também conhecido como Cruzeiro', quando questionado sobre túmulos abandonados. “É o que a gente mais vê. Família que enterra o parente e nunca mais volta aqui, nem para acender uma vela. Não manda nem limpar para o Dia de Finados”, revela Valtecir Ari Paredes, que trabalha como coveiro no Santo Amaro, o maior da cidade.

Nos cemitérios municipais, zelo e honra a mortos contrastam com esquecimento de milhares
Jazigos de indigentes são simples e sem lápides, identificados apenas por números (Foto: Marcos Ermínio | Midiamax)

“Nosso trabalho é fazer os sepultamentos e as exumações. Após cinco anos, as famílias podem requerer a limpeza das covas e os restos mortais ficam numa caixa, assim vai ter mais espaço para outros falecidos”, detalha.

No Cruzeiro, nome pelo qual o Cemitério São Sebastião ficou mais conhecido, há um espaço chamado ossário. É para onde vão os restos mortais de indigentes. Inicialmente, os corpos são sepultados em covas com identificação numérica.

Nos cemitérios municipais, zelo e honra a mortos contrastam com esquecimento de milhares
Ossários do Cruzeiro já estão superlotado (Foto: Marcos Ermínio | Jornal Midiamax)

“Depois que pode fazer a exumação, eles vão para um ossário em comum”, conta Felisberto Recalde, de 58 anos, que trabalha como pedreiro no Cruzeiro. A Prefeitura não informou quantos indigentes foram sepultados nos cemitérios municipais, mas a reportagem apurou que os ossários já enfrentam problemas de superlotação.

“Ninguém sabe quem é, né? Mas a gente sempre vê um ou outro que acende vela no Cruzeiro para quem não tem quem vele por eles. Vem muita gente aqui o tempo todo no Cruzeiro acender vela”, comenta Lindinalva Costa Bezerra, zeladora do Santo Amaro.

Nos cemitérios municipais, zelo e honra a mortos contrastam com esquecimento de milhares
(Arte: Deyvid Guimarães | Midiamax)

A lida com a morte

Aos 57 anos, o que leva Lindinalva diariamente ao Cemitério Santo Amaro não é a morte, mas a busca pelo sustento. Há três anos, ela trabalha como zeladora de serviços gerais no local e, ao lado de outros 8 companheiros de trabalho – entre coveiros, pedreiros e administradores – convive diariamente com a dor de quem perde entes queridos.

Nos cemitérios municipais, zelo e honra a mortos contrastam com esquecimento de milhares
Há três anos no Santo Amaro, Lindinalva vê a morte com naturalidade (Foto: Marcos Ermínio | Jornal Midiamax)

“Tem muito trabalho aqui, então a gente acaba sem tempo para pensar nisso [na morte]. No começo eu pensava mais, tinha muita família enlutada que me tocava. Mas, hoje, o que eu posso te dizer é que a gente se acostuma. A morte é algo natural, é a única certeza”, diz Lindinalva, em sua simplicidade.

Conforme a Prefeitura de Campo Grande, somente no Santo Amaro, que é o maior cemitério municipal da cidade, 65 sepultamentos são realizados no local a cada mês, em média. No Cruzeiro, a estimativa é de 53 enquanto no Santo Antônio, a média é de apenas 15. Os números são proporcionais às dimensões de cada local, bem como ao número de sepulturas. Mas, praticamente todos os dias há trabalho a se fazer.

“No começo dava um pouco de receio, principalmente quando tinha alguma ordem de exumação quando o corpo ainda estava… Você sabe. Mas, hoje é muito difícil isso acontecer. E sempre usamos luvas, máscara, bota”, explica Valtecir. “A gente acaba se acostumando, é natural”, completa.

Trabalho em família

Há mais de três décadas, Francisca Rufino da Costa, de 62 anos, atua informalmente na manutenção de jazigos no cemitério Santo Antônio, o mais antigo atualmente, fundado em 1914. Ao lado dela, a filha Marlene Rufino, de 42 anos, ajuda a cuidar de cerca de 20 sepulturas no local.

“A gente vê a diferença. Tem quem todo mês procure a gente para a limpeza, tem quem procure só uma vez no ano, por esses dias. E tem os túmulos que só o pessoal daqui, mesmo, para cuidar. Já nasceu até árvore de dentro deles, um descaso”, conta Francisca.

“Eu vim trabalhar aqui com uns 12 anos. Tem túmulo que a gente nunca viu ter cuidado. Pelo que a gente fica sabendo, são de famílias que moram fora ou de quem não deixou herdeiro, mas é claro que tem quem não liga”, complementa Marlene. “Nessa semana a gente trabalha mais, porque vem muita gente pedir pra limpar, deixar arrumadinho”, conclui.