Procurador diz que ideia é dar senso de responsabilidade

O juiz Roberto Ferreira Filho, da 1ª Vara Criminal de , que já foi  titular da Vara da Infância e Juventude da Capital e presidiu o  Fórum Nacional da Justiça Juvenil, oferece contrapontos à proposta pelo deputado Lídio Lopes (PEN). O projeto de lei está para ser votado na Assembleia Legislativa e foi inspirado nas ideias do procurador Sérgio Harfouche.

O tema está em debate, principalmente depois da polêmica apresentação feita em Dourados, pelo procurador, em que os pais foram intimados a comparecer ao evento no qual foi apresentando o programa que inspira a lei.

Para Ferreira, a medida legal proposta é “inócua, redundante e inconstitucional”. Além disso, diz que “se choca com princípios mais elevados, como a Constituição Federa” em diversos artigos. Segundo ele, o projeto de lei fere o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Civil Brasileiro e até o Regimento Escolar publicado pela Secretaria Estadual de Educação.

O procurador Sérgio Harfouche afirma que as críticas tem um ponto de vista punitivista e que o projeto de lei tem a intenção de responsabilizar os jovens pelos danos causados nas escolas. De acordo com Harfouche, a regulamentação dá estrutura para que os regimentos das escolas sejam obedecidos.Em '10 lições', juiz defende que 'Lei Harfouche' fere a Constituição

Confira as críticas apontadas pelo jurista.

1 – Lei Invadidira competência da União

Ferreira afirma que tanto União quanto os estados podem legislar sobre os assuntos de ambiente escolar, entretanto há normas gerais que já foram fixadas pela União, determinados no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e na Constituição Federal, por exemplo.

“Mato Grosso do Sul não pode criar normas que tratem do mesmo assunto, ainda que parcialmente. Quando se fala em punição do adolescente, invade-se a competência da União para legislar sobre a matéria, a lei é inconstitucional por causa disso”.

Segundo ele, o artigo 1º da Lei Harfouche fere o artigo 24, nos incisos 9 e 15 e parágrafo 1º da Constituição Federal.

2 – Lei daria tratamento desigual a estudantes

O juiz afirma que o projeto de lei exclui os alunos da rede privada, ao citar no artigo 1º apenas os estabelecimentos de ensino estaduais. “Como os idealizadores do projeto estão aprovando nas câmaras as lei municipais, seja no município ou no estado, a lei abrange somente aluno rede pública e esquecem a privada”.

Segundo Ferreira, isto fere o princípio constitucional da isonomia, descrito no artigo 5º da Constituição Federal.

3 – A lei teria lacunas

Outro ponto abordado pelo magistrado é que entre os 5 artigos do projeto de lei proposto  na Assembleia não há quais condutas passíveis de sanção e quais sanções seriam aplicadas.

“Toda lei tem que definir expressamente a conduta e quais sanções possíveis. Quando fala-se genericamente , cria-se espaço para incerteza. Esta lacuna abre um perigo que não se admite em um estado democrático, que é aplicar punição com a impressão subjetiva de quem aplica”, define o jurista, explicando que para mesmas infrações poderiam ser aplicadas penas diferentes.

Segundo o juiz, o ponto fere o princípio da legalidade, portanto é inconstitucional.

Sobre esta questão, Ferreira cita o regimento escolar para as escolas estaduais, publicado em 18 de maio no Diário Oficial pela Secretaria de Educação. “Entre deveres e proibições o regimento elenca as condutas e as sanções, o projeto de lei não faz nem uma nem outra coisa”.

4 – Lei não seria clara sobre “julgamento”

Para Ferreira, o projeto de lei é falho também por não definir os métodos de aplicação das punições.

“O texto não estabelece como seria o processamento desse ‘mini julgamento', vamos assim dizer. O aluno seria notificado? Ele teria chance defesa? Como seria? Se não concordar com a pena, pode recorrer? Ainda que pai e mãe concorde, é importante definir isso. Ainda, de qual experiente ele pode se socorrer para recorrer de uma punição ilegal?”

O juiz afirma que o próprio regimento para as escolas estaduais trata disso e é muito melhor que o projeto de lei. Além disso, a questão fere artigo 5º da Constituição Federal, nos incisos 53, 54 e 55.

5 – Juiz x diretor

Em caso de atos indisciplinares que caracterizam crime, o ECA define claramente que deve haver um  julgamento e quem preside exclusivamente é um juiz. Segundo Ferreira, a lei é omissa neste ponto.

“Um diretor de escola, mesmo que a lei falasse expressamente, não pode usurpar uma função que é do juiz. Quando o texto não esclarece como seriam as penalidade e quais seriam elas, permite tudo, inclusive que seja aplicada pela direção da escola uma punição prevista no ECA e que deveria ser aplicada pelo juiz”, ressalta

Este ponto, de acordo com o jurista, fere o princípio do devido processo legal, que seria outra inconstitucionalidade e fere também o regimento estadual.

6 – A lei seria redundante 

Para Ferreira, o trecho projeto de lei que determina que os pais são responsáveis por causados por alunos, é desnecessário.

“O Código Civil de 2002, já prevê isso. Se o menor causa dano, os pais ou responsáveis já tem obrigação de reparar o dano. É desnecessária essa previsão, totalmente redundante”.

7- Projeto significaria perda benefício social

De acordo com a análise de Ferreira, o artigo 5º do projeto de lei é um dos mais problemáticos. O artigo em questão prevê a retirada de benefícios sociais se os pais ou responsáveis acompanharem o desempenho do aluno.

“Quem excluiria o benefício? Como seria apurado? Quais benefícios? Se for benefício do município, o estado não pode cortar. Se for benefício da União, como o Bolsa Família, o estado também não pode cortar. Além de não poder cortar, a lei estará penalizando pessoa que não cometeu penalidade, sem falar de vulnerabilidade social. Quem está nestas condições tem de ser elevado socialmente”.

O magistrado afirma que tal cláusula fere o Pacto Federativo e o artigo 1º da Constituição Federal.

8 – Instrumentos existens seriam suficientes

Ao citar os pontos que considera fracos no projeto de lei, o juiz Roberto Ferreira Filho afirma que não está defendendo a impunidade de crianças e adolescentes que quebrem as regras nas escolas. Segundo ele já existem instrumentos para os casos de indisciplina.

“Não significa que o aluno que cometeu alguma irregularidade fique impune. As sanções que o ambiente escolar pode aplicar – advertência, suspensão, transferência – o regimento das escolas já contemplam. E há as sanções que dependem de processo judicial, ninguém está defendendo impunidade”, complementa.

9 – Defesa da Justiça Restaurativa

Ferreira defende que há meios de tratar do problema sem “sem cometer ilegalidade”, como a justiça restaurativa, em que os casos são resolvidos consensualmente, no próprio ambiente escolar, sem necessidade de processos judiciais.

“Há uma resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que regulamenta e incentiva a prática (da justiça restaurativa). Campo Grande tem um projeto há bastante tempo, desde 2012 e 20 escolas já fazem parte dele”, conta Ferreria.

Ele afirma que o Sinase (Sistema Nacional Socioeducativo), no seu artigo 35, propõe práticas restaurativas, preferencialmente a processos judiciais. “Casos são resolvidos no próprio ambiente escolar, mediado por psicólogos, pedagogos, assistentes sociais, para resolver o conflito. Não vai necessariamente para a delegacia, como o procurador fala”, explica.

10 – ​Sociedade deveria exigir cumprimento das leis já existentes

Em relação aos instrumentos citados, Ferreira defende que a sociedade deveria cobrar o cumprimento das leis, normas e regulamentos já existentes. “Se reclamamos que as leis não funcionam, pq essa haveria de funcionar? Temos que ter a consciência que o trabalho é de efetivar a lei em todas as circunstâncias ou, se necessário, criar uma outra vara infância”, sugere o juiz, como forma de dinamizar e aplicar as leis.

“Eu digo que a lei nem seria necessária. Deveria fortalecer os instrumentos já existentes, como a justiça restaurativa e os regimentos das escolas. E, se for criar uma lei, que seja uma lei compatível com as normas existentes. O texto como está, choca com princípios mais elevados, como a Constituição Federal”.

O que diz o procurador

Inspiração para o projeto de lei, o procurador Sérgio Harfouche acredita que as críticas feitas pelo juiz Roberto Ferreira Filho tem ponto de vista punitivista. “As críticas destoam por completo das ideias do projeto de lei. Eu luto para a estabilidade da infância. Já falei com mais de 150 mil pais e visitei dezenas de escolas. Queria saber em quantas escolas ele visitou”.

Segundo Harfouche, a justiça restaurativa, um dos instrumentos citados por Ferreira, é boa, mas é insuficiente para resolver todos os problemas da escola, além de ser um processo lento.

Sobre as críticas tecidas pelo magistrado, o procurador diz que a lei não é inconstitucional e “já foi aprovada pela CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania)”. Além disso, ele citou a aprovação em diversos setores. “O CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) avaliou a constitucionalidade do programa e mandou inserir no regimento escolar, estou somente obedecendo. A Comissão de Direitos Humanos do Senado, na figura do senador Paulo Paim, elogiou o programa. A lei tem 95% de aprovação da população de Campo Grande”.

Harfouche também defende o programa através da aprovação do procurador de justiça aposentado Munir Cury, que escrever um livro comentando o ECA. “Munir Cury atestou o projeto de lei dizendo que o programa é constitucional e legal”.

Uma das defesas ao projeto de lei de Harfouche alega que o texto contempla as normas e leis existentes. “A lei cita a Constituição e o Código Civil. Pode usar, mas não pode conflitar e legislar contra”.

Em respeito à lei citar somente escolas estaduais, o procurador justificou dizendo que as escolas particulares já tem seus instrumentos, previstos em contrato. “Num primeiro passo, não me preocupei porque escolas particulares já põe no contrato cláusulas que obrigam os pais a se comprometerem pelos danos causados pelos filhos. As escolas particulares  já fazem isso. As escolas públicas que são jogadas às traças”.

Harfouche defende que o projeto de lei não leva à punição, mas sim a responsabilização do aluno pelo que ele causar. Segundo ele, casos graves, que forem considerados crimes, devem ser “encaminhado para a promotoria e ter sequência normal. Aí sim,não tem jeito. A lei é destinada a atitudes corriqueiras da escola. No lugar da escola ficar advertindo, o aluno vai reparar o dano que praticou”.

As atitudes passíveis de intervenção, diz Harfouche, já estão detalhadas nos regimentos das escolas. “Tenho que respeitar a autonomia da escola, o detalhamento de condutas compete ao regimento da escola, não tem como colocar dentro da lei. A lei só traz a estrutura para dar respaldo ao que já está funcionando na escola. Na matrícula os pais têm direito de conhecer o regimento”.

Para o procurador, as leis civis não estão sendo aplicadas na escola pública. “Estamos trazendo para dentro da escola a aplicação da lei”.

A lei chegou a ser colocada em debate na Assembleia, em uma sessão bastante polêmica, foi retirada e deve passar por mudanças, entre elas um novo nome.