Servidores nomeados por políticos no Detran-MS tentaram derrubar delegados e segurar PCMS

Quadrilha foi flagrada em escutas articulando a troca de titulares de delegacias para atrapalhar investigações

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Interceptação foi flagrada pela Polícia Civil (Divulgação, PCMS)

Interceptação de diálogos entre o ex-gerente e o então gerente do Detran-MS (Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso do Sul), Gênis Garcia Barbosa e Joaci Nonato Rezende, flagrou tentativa de destituir delegados responsáveis pelas investigações da Operação Miríade. Os dois são acusados de integrarem quadrilha que inseria informações fraudulentas nos sistemas do Detran-MS.

Após a operação, a Polícia Civil concluiu que “foram interceptados diálogos em que a dupla conspirava pela remoção de servidores e pela destituição dos delegados responsáveis pelas investigações, acreditando que poderiam ter alguma ingerência nos órgãos de Estado”.

Mais ainda, a investigação indicou “crença e tranquilidade na prática das fraudes por parte dos investigados”. A própria conclusão da Polícia Civil indica que o diálogo flagrado foi entre o então gerente do Detran-MS e um ex-servidor, que era considerado foragido e havia sido exonerado da prefeitura em que era vinculado.

Gênis permaneceu foragido até conseguir na Justiça a revogação da prisão preventiva, com substituição por medida cautelar de uso de tornozeleira eletrônica. Ele está proibido de sair de Campo Grande.

O ex-servidor chegou a ser lotado em Sidrolândia, também em cargo comissionado, mas consta rescisão no Portal da Transparência da cidade, em relação ao mês de julho – mesmo mês em que foi divulgada a nota da Polícia Civil.

No entanto, apesar da interceptação, não consta informação de que novos procedimentos foram instaurados para apurar abuso de poder ou tráfico de influência.

O Midiamax acionou o MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) para identificar se houve recomendação ao Detran-MS, quanto aos cargos comissionados. Isso, porque vários dos envolvidos nos crimes apontados pela polícia eram nomeados politicamente.

Até o momento não há resposta do questionamento, feito por e-mail. O espaço segue aberto para manifestação.  

Guardou multa de conhecido em casa

Ainda nas investigações após a operação, os policiais identificaram um auto de infração na casa de Joaci. Segundo a polícia, trata-se de uma multa, aplicada a uma pessoa próxima do ex-gerente do Detran-MS.

Por não ter encaminhado a multa ao órgão competente, o então gerente praticou novo crime. Não foram divulgadas informações dos delegados que teriam sido citados na conversa entre os investigados.

Porém, o Midiamax apurou que tanto o delegado titular de Rio Negro quanto o corregedor do Detran-MS seguem no cargo.

Condutas reiteradas

No decorrer das investigações que levaram até a Operação Miríade, um comunicado interno da Corregedoria do Detran-MS, de 11 de janeiro, indica Joaci como conhecido pela forma fraudulenta como alterava características de veículos no sistema.

Trecho do Comunicado Interno (Reprodução, Inquérito Policial)

É cediço que Joaci, na condição de gerente do Detran de Rio Negro, apresenta condutas reiteradas, no sentido de alterar de forma fraudulenta as características de veículos, sem regular processo CSV, o que essas operações muitas vezes são realizadas em várias cidades, por servidores distintos, o que inclusive motivou uma operação da Dracco, envolvendo um grandioso esquema criminoso”, diz trecho do comunicado.

Outro comunicado, do dia 20 de janeiro, indica suspeita de irregularidades, decorrentes de operações suspeitas, envolvendo 13 veículos diferentes. Documentos do Detran-MS indicam que Joaci teria agido com um despachante, também citado na Operação 4º Eixo, que investiga atuação do ex-gerente do Detran de Ponta Porã.

O que diz a defesa

O Midiamax acionou a defesa dos acusados. Confira a nota na íntegra:

“Com relação à conclusão das investigações da autodenominada Operação Miríade, G. G. B. e J. N. R. por seus procuradores da Wilson Tavares Advogados Associados, dizem em público que confiam no julgamento sempre imparcial do Poder Judiciário, entendendo assim que a hipótese acusatória, sem demérito algum de seu honrado signatário, restará improcedente ao momento apropriado que é ao término do processo penal, porém vêem com preocupação que mesmo com o sigilo decretado no inquérito e processo judicial, existam tantas informações veiculadas nas mídias em geral, inclusive muito antes que a defesa tenha acesso aos processos mesmo tendo de requerer intervenção da OAB/MS para os acessar ante tantos obstáculos, vendo veiculação de informações sempre em descrédito dos réus, alcançarem a população, sinal evidente, ao que nos parece, do uso da lawfare.

O que se vê são direitos fundamentais maculados, há prejulgamento pela população e grande pena antecipada que, sequer sabe-se se virá. Mas e ao final, quem pagará o prejuízo moral e material do réus inocentados? Que perderam seus empregos e funções públicas, muitos até o casamento e família e gastaram o que não tinham com advogados. Alguns destes investigados já foram inocentados em juízo inclusive por esta banca de advogados em outros feitos. Assim, sem imputar qualquer desvio à imprensa, que faz seu trabalho constitucionalmente garantido que, ou levante-se o sigilo e assim a defesa também tenha voz em público sobre os processos ou se apure os vazamentos, que também são crimes tanto quanto os ora investigados e processados, tudo em prestígio às regras do jogo, em paridade de armas e outros princípios constitucionais e processuais penais.”

A reportagem esclarece que os dados foram obtidos a partir de procedimentos que estão abertos e também pela nota da Polícia Civil, que foi divulgada no site da instituição.

Inserção de dados falsos

Servidores nomeados por indicação política teriam se juntado a despachantes e montado verdadeira quadrilha para lucrar com um grande esquema de fraude no Detran-MS. Eles inseriam dados falsos no sistema de registro de veículos.

Apesar de todos os implicados nas investigações terem vínculos públicos com políticos, até o momento as investigações sequer teriam esbarrado em nenhum dos ‘padrinhos’ que colocaram os membros da quadrilha no órgão público sul-mato-grossense. Ainda há procedimentos que correm em sigilo.

Em alguns casos, a suposta ‘blindagem’ do apadrinhamento político teria extrapolado a indicação para cargos no Detran-MS, onde geralmente entram mandando mais, trabalhando menos e ganhando o mesmo que servidores concursados de carreira.

Corrupção sistêmica: fraude no Detran-MS e blindagem

Não é de hoje que o órgão máximo executivo de trânsito em Mato Grosso do Sul, vinculado diretamente à Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), responsável justamente pelo controle dos registros de veículos e condutores em MS, convive com o que alguns servidores de carreira chamam de ‘corrupção sistêmica’.

Assim, mesmo após flagrados nos esquemas de fraude no Detran-MS, alguns estariam supostamente atuando para minimizar as ‘implicações do escândalo’.

Gênis Garcia Barbosa, por exemplo, também foi gerente da unidade do Detran-MS em Rio Negro. Ele se tornou alvo da Operação Miríade, em junho deste ano. Os indícios do envolvimento e os riscos de ele atrapalhar o andamento das investigações eram tantos que Gênis chegou a ter um mandado de prisão expedido contra ele.

No entanto, a polícia de Mato Grosso do Sul, submetida à mesma Sejusp que o Detran-MS, nunca conseguiu cumprir o mandado contra Gênis.

Assim, enquanto esteve ‘foragido’, o ex-servidor nomeado conseguiu revogar o pedido de prisão preventiva. Conforme o advogado Wilson Tavares, a defesa entendeu que o pedido de prisão foi ilegal.

Com a nova decisão da Justiça, Gênis passa a cumprir medidas cautelares.

Entre elas, o comparecimento mensal em Juízo, e o uso de tornozeleira eletrônica por 90 dias, podendo ser prorrogado, com raio de monitoramento para Campo Grande, onde justamente estariam os principais contatos e ‘padrinhos’ da quadrilha.

Histórico de flagrantes prova: fraude no Detran-MS nunca parou

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Detran-MS (Henrique Arakaki, Midiamax)

O esquema de propinas e fraude no sistema de cadastro do Detran-MS foi denunciado antecipadamente em reportagem do Núcleo de Jornalismo Investigativo do Jornal Midiamax em 2020. Na época, a Operação Gravame confirmou as denúncias e até chegou a alguns servidores.

No entanto, a corrupção não parou dentro do Detran-MS. Alterações em características e fraude na documentação de veículos que nunca estiveram em Mato Grosso do Sul geraram investigação de servidores.

Desta vez, um inquérito policial foi instaurado em janeiro deste ano, após boletim de ocorrência ser registrado contra o então gerente do Detran-MS em Rio Negro. Trata-se do ex-prefeito da cidade, Joaci Nonato Rezende.

Ele aparece no Portal da Transparência do Detran-MS como ‘comissionado em regime geral’ no cargo de Diretoria Intermediária e Assessoramento, com o CCA13. Em julho, ainda segundo os dados oficiais do Governo de MS, Joaci teve um salário líquido (depois de todos os descontos) de R$ 3.703,60.

O que o inquérito aponta é que contra Joaci já havia diversos procedimentos administrativos abertos. Também que movimentações no sistema do departamento aconteciam sem amparo legal. Com o último procedimento, contra Joaci foi expedido mandado para usar tornozeleira eletrônica.

Rede de apadrinhados: fraude no Detran-MS em várias cidades

Um dos ‘serviços’ que a quadrilha oferecia era a inclusão do 4º eixo em automóveis de carga como carretas, sem que o veículo sequer passasse por Mato Grosso do Sul. Desta forma, passava a contar apenas na documentação a alteração nos caminhões.

Em troca da ‘economia’, os donos dos veículos pagavam propina que era distribuída entre os servidores e despachantes da quadrilha.

Além de Joaci, foram citados neste caso um servidor e também o ex-gerente do Detran-MS em Ponta Porã, Renato de Oliveira Saad, alvo da mais recente operação, a Operação 4º Eixo.

Renato Saad aparece pela última vez na lista de salários de dezembro de 2022, quando, segundo dados oficiais do Governo do Estado, recebeu R$ 6.903,30 de remuneração líquida no cargo de Direção Executiva e Assessoramento, também como ‘servidor comissionado no regime geral’.

Apesar de lotados em cidades diferentes, os ex-servidores se valiam de suas funções para cometerem as fraudes no Departamento de Trânsito de MS, aponta trecho do inquérito.

O inquérito aponta para ao menos 10 veículos com fraudes nos registros, relacionados com inclusão de 4º eixo. Só nestes documentos, aparecem servidores de três cidades.

São eles Joaci, de Rio Negro, Renato, que atuava em Ponta Porã, e Agner Fabre, de Miranda. Chamado em 2022 para prestar esclarecimentos na delegacia, ainda em fases de investigação, Joaci permaneceu em silêncio sobre as acusações.

Em fevereiro deste ano, outra investigação também teria relacionado fraudes, com alteração de características de um veículo, por servidor de Sidrolândia. Outras ligações entre Joaci apontam também para o ex-gerente do Detran-MS em Juti, Adriano Passarelli.

Adriano foi alvo da Operação Resfriamento, do Dracco (Departamento de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado). Ele não foi encontrado naquele dia 9 de novembro de 2022, permanecendo foragido.

Em decisão mais recente, conforme apontado pela defesa, feita pelo advogado Douglas Figueiredo, Adriano não chegou a ser denunciado. Além disso, o mandado de prisão foi revogado pelo Judiciário, “por não preencher os requisitos para a preventiva”.

Exonerados e suspensos após flagras de corrupção e fraude

Após as investigações e operações, os servidores foram exonerados ou tiveram as atividades suspensas do Detran-MS. Gênis foi exonerado do cargo que ocupava, comissionado, em 9 de dezembro de 2020.

Cargo mais recente ocupado por Gênis foi na Secretaria Municipal de Saúde em Sidrolândia. No Portal da Transparência consta rescisão, em julho deste ano. Ele ocupava cargo comissionado.

Não foi possível, pelo Diário Oficial da Assomasul (Associação dos Municípios de Mato Grosso do Sul), identificar a data da rescisão. Procurada pela reportagem, a prefeita de Sidrolândia Vanda Camilo (PP) se limitou a dizer que “portal da transparência é justamente pra isso”.

Joaci foi suspenso do exercício da função pública, com validade a contar de 29 de junho, conforme medida imposta nos autos da Operação Miríade. Na mesma data, foi publicada a suspensão do servidor Abner Fabre, que atuava no Detran-MS em Miranda.

(Reprodução, DOE)

Segundo dados do Portal da Transparência, Abner aparece como ativo nos quadros, com salário de julho em valor de R$ 3.323,82.

As suspensões são assinadas pelo atual presidente do Detran-MS, Rudel Espíndola Trindade Junior.

Já Renato de Oliveira Saad, alvo da Operação 4º Eixo, foi exonerado em março deste ano. A publicação é assinada pelo atual secretário de Estado de Governo e Gestão Estratégica, Pedro Arlei Caravina.

Adriano Passarelli teve a suspensão da função pública anunciada já neste ano, também por decisão judicial, de 15 de dezembro de 2022. Na decisão, foi determinada medida cautelar diversa da prisão para o ex-gerente do Detran-MS.

Os vencimentos do servidor suspenso são de R$ 4.067,73, também segundo dados divulgados no sistema público de Transparência do Governo do Estado.

Em nota, a defesa de Gênis e Joaci declarou que “Como membro do sistema de Justiça criminal, a defensoria particular de G. G. B. e J. N. R. levada a efeito por Wilson Tavares Advogados Associados, esclarece publicamente que restará, ao fim e ao cabo, patente a inocência de ambos na respectiva ação penal, sendo porém vedado, neste momento, publicitar outros elementos de convicção, ante o sigilo decretado no inquérito e processo.”

Já a defesa de Renato, feita pelo advogado Maurício Cândia, afirmou que “Em momento oportuno estaremos comprovando a inocência do mesmo e apresentando as provas cabíveis. Não posso antecipar os argumentos de defesa”.

O Midiamax também acionou o Detran-MS via e-mail oficial, mas não teve retorno até o momento sobre a atuação perante as investigações que resultaram na Operação Miríade. A defesa de Abner e o servidor não foram localizados até o momento. O espaço segue aberto para manifestações.

Despachantes investigados

Além dos servidores do Detran-MS, despachantes de Mato Grosso do Sul aparecem nas investigações. A princípio, seriam eles os responsáveis pelo pagamento da propina a servidores no esquema de fraude no Detran-MS, para que o esquema fraudulento funcionasse.

Na última operação, tanto a Polícia Civil quanto o MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) pediram a prisão de servidores e vários despachantes. No entanto, só foram deferidos os mandados de busca e apreensão.

Ex-gerente do Detran-MS em Ponta Porã, Renato Saad acabou preso em flagrante, sendo solto com pagamento de fiança.

Operações flagram ‘corrupção sistêmica’ no Detran-MS

Equipe do Dracco na Operação Resfriamento (Divulgação, PCMS)

Em novembro de 2022, foi deflagrada a Operação Resfriamento, pelo Dracco. Nas investigações, a polícia identificou o grupo que captava clientes, proprietários de veículos irregulares, para que estes fossem regularizados, mas de forma indevida.

Após a captação dos clientes e pagamento pelo serviço, o despachante encaminhava os documentos para o grupo integrado pelos dois servidores de Juti. Estes então inseriam os dados falsos no sistema do Detran-MS.

Além de pagamentos diretos entre o grupo despachante e o grupo político, que se aproximam de meio milhão de reais, também eram realizadas transações financeiras. Com o auxílio dos operadores financeiros, mais de R$ 17 milhões foram movimentados pela organização.

Em 14 de junho deste ano, foi deflagrada a Operação Gravame, que teve uma servidora do Detran-MS e despachantes como alvos. Os mandados foram cumpridos em Campo Grande e Bela Vista.

Da mesma forma, o grupo investigado inseria dados falsos no sistema do Detran-MS. Carros e caminhões de outros estados eram encaminhados para transferência de unidade da federação ou de propriedade na agência de Bela Vista.

Em seguida, com a participação da servidora, os cadastros eram alterados, mesmo os veículos nunca terem circulado e nem terem sido apresentados para vistoria.

Outra fraude constatada foi a transferência de carretas para a inclusão fraudulenta do 4º eixo nas especificações do veículo. Esse procedimento normalmente depende até mesmo de um engenheiro e de aprovação pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia).

Operação Miríade

Já na Operação Miríade, foram cumpridos mandados em Rio Negro, Campo Grande, Sidrolândia e Miranda. Foi identificado o ex-funcionário do Detran, que, mesmo exonerado dos quadros da instituição, agia com o grupo e era responsável pela captação e aliciamento de outros funcionários para a prática criminosa.

Este ex-funcionário seria Gênis, exonerado anos antes do cargo comissionado. Só em Rio Negro, 8 pessoas foram veiculadas pelo envolvimento com as operações fraudulentas realizadas pela agência.

Por último, na Operação 4º Eixo, novamente os investigados são acusados de fraudes, por inserirem dados falsos nos sistemas. O ex-gerente de Ponta Porã teria inserido os dados, alterando características dos veículos.

Foi detalhada a atuação em conjunto entre os servidores do Detran-MS e os despachantes. Um destes despachantes já responde por furto de veículos, roubo de propina, falsidade ideológica e uso de documento falso.

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