Sobre os mitos e histórias do Reno, o rio que une um povo e separa duas nações
Brunetto trouxe mais lições de vida na bagagem após conhecer o Reno
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Brunetto trouxe mais lições de vida na bagagem após conhecer o Reno
Em julho de 2006, eu e minha amiga Alba fizemos uma viagem cujo objetivo central era percorrer o Vale do Reno, conhecendo suas cidadezinhas e também os castelos construídos à beira desse rio alemão tão importante à história da Europa. Um campeonato mundial de futebol se intrometeu no meio de nossa viagem, ou nós nos intrometemos no meio dele. Naquele ano a Copa do Mundo aconteceu na Alemanha.
A viagem começou com trabalho: fomos a Paris para um congresso internacional de psicanálise. Na abertura desse congresso, que reunia psicanalistas de muitos países do mundo, teve um coquetel, e nele um grande telão passando um dos jogos da Copa que acontecia naquele momento: Brasil x França. Muitos psicanalistas brasileiros, grudados à frente da tela, viram seu país perder feio, feiíssimo, para a França. Mais para Zinedine Zidane do que para o resto do time. Saímos do coquetel e os franceses estavam muito felizes, comemorando nas ruas. Os homens, sobretudo, mais ainda os jovens. Naquele julho, Zidane uniu o país. Todos eram por ele, os franceses de longas gerações e a população árabe, já nascida na França ou imigrante, torciam para Zidane levar a França à vitória. Zinedine Zidane é francês, porém de família argelina, árabe. Todavia, em Paris todos cantavam, nas ruas e nas rádios, um jingle: “Zizou y va marquer”. Zizou, ele vai marcar o gol. Zidane, para todos os franceses, era Zizou, chamado assim, no apelido carinhoso. Foi um momento lindo, de união por uma causa. E passou, sabemos hoje.
A Ópera de Paris comemorava os 250 anos do nascimento de Mozart. Um alto painel estava pendurado na frente do edifício, convidando a todos para assistir a orquestra que só tocaria, naqueles dias, Mozart. No prédio em frente, um painel maior ainda mostrava Zidane segurando o globo terrestre na mão. Naquele julho, e ainda mais após aquela derrota imposta ao Brasil que jogou muito mal – éramos, ainda, muito importantes no futebol – Zinedine Zidane foi, também por um momento, maior que Mozart. Era um entusiasmo, uma fé de que iriam vencer. Eu acreditei que eles venceriam a copa. Quase, ficaram como vice. A Itália ganhou, não sem antes desestabilizar o melhor jogador da França, dando um show de racismo. E ele, Zidane, respondendo com agressividade.
Deixamos Paris de trem e chegamos a Luxemburgo. Essa cidade seria só um pit stop para entrarmos na Alemanha e chegar ao Vale do Reno. Luxemburgo foi a maior surpresa que já tive em todas as viagens que fiz. Achava que era só um paraíso fiscal, mas descobri uma lindeza, quase um paraíso. Em alguma crônica futura escreverei só sobre ela. Só ela merece um texto: Luxemburgo, a bela. Saí de lá prometendo que retornaria. Ainda não o fiz.
Em Luxemburgo pegamos o trem para Koblenz. Cidade sem graça e sem beleza, mas o começo do passeio pelo Reno. Nela se encontram dois rios, o Reno e o Mosela. Em um canto da rua da orla, um monumento a esse encontro, a Esquina Alemã. É a região, tanto à beira de um rio como do outro, das melhores vinícolas alemãs. Segundo alguns, dos melhores vinhos europeus.
Para os amantes do vinho, ir ao Vale do Reno é um passeio imperdível; também para os amantes, os que se amam, é um passeio imperdível. Tanto que esse roteiro turístico é divulgado como “A rota romântica”. Para os amantes da história, do folclore e das lendas de um país, é um passeio imperdível, que era o nosso caso. Duas amigas, fugindo um pouco do roteiro das grandes cidades, como Colônia, por exemplo, onde passamos um dia. Nela estavam acontecendo jogos da copa e lotada de turistas amantes do futebol: grupos e mais grupos de homens completamente embriagados, sentados pelas ruas, tornavam as férias um pouco complicadas. Os alemães gostam de tomar cerveja, como é bem sabido, então imaginem em uma Copa do Mundo: é uma oktoberfest potencializada.
Ficamos hospedadas em Koblenz uma semana, cada dia saíamos do hotel e pegávamos um navio, passávamos o dia em uma cidade do Vale do Reno, voltávamos final da tarde. Assim fomos a Boppard, a Rüdesheim, ao Castelo de Marksburg, ao Palácio Stolzenfels e ver a estátua de Lorelei, perto da cidade de Bacharach.
Lorelei é o mais célebre dos mitos do Reno; inspirou poetas, pintores e compositores. É chamada de “a fada dos rochedos”, que hipnotiza com seu canto os marinheiros que ali passam. Versão alemã da nossa Iara, mãe das águas, ou das sereias, da Odisséia. É uma loira que penteia seus cabelos com um pente de ouro e chama os homens com seu canto. Não com seu olhar, pois ela não olha para eles. O poeta alemão, judeu assimilado, Heinrich Heine, o preferido de Freud, que o cita por toda sua obra, escreveu um lindo poema sobre Lorelei que é mais ou menos assim: “na hora que caem as sombras e o Reno corre impassível, Lorelei penteia seus cabelos e canta um som estranho e forte. Com essa melodia, os marinheiros se perdem no rio e na vida pela mais bela das mulheres”. Os nazistas jogaram na fogueira todos os livros de Heine, mas mantiveram esse poema nos livros escolares, colocando ao final “autor desconhecido”.
Relato uma situação inusitada que aconteceu nessa viagem e que guardei na memória. Foi um verão especialmente quente, quarenta graus à beira do rio Reno. Escutei no noticiário que nove alemães tinham morrido de calor naquela semana. O sol era muito mais forte que em nosso verão – escrevo isso sem o mínimo conhecimento de causa – e Alba, por vezes, ficava deitada nos bancos das praças e eu ia caminhar.
Estávamos em Boppard, esperando o barco KD (Köhl-Dusserdorf) para retornar a Koblenz. Alba deitada no banco da praça e eu fui olhar a beirada do rio. Aproximou-se um senhor que deveria ter entre setenta e oitenta anos, como estava chegando um barco de outra companhia que não aquela que tínhamos o ticket para a semana toda, ele se aproximou de mim e falou para eu não entrar que aquele não era o meu barco. Falou em inglês e eu respondi com meu alemão capenga. Perguntou de onde eu era, conversamos um pouco, ele disse que já tinha vindo passear no Brasil. Conheceu somente o Estado de São Paulo.
Assim percebi que ele já estava observando a mim e minha amiga desde que pegamos o barco, pela manhã, em Koblenz. Era alemão e estava com um grupo de casais que estava um pouco mais ao lado. Por várias vezes, alguém do grupo vinha chama-lo; ele se recusava a ir. Eu tentava seguir adiante, pois percebi que estava incomodando sua esposa ele estar conversando comigo. Eu dizia tchau, e caminhava, ele vinha atrás e entabulava nova conversa. Novamente me despedia e caminhava; ele me seguia. Era uma situação difícil, pois ele era tão simpático e contava-me coisas históricas sobre o Reno que anotei e escrevo a seguir para vocês. Chegou nosso navio. Na fila, na hora de embarcar, o grupo dele estava à nossa frente, ele me acenou e sua esposa, também uma senhora com cerca de oitenta anos, olhou para mim, deu um tapa no traseiro de seu marido e novamente olhou para mim. Entendi perfeitamente, sem que ela precisasse falar uma palavra: esse homem é meu, não vem com seu canto estranho e forte para cima dele não.
O que ele me disse sobre o Reno e sobre essa região, que separa a França da Alemanha e que no passado as duas nações brigaram por esse rio: nós, alemães, somos apaixonados por esse rio, significa nossa força, nossa liberdade e nossa independência. É por isso que em nossas lendas, os deuses habitam suas margens. Quase apanhei, mas trouxe isso na bagagem.
*Andréa Brunetto é formada em psicologia e atua como psicanalista. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, fundadora do Ágora Instituto Lacaniano de Campo Grande e autora de “Sobre amores e exílios” (Editora Escuta, 2013). Colabora com o MidiaMAIS às quartas-feiras.
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