Pesquisa brasileira usa vírus da zika para atacar tumor maligno

A capacidade do vírus da zika de comprometer o desenvolvimento do cérebro de fetos em gestantes alimenta a esperança de crianças com câncer no sistema nervoso central. Da mesma forma que ataca as células-tronco neurais, impedindo o crescimento de neurônios, ele destrói as células tumorais. Em experimentos pré-clínicos, o vírus foi capaz de matar tumores […]

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A capacidade do vírus da zika de comprometer o desenvolvimento do cérebro de fetos em gestantes alimenta a esperança de crianças com câncer no sistema nervoso central. Da mesma forma que ataca as células-tronco neurais, impedindo o crescimento de neurônios, ele destrói as células tumorais. Em experimentos pré-clínicos, o vírus foi capaz de matar tumores cultivados in vitro e de tratar camundongos com a doença.

 

— Há males que vêm para o bem — definiu a geneticista da USP Mayana Zatz, uma das cientistas envolvidas no estudo publicado nesta quinta-feira na revista “Cancer Research”, sobre a descoberta — As células tumorais neurais, assim como as células progenitoras neurais, agem como imãs atraindo o vírus da zika. Foi a primeira vez que tumores humanos em camundongos foram destruídos dessa maneira.

No laboratório de Mayana, durante estudo com gêmeos em que apenas um desenvolveu a microcefalia após a mãe ser infectada com zika durante a gestação, pesquisadores demonstraram que o vírus afeta principalmente as células-tronco neurais, provocando danos no desenvolvimento cerebral do bebês. Também na USP, a geneticista Carolini Kaid, do laboratório do professor Oswaldo Keith Okamoto, descobriu que células de tumores no sistema nervoso central de crianças se comportavam da mesma forma que células-tronco.

— Aí surgiu o link — explicou Carolini. — Se o vírus da zika ataca as células-tronco, será que ele atacaria as células tumorais que são parecidas?

Na primeira fase do experimento, os pesquisadores testaram a ação do vírus em células de três linhagens tumorais neurais — duas de meduloblastoma e uma de tumor teratoide rabdoide atípico (ATRT, na sigla em inglês) — e de tumores de mama, próstata e colorretal. Mesmo pequenas quantidades do vírus foram suficientes para infectar as células dos tumores neurais. As de próstata até foram infectadas, mas em menor proporção. As células de câncer de mama e colorretal não foram infectadas.

Na segunda fase, os cientistas compararam a capacidade de infecção do vírus entre células-tronco neurais e células tumorais.

— Infectamos ambos os tipos celulares in vitro e vimos que as células tumorais são ainda mais suscetíveis a serem destruídas pelo zika do que as células-tronco neurais — disse Okamoto. — Nesse mesmo ensaio, expusemos neurônios maduros ao vírus, diferenciados a partir das células-tronco neurais humanas, e vimos que eles não foram infectados ou destruídos pelo patógeno.

Com os resultados em mãos, o experimento foi levado para modelos in vivo, com camundongos imunossuprimidos. Os animais receberam injeções de células tumorais humanas numa região do cérebro conhecida como ventrículo lateral, de onde o câncer avança para outras regiões do sistema nervoso central e, em seguida, para a medula espinal. Após o avanço da doença, as cobaias foram tratadas com injeções do vírus da zika no mesmo local.

Para medir a eficácia do tratamento, foram montados dois grupos de controle. No primeiro, os camundongos receberam as células tumorais, mas não o vírus. No segundo, os roedores foram infectados apenas com a zika, sem o tumor.

— Os camundongos só com o tumor ou só com a zika morreram em questão de semanas. Os que foram tratados sobreviveram até quase três meses — contou Mayana.

No grupo tratado com o vírus os camundongos apresentaram redução significativa no tamanho dos tumores. Em alguns casos, ele foi eliminado completamente, até mesmo as metástases que haviam se formado na medula. Livres da doença, os animais tiveram maior sobrevida. No grupo que recebeu o tumor sem o vírus, os animais viveram por até 30 dias. As cobaias que foram apenas infectadas com a zika morreram em duas semanas. Os animais tratados viveram até 80 dias.

— Os animais acabaram morrendo mesmo quando o tumor foi totalmente eliminado, em decorrência das complicações da doença em estágio avançado. É possível que a sobrevida se torne ainda maior caso o tratamento seja feito em um estágio mais precoce. É algo que precisamos investigar — disse Okamoto. — O animal imunossuprimido é muito sensível a qualquer patógeno, mas tivemos de recorrer a esse modelo porque é o único em que as células tumorais humanas são capazes de se proliferar.

Dos 29 camundongos tratados, o vírus da zika induziu a redução do tamanho do tumor em 20, sendo que em sete a remissão foi completa.

— A zika provocou a remissão do tumor, até em casos com metástase. Foi um resultado surpreendente. A nossa expectativa era que o vírus infectasse as células para permitir a identificação pelo sistema imunológico, mas o vírus matou os tumores — revelou Carolini. — Normalmente, nós vemos estudo citando a redução do ritmo do crescimento. Ninguém do nosso laboratório já tinha visto um tumor sendo destruído em questão de dias.

O próximo passo envolve os primeiros testes clínicos com humanos. A equipe já está modelando o estudo, que deve ser realizado com dois ou três pacientes que já não respondem aos tratamentos convencionais. A esperança dos pesquisadores é que o vírus da zika ofereça uma nova terapia aos pacientes, sem a agressividade dos procedimentos atuais, que envolvem cirurgia e sessões rádio e quimioterapia.

Os tumores estudados — meduloblastoma e ATRT — afetam principalmente crianças entre dois e cinco anos. Depois da leucemia, são os tipos de câncer pediátrico que mais provocam mortes no país. Segundo Carolini, o ATRT é fatal, com sobrevida de apenas 18 meses. Dos pacientes com meduloblastoma, 60% sobrevivem, mas com graves sequelas provocadas pela quimioterapia e pela radioterapia.

Um dos pontos positivos do tratamento com o vírus da zika é a segurança. A doença provocou pavor quando surgiu no país, em 2015, por causa das sequelas provocadas em bebês. Mas os sintomas em pessoas que não estejam grávidas é ameno, com febre e manchas pelo corpo. Além disso, nos experimentos foi constatado que após destruir o tumor, o vírus perde sua capacidade de infecção.

— É interessante que o vírus da África não causa microcefalia, só quando ele chegou no Brasil que sofreu uma mutação. E é justamente essa mutação que permite a destruição das células tumorais — comentou Carolini.

 

 

 

 

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