MP quer reformar sentença que manteve contrato do Consórcio Guaicurus em Campo Grande
Recurso aponta depoimentos que evidenciaram favorecimento em licitação
Renata Portela –
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Na segunda-feira (14), o MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) ingressou com recurso de apelação, para reformar a sentença que manteve o contrato do Consórcio Guaicurus, que explora concessão do transporte coletivo em Campo Grande desde 2012. A decisão é de 21 de julho.
O promotor Fabio Ianni Goldfinger, da 30ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, cita a Operação Riquixá, do MPPR (Ministério Público do Paraná), que identificou a organização criminosa envolvida no esquema.
Assim, colaborador chegou a expor em depoimento o ajuste feito pelos agentes, para fraudes nas licitações de empresas de ônibus. Outro delator ainda confirmou que houve direcionamento na licitação.
“Não há como conferir legalidade a um edital de licitação que já nasceu eivado de vícios”, aponta o promotor. Ele ainda alega que manter o contrato fere princípios do interesse público.
“O Consórcio Guaicurus ‘venceu’ a licitação, firmou o contrato com o Município de Campo Grande e, nos dias atuais, presta o serviço de forma precária, insatisfatória e deficiente, motivo pelo qual não há outra saída para o impasse senão a declaração de nulidade do contrato outrora ajustado”, pede a acusação.
Com isso, o MP requer que o recurso seja conhecido e provido para reformar integralmente a sentença que manteve o contrato com o consórcio.
Sentença
Conforme a decisão, o juiz Ariovaldo Nantes Corrêa, da 1ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos, negou os pedidos feitos pelo MPMS, com possibilidade de reexame da sentença.
O contrato bilionário do Consórcio Guaicurus foi alvo de ação civil pública, com pedido de anulação. Para o juiz, não houve nenhum tipo de vantagem na licitação. “Não bastasse o que até aqui se expôs, não se pode ignorar que à época dos fatos o próprio requerente, por seu então representante, e outros órgãos de fiscalização foram convidados a participarem do processo de licitação a fim de que pudessem trazer suas contribuições para a lisura da disputa, sendo que na ocasião, em que pese a ampla publicidade dada à concorrência, nenhum deles ou mesmo outros interessados impugnaram o edital por qualquer desses supostos vícios que ora são levantados nesta ação”, diz a sentença.
“O Consórcio sempre esteve seguro da plena legalidade da licitação e do contrato de concessão; espera agora a união de todos, em especial do poder público, visando sempre atender bem a população da cidade morena”, citou o advogado André Borges, que representa o consórcio.
Cenário caótico
Para a 30ª Promotoria da Comarca de Campo Grande, o contrato bilionário do Consórcio Guaicurus deveria ser anulado. Em parecer solicitado pela Justiça, o promotor Fábio Goldfinger apontou cenário ‘nitidamente caótico’.
Ele ainda destacou que, mesmo vencedor do processo licitatório de 2012, o Consórcio ainda “não conseguiu satisfazer a população” e que, ainda, o processo licitatório tem indícios de corrupção desde antes de ter sido lançado.
“O Consórcio Guaicurus apenas sagrou-se vencedor da Concorrência nº 082/2012 pois sua vitória já tinha sido previamente ajustada (ou comprada, visto que efetuou pagamentos ao escritório de Sacha Reck e Guilherme Gonçalves para que estes, em contato com o Município de Campo Grande, providenciassem seu êxito na licitação fraudulenta)”, apontou na manifestação do MPMS no processo.
O promotor disse que o município afirma que a licitação ocorreu dentro das normas legais, mas aponta a colaboração premiada de Marcelo Maran. “Com o esquema previamente ajustado, a LOGITRANS era contratada, justamente, para fixar condições no edital que direcionassem o certame para a vitória das empresas patrocinadas por Sacha Reck”, disse Marcelo.
Ainda foi apontada na colaboração premiada “que o escritório recebeu 12 parcelas de R$ 18.000,00 desta empresa [Consórcio Guaicurus], recebido através da pessoa jurídica com a primeira em 24/01/2011”. Assim, o promotor defendeu que a “licitação já ‘nasceu’ nula, haja vista que desde a formulação de seu edital houve manipulação para que uma empresa já pré-determinada, sangrasse vencedora, no caso do município de Campo Grande/MS, a empresa escolhida foi o ‘Consórcio Guaicurus’”.
Durante defesa da anulação do contrato, o promotor ainda destacou “diversos problemas de atrasos e fazendo com que os cidadãos tenham que se socorrer de carros particulares para conseguirem chegar aos seus destinos”. Conforme a licitação, o Consórcio deve faturar cerca de R$ 3,4 bilhões durante os 20 anos do contrato firmado.
Restrição à competitividade
Ouvido em 28 de junho durante julgamento, Daniel Carlos Silveira — na época Superintendente da Controladoria Regional da União em MS — foi questionado pelo juiz Ariovaldo Nantes Corrêa, da 1ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos, sobre resultados de uma nota técnica que avaliou a licitação.
Daniel afirmou que “tinha problemas de direcionamento ou restrição à competitividade, na época”. Novamente o juiz questionou em que consistiam os problemas, e ele respondeu que achava que eram de “restrição à competitividade”.
Ouvido no mesmo dia, Geraldo Antonio Silva de Oliveira — Auditor Federal de Finanças e Controle, que assinou a nota técnica formulada pela CGU — foi indagado sobre as notas técnicas. Geraldo disse que “critérios de julgamento que deveriam ser objetivos e nesse trabalho foi levantado que eles se apresentavam subjetivos”.
Além disso, disse que existia uma atribuição de pontuação, ou seja, eram dados pontos para empresas que cumprissem uma promessa futura. Ele explicou que o compromisso poderia ser cumprido ou não pela empresa vencedora.
Disse ainda ao juiz que não há entendimento legal que permita as promessas futuras. “A gente está falando de uma licitação, e se depois de x dias, depois de declarado o resultado, celebrado o contrato, aquele compromisso não é cumprido, o que faz a administração pública? Qual a providência? Por isso o critério tem que ser objetivo”, apontou a fragilidade durante a oitiva.
Modelo da licitação
Geraldo disse que o modelo de licitação utilizado não foi o ideal “porque a lei de concessões ela estabelece alguns critérios e a técnica e preço seria mais aplicado a obras públicas”. Para concessão, “teria uma tarifa fixa, então acabou que a análise apontou que não seria o mais adequado”, pontuou.
Após o juiz questionar qual seria o modelo mais adequado, Geraldo admite que: “O adequado seria o menor preço de tarifa ou a maior proposta de valor de outorga”.
A promotora de Justiça Bianka Machado Arruda Mendes representou o MPMS no julgamento iniciado em junho e questionou se havia direcionamento na licitação para empresas que já tinham estrutura, assim como o Consórcio Guaicurus.
“Os critérios acabaram por beneficiar as empresas que detinham contrato anterior, que já tinham uma estrutura na cidade, já tinham talvez estrutura de recursos humanos, então houve essa facilidade ou de obtenção máxima de pontos”, disse Geraldo.
Outro fator que favorece o Consórcio foi apontado por Luiz Henrique Gomes da Silva de Rezende — Auditor Federal de Finanças e Controle, que atuou como chefe de serviço. “Lembro do aproveitamento da mão de obra, que era um dos critérios da nota técnica, o que salvo engano existiria uma facilidade maior do Consórcio que já operava o serviço porque ele já teria grande parte da sua força de trabalho com vínculo empregatício”.
Luiz também disse que “O Auditor-Geral fez a análise do edital e apontou isso como uma suposta impropriedade que seria contrária tanto à lei n. 8.666”. Durante a oitiva de Luiz, o promotor ainda questionou sobre o critério de que a empresa deveria atuar no ramo há 10 anos para pontuar no processo licitatório.
“Salvo engano o auditor geral colocou no trabalho que não houve essa justificativa, o porquê dessa necessidade de dez anos”, disse.
Irregularidades apontadas pelo promotor
Houve ainda a necessidade de que as empresas participantes tivessem que pagar R$ 3 mil para obter o edital. “Quando uma licitação é viciada, significa dizer que os interesses da sociedade foram violados”, apontou o promotor.
O promotor ainda ressaltou que “há irregularidades na licitação posto que esta foi moldada para que só uma empresa coubesse naquele certame, atendendo a todos os requisitos impostos, mormente porque tiveram exigências que apenas o Consórcio Guaicurus atenderia, de qualquer forma”.
Durante a oitiva de Marcelo Luiz Bonfim do Amaral — diretor da Agereg (Agência de Regulação de Campo Grande) —, foi citado o aplicativo do Consórcio para informar o momento em que os ônibus passam no ponto. No entanto, o Ministério aponta que o “aplicativo é mal avaliado na plataforma, sendo atribuído a ele nota 3,9, com diversos comentários negativos, e funcionando apenas para o sistema operacional Android”.
O diretor da época também citou o preço cobrado pelo passe de ônibus. O Ministério, por sua vez, disse que “o valor aumentou consideravelmente, sendo criticado pelos cidadãos campo-grandenses, os quais obtiveram como resposta do Consórcio Guaicurus que tal valor se justifica em razão das ‘dificuldades financeiras’ enfrentadas pelo grupo”.
No decorrer do processo, o Município de Campo Grande disse que “tão importante quanto a modicidade das tarifas é que seja prestado um bom serviço à população, justificando a escolha administrativa”. Contudo, o MPMS indica que “a própria população campo-grandense diariamente se vê desamparada pelo Consórcio Guaicurus e pelo Município de Campo Grande, para a piora da situação, sofre com o aumento desarrazoado das passagens”.
Parecer favorável à anulação
Ainda foi apontado no parecer que os documentos entregues em envelopes fechados aparentam obedecer todas as formalidades exigidas. No entanto, o promotor indicou que “procedimento licitatório, desde o edital, propostas de preços, etc., já havia sido construído documentalmente para dificultar o descortinamento do direcionamento do certame”.
Ou seja, haveria intenção de dificultar a descoberta das irregularidades escondidas no processo. Assim, o promotor salienta que “o procedimento licitatório pode ser revogado em qualquer uma dessas etapas ou anulado até mesmo após o regular encerramento de certame homologado”.
Por fim, por meio do promotor, o MPMS “requer a procedência da presente da demanda” do processo que pode anular o contrato com o Consórcio Guaicurus.
O mesmo promotor foi responsável pelo parecer, também favorável, de processo que corre no 2º grau. Fábio Ianni Goldfinger se posicionou contra o pedido do Consórcio para adiar a ação civil para após os 20 anos de contrato, ou seja, somente após 2032.
O promotor destacou que a decisão foi “proferida com base nas mais abalizadas notificações jurídicas aplicáveis à processualística cível e segundo a melhor hermenêutica de nosso ordenamento jurídico, valendo por seus próprios e irrefutáveis fundamentos”.
Ele cita diversas decisões de ministros, dentre elas uma relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, em julgamento de 2019. Para o promotor, as ilegalidades de um ato jurídico podem ser “judicialmente questionadas enquanto vigente o contrato”.
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