Estado registrou 20 abortos e 15 natimortos no ano passado, segundo Dive

Só em Santa Catarina, pelo menos 15 bebês nasceram mortos no ano passado e outros 20 sequer chegaram à metade da gestação por causa de uma doença que poderia estar erradicada, mas cujos números têm alarmado médicos e autoridades na área da saúde em todo o Brasil: a sífilis congênita, quando a doença é transmitida da mãe para o bebê. E para piorar a situação, o medicamento que pode salvar essas vidas virou raridade nas farmácias.

Em 2014 foram registrados 269 casos de sífilis congênita em Santa Catarina, segundo dados da Divisão de Vigilância Epidemiológica (Dive), órgão da Secretaria de Estado da Saúde. Segundo o órgão, as notificações vêm aumentando nos últimos anos: em 2012 haviam sido 101 casos, com dois abortos e dois natimortos. Em 2013 os números deram um salto para 222 transmissões, com seis abortos e 15 natimortos. No ano seguinte, o número subiu novamente.

“Os dados são alarmantes. Esses números em Santa Catarina podem ser justificados pelo aumento na detecção dos casos, através de políticas como as implantadas no programa Rede Cegonha, mas é preciso considerar que o aumento dos casos de sífilis é um fenômeno mundial”, diz Fábio Gaudenzi de Faria, superintendente da Dive.

Como é transmitida
A sífilis é uma doença causada por uma bactéria e transmitida durante o contato sexual sem preservativo, inclusive no sexo oral. Em adultos, ela se manifesta como uma ferida no pênis, na vagina ou na boca. Os sintomas podem desaparecer e voltar tempos depois de uma forma mais grave, causando problemas na artéria aorta e até distúrbios cerebrais.

Quando acomete gestantes, a doença costuma causar danos graves se for transmitida ao bebê: ele pode ter desde malformações até problemas neurológicos graves, que podem se manifestar até mesmo depois do nascimento. De acordo com uma cartilha informativa do Ministério da Saúde sobre a sífilis congênita, 40% das crianças infectadas a partir de mães não-tratadas não sobrevivem.

A sífilis tem pelo menos três estágios. “Quanto mais cedo na gestação, pior. Se a mulher tem sífilis primária no início da gestação, esse bebê não nasce, as malformações são graves”, explica o pediatra Alvaro Koenig,  da comissão de controle de infecção do Hospital Unimed, de Joinville, no Norte do estado.

Falta de remédio
Em meio ao aumento dos casos registrados, o estado ainda enfrenta desde o fim do ano passado a falta de penicilina benzatina (conhecida como Benzetacil), um remédio antigo e relativamente barato.

Gaudenzi explica que o medicamento faz parte do rol de produtos cuja responsabilidade de aquisição é do município, que recorre ao governo estadual, caso não consiga comprá-los.

“Não é questão de falta de dinheiro, tentamos fazer a compra direta, mas há um problema de fornecimento”, diz o superintentente. “As informações que temos é de um retorno gradual, mas como nem sempre elas traduzem a realidade, fica a preocupação”, complementa Gaudenzi.

‘Poderia estar extinta’
“É uma doença facilmente tratável e poderia estar extinta, mas é urgente ter a penicilina. Ela salva a vida da criança”, afirma a obstetra Roxana Knobel, professora da Universidade Federal de Santa Catarina.

Ela cita dados do Ministério da Saúde que apontam que, entre 2010 e 2013, 333 bebês morreram no Brasil com menos de sete dias de vida em decorrência da sífilis congênita. “Muitos deles poderiam estar vivos se a mãe tivesse tomado penicilina”, ressalta a médica.

No dia 19 de maio, a Dive emitiu uma nota técnica, à qual o G1 teve acesso, informando profissionais da saúde sobre a gravidade da situação da falta medicamento. “Diversos municípios de Santa Catarina têm relatado a diminuição e/ou desabastecimento da penicilina benzatina em seus estoques”, diz o texto.

De acordo com a nota, “tal situação torna-se crítica, uma vez que se trata do único tratamento com evidência técnica e recomendação atual para impedir a ocorrência da transmissão vertical de sífilis [de mãe para filho]”. Enquanto durar o desabastecimento, a penicilina deve ser ministrada apenas a gestantes – demais pacientes devem seguir um tratamento alternativo, com duração maior.

“A penicilina é a droga de escolha para tratamento de gestantes, por ser menos tóxica. Ela é mais eficaz e passou por muito mais experiências do que qualquer outra droga”, explica o infectologista Luis Fernando Aranha Camargo, médico do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Cabe ao estado e à indústria intervir e garantir a produção”, comenta.

Indústria farmacêutica
A explicação para o desabastecimento de penicilina, de acordo com a indústria farmacêutica brasileira, não é financeira. Segundo os laboratórios, falta certificação para um novo fornecedor de matéria-prima.

“Há um desabastecimento global. No caso da penicilina benzatina houve uma troca do fornecedor mundial de matéria-prima. Acredito que ela seja importada da Índia”, diz Nelson Mussolini, presidente do Sindusfarma, sindicato que reúne 95% da indústria farmacêutica brasileira.

“Não é questão de facilidade para produzir. O fornecedor resolveu parar de um dia pro outro em meados de 2014”, explica Mussolini, afirmando que “três ou quatro laboratórios” no Brasil fabricam o medicamento.

Em nome da indústria farmacêutica, ele nega que os laboratórios não estejam produzindo por falta de interesse financeiro na venda desses medicamentos. “De fato, a maioria desses remédios têm preço baixo, defasado.  Mas as empresas têm sua responsabilidade social”, diz o presidente do Sindusfarma.

Ministério fez reuniões
Em nota, o Ministério da Saúde informou que vem monitorando a produção nacional do medicamento Benzetacil.  “Laboratórios produtores alegaram dificuldades no processo produtivo, devido à escassez mundial  no suprimento de matéria-prima”.

De acordo com a pasta, foram realizadas reuniões entre janeiro e abril deste ano para buscar uma solução ao problema. “As empresas se comprometeram em adotar todas as providências para normalizar o fornecimento do medicamento ainda neste mês de junho”. 

Enquanto a situação não é normalizada, médicos e autoridades de saúde lembram da importância do uso do preservativo durante as relações sexuais e do pré-natal. “Se eu precisasse pedir apenas um único exame de pré-natal, seria o de sífilis”, avalia a obstetra Roxana Knobel”. “Também há testes rápidos para sífilis disponíveis em postos de saúde”, afirma o superintendente da Dive, Fábio Gaudenzi.

Falta remédio para toxoplasmose
O problema de falta de medicamentos em Santa Catarina não se restringe à penicilina. Na semana passada, o G1 mostrou a história de uma grávida do Oeste catarinense que descobriu ser portadora de toxoplasmose com 25 semanas de gestação.

O remédio indicado para evitar a transmissão da doença ao bebê também está em falta nas farmácias. Ela está fazendo um tratamento alternativo e luta na Justiça para conseguir a medicação gratuitamente. “Só saberei se meu filho terá problemas quando ele nascer”, diz a psicóloga Barbara Lohmann da Silva, de 26 anos.