Desembargador ordenou pagamento de R$ 5,5 milhões a advogada com base em documentos falsos, diz PF

Investigação estranha mudança repentina em decisão de desembargador que liberou valores 37 dias após ter negado pedido

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Desembargador Júlio Siqueira (Divulgação, TJMS)

Afastado desde o dia 24 de outubro por ordem do STJ (Superior Tribunal de Justiça), o desembargador Júlio Roberto Siqueira Cardoso atuou para liberar pagamento no valor de mais de R$ 5,5 milhões com base em notas promissórias que foram comprovadamente declaradas falsas por perícia. As informações constam em relatório de 850 páginas sobre inquérito da PF (Polícia Federal) que apura suposto esquema de venda de sentenças no TJMS (Tribunal de Justiça de MS).

Conforme o documento, há ‘fortes indícios de vendas de decisões’ pelo desembargador, que teria atuado em conluio com o juiz Paulo Afonso de Oliveira, ao liberar o montante sem ‘averiguações necessárias’, conforme aponta a PF.

Consta no relatório que as decisões do juiz e do desembargador “resultaram no pagamento indevido de mais de R$ 5 milhões à advogada EMMANUELLE ALVES FERREIRA DA SILVA, havendo possibilidade de intermediação por FABIO CASTRO LEANDRO [advogado também investigado na operação]”.

O caso apontado pela PF trata-se de uma ação de execução de título extrajudicial que teria sido feito a partir de notas promissórias falsificadas. O pedido foi julgado procedente pelo juiz Paulo Afonso. Ele chegou a ser investigado na época pela corregedoria do TJMS, mas o procedimento foi arquivado. Na época, o juiz alegou ter sido enganado pelo grupo e que agiu de boa-fé. No entanto, a residência do magistrado foi alvo de busca e apreensão, bem como ele também teve sigilo bancário e fiscal levantado.

As decisões do magistrado foram convalidadas pelo desembargador Júlio em recurso que subiu para o Tribunal.

Execução com notas falsas e suspeita de venda de decisão

A ação foi movida por um cliente de Emmanuelle, em 2016, alegando que seis notas promissórias não haviam sido quitadas. Assim, cobrou o pagamento do valor que estava na casa dos R$ 10,2 milhões.

No processo, a outra parte afirmou que não assinou as promissórias e que estaria sendo vítima de uma quadrilha de estelionatários. Inclusive, apresentou boletim de ocorrência registrado na Polícia Civil do Rio de Janeiro, já que alega nunca sequer ter residido em Campo Grande ou conhecer a parte que estava cobrando os valores.

Então, com os valores já bloqueados, a advogada peticionou solicitando a liberação do montante. Diante disso, a parte executada entrou com recurso em segunda instância, em maio de 2018, e conseguiu a suspensão do pagamento em decisão do próprio desembargador Júlio. Ele alegou que haveria alegações de que se tratava de um título fraudulento. “Ou seja, o referido Desembargador entendeu relevante que a execução não prosseguisse em virtude da alegação de falsificação dos documentos que comprovariam o crédito”, destaca trecho do relatório da PF.

No entanto, pouco mais de um mês depois (37 dias depois), a advogada apresenta novo recurso em que o desembargador Júlio Cardoso revogou a própria suspensão, permitindo a execução da dívida. Dessa vez, ele diz na decisão que as alegações de documentos falsos não foram objeto de análise porque o recurso da parte executada foi intempestivo, ou seja, apresentado fora do prazo. “Se retrata de sua decisão anterior sem apresentar qualquer fundamento para tal reviravolta“, diz a PF.

Assim, quatro dias depois, o juiz Paulo Afonso autorizou o bloqueio dos valores novamente. No dia seguinte, é expedida guia de levantamento no valor de R$ 5,5 milhões para Emmanuelle.

As investigações apontam que a falta de justificativas dos magistrados para a decisão é um forte indício da venda de sentença. “Pois, mesmo sem realizar qualquer diligência para verificar a autenticidade dos títulos executivos, cuja falsidade foi alegada pelo executado, determinou que fosse realizado o pagamento de mais de R$ 5 milhões”.

O desfecho do processo se dá após a liberação do pagamento. Três dias depois do despacho do juiz Paulo Afonso liberando os valores, a Polícia Civil expede ofício ao magistrado informando que o documento de confissão de dívida é falso. O mesmo ofício também foi destinado ao desembargador Júlio Cardoso.

Porém, depois disso, o juiz determina a devolução dos valores. Nesse contexto, Emmanuelle acaba presa. No entanto, teria devolvido apenas R$ 2 milhões.

Meses depois, em setembro de 2018, a 5ª Câmara Cível do TJMS, tendo Julio Cardoso como relator, dá provimento ao recurso da parte executada, reconhecendo ‘erro’ judicial. Já em outubro, o juiz Paulo Afonso também reconhece o ‘erro’.

Ligação com suposto intermediador de desembargadores

O que chamou atenção dos investigadores foi a ligação entre Emmanuelle e o advogado Fábio Leandro, que consta como investigado por suspeita de intermediar a venda de decisões.

Três dias depois, a advogada envia um email a Fábio Leandro com assunto ‘documentos alvará honorários’ e um arquivo PDF com o número do processo citado.

Depois, os investigadores encontram uma transferência no valor de R$ 105 mil de Emmanuelle para Fábio, a partir da mesma conta que recebeu os valores da execução judicial.

Por fim, o relatório conclui que: “Há fortes indícios de que as decisões proferidas pelo Juiz PAULO AFONSO DE OLIVEIRA (da 2ª Vara Cível da Comarca de Campo Grande-MS) e pelo Desembargador JULIO ROBERTO SIQUEIRA CARDOSO (da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) ocorreram para benefício financeiro indevido de terceiros, apontando que decorreram de corrupção deles (“venda” de decisões judiciais), pois mesmo sabendo das insistentes alegações da advogada da parte requerida de que as notas promissórias juntadas aos autos eram falsas, determinaram o prosseguimento da execução e o pagamento de mais de R$ 5 milhões a estelionatários“.

Investigados negam

À reportagem do Jornal Midiamax, a advogada Emmanuelle negou as acusações apontadas pela PF. “Não comprei decisão alguma”.

Sobre a ligação com o advogado Fábio Leandro, a advogada diz que enviou valores para a conta dele “pelo fato de que o Coaf bloqueia transações originadas de altos valores como foi o caso, porque desde que o valor entrou na minha conta, inclusive meu próprio banco exigiu comprovação de origem para que eu pudesse movimentar o dinheiro e, assim, sucessivamente”, diz, explicando sobre o porquê enviou a decisão a Fábio Leandro.

Já em relação à situação dos documentos falsos, Emmanuelle se defende: “Não tínhamos simplesmente um devedor alegando que a assinatura não era dele. Estávamos diante de um devedor inidôneo e de um credor até então idôneo – essa era a imagem do devedor no processo, pessoa inidônea capaz de manipular documentos e apresentar diante de um juiz [disse ao citar que a parte contrária apresentou declaração de imposto de renda manipulado para tentar obter o benefício da justiça gratuita]”.

E continua: “No cenário contemporâneo do processo, quando ainda não havia sido revelada (digo inclusive a mim, que acreditava no meu cliente) a farsa do credor, era bem difícil acreditar no devedor e tudo indicava que ele estava criando situações para embaraçar e não pagar o que devia”, diz.

Por fim, diz que “não posso concordar, dentro do cenário contemporâneo dos fatos ocorridos no processo, absolutamente nada que sugira qualquer dúvida acerca dos magistrados […] a realidade não era favorável ao devedor”, conclui, dizendo que, após a comprovação da farsa, “nos posicionamos de forma a reaver a vítima integralmente tudo o que ela havia tido de prejuízo”, conclui.

Já o advogado Fábio Leandro disse à reportagem que “Não existe no inquérito nenhuma conduta minha, nenhuma mensagem telefônica, com qualquer juiz ou desembargador que indique que eu tenha feito qualquer intermediação. Eventual valores na minha conta sequer foram sacados, como já demonstrado para o Ministério Público no ano de 2018. Toda alegação da Polícia Federal já foi objeto de inquérito em 2018, não tendo sido trazido nada novo nas alegações desse inquérito onde foi constado meu nome no STJ. Aliás, na época dos fatos eu fiz questão de juntar extrato da minha conta bancária demonstrando que não houve saques dos valores. Os valores repassados para mim foram comprovadamente utilizados por minha pessoa, com contas particulares minhas”, ressaltou.

Ainda diz que “não existe absolutamente nenhuma prova ou possibilidade de eu ter conhecimento prévio de que os valores seriam de documentos ilegítimos. Aliás, que pela decisão do próprio STJ ficou demonstrado que a própria advogada não sabia”.

O juiz Paulo Afonso também foi procurado pela reportagem, mas não respondeu aos questionamentos até esta publicação. O espaço segue aberto para posicionamento.