Seis anos após o escândalo nacional da Operação Sangue Frio denunciar à Justiça quadrilha por supostamente desviar recursos para tratamento de pacientes com câncer em Mato Grosso do Sul, profissionais da saúde e empresários que vendem insumos para radiologia suspeitam que recentes manobras estariam ‘reeditando' o esquema flagrado em 2013.

O objetivo, de novo, seria usar a terceirização e direcionar para cofres particulares recursos públicos milionários do Ministério da Saúde encaminhados para Mato Grosso do Sul custear um dos serviços médicos mais caros: o tratamento oncológico.

Os principais envolvidos na prestação do tratamento radiológico confirmam que há mudanças em andamento. Com um equipamento doado pelo Ministério da Saúde, e capacidade para atender até 100 pacientes, o herdou todos os contratos de radioterapia do SUS regulados na região de Campo Grande.

Filantrópica, a unidade recebe atualmente R$ 1,1 milhão ao mês do Estado para manter o aparelho e atender 77 pacientes. Agora, admite que já está em estágio avançado o estudo para terceirizar parte do serviço.

A ‘herança' dos tratamentos e da verba do SUS coincide com o final do contrato entre a Santa Casa de Campo Grande e a Clínica Radius, sucessora da NeoRad, clínica que foi pivô do escândalo em 2013, com diretora flagrada em vídeo até mandando funcionários tratarem pacientes com câncer com doses menores de medicamentos de altíssimo custo, supostamente para aumentar os lucros.

Hospital herda verba do SUS para radioterapia em MS, mas deve entregar parte para 'ex-Neorad'
Cadastro no CNES ainda aponta Radius como NeoRad

À época, a clínica foi vendida pelo antigo dono, o médico Adalberto Siufi, para um grupo de médicos mineiros que administra atualmente o local. No entanto, o grupo usa o mesmo CNPJ e razão social no CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde), do Ministério da Saúde. Apenas nas especificações que a razão social da empresa foi alterada. A data de registro do cadastro da empresa é de 2007.

O contrato entre a ‘ex-NeoRad' e a Santa Casa existia desde 2007 e os repasses do Estado para a clínica, via convênio do SUS, também. Por poucos meses em 2010 a parceria foi rompida, mas logo em seguida, retomada. Somente na semana passada que a Santa Casa deixou de encaminhar os pacientes para realizarem a radioterapia pela Radius, abrindo mão do repasse de R$ 500 mil do Estado que, segundo a assessoria do Hospital, eram dados ‘na íntegra' à Clínica.

O secretário de estado de Saúde, Geraldo Resende (PSDB) confirma que a intenção da SES (Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do Sul) é fazer o Hospital do Câncer terceirizar parte da radioterapia para a clínica particular. Para isso, serão repassados mais R$ 500 mil ao Alfredo Abrão em convênio que deve ser formalizado até 15 de agosto, segundo ele. “Dá para aumentar o atendimento no Hospital do Câncer também. Vai ampliar o horário de atendimento, vamos estudar as possibilidades para atender mais pacientes”, disse.

Tudo adiantado no Hospital do Câncer

Mesmo com a previsão de recebimento de um acelerador linear para o HRMS (Hospital Regional de Mato Grosso do Sul) para que o tratamento já estivesse disponível para a população desde maio deste ano, desde 2017 o governo do Estado tem equipado o hospital filantrópico para migrar parte do serviço da radioterapia, segundo o titular da SES.

A unidade recebe por mês R$ 650 mil via convênio para custear o acelerador linear recebido por doação do Ministério da Saúde e após tratativas de parlamentares, inclusive dele mesmo, à época, no mandato como deputado federal por Mato Grosso do Sul.

De acordo com a SES, o total do convênio é de R$ 15,4 milhões distribuídos em 24 meses para construção do subsolo da unidade, UTI e 1º andar. São mais R$ 500 mil para manutenção da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e outros serviços.

Os R$ 500 mil a mais a serem repassados para o Alfredo Abrão pagar a Radius serão retirados da Santa Casa, sendo R$ 250 mil de R$ 2 milhões recentemente suplementados em recursos de despesas gerais para ortopedia e serviços diversos, incluindo radioterapia, e outros R$ 250 mil repassados desde 2007 para custear os tratamentos na unidade.

“A previsão do Estado é de que no final de 2020 os sete andares estejam prontos. O compromisso do Hospital do Câncer é entregar já no início de 2020 três andares, o sexto e sétimo para transferirmos o Cetoi (Centro de Tratamento de Oncologia Infantil) do HRMS ( de Mato Grosso do Sul) e um outro andar somente de centro cirúrgico. Todo o tratamento completo, desde cirurgia, quimioterapia, tudo será feito no Alfredo Abrão. Esse é o cenário que a gente quer desenhar”, explicou.

O diretor-geral do Hospital do Câncer, Marcelo Santos Souza, informou ao Jornal Midiamax que, além dos 77 pacientes atualmente atendidos, 15 fazem exames preparatórios para iniciar a radioterapia na máquina, com capacidade para 100 pacientes.

Caso todos sejam habilitados, o Hospital filantrópico só teria 8 vagas disponíveis para atender o convênio com a Secretaria Estadual de Saúde. Este seria, segundo profissionais ouvidos pela reportagem, o motivo para ‘justificar' a contratação da clínica particular.

“Nós temos até o dia 15 de agosto para chegar a uma conclusão sobre isso. Existe essa possibilidade de contratar uma outra empresa para auxiliar no atendimento aos pacientes, mas estamos estudando essa contratualização”, confirma Marcelo.

Parte mais lucrativa da Oncologia

‘É um esquema de terceirização da terceirização, que concentra a parte mais lucrativa da oncologia com os médicos que controlam a radioterapia', explica um médico que também atua no setor em Campo Grande.

A reportagem entrou em contato com a Clínica Radius para se manifestar sobre o assunto. Por telefone, a administradora da unidade admitiu que a clínica quer fazer contrato com o Hospital do Câncer para poder atender a demanda da radioterapia e desafogar a fila de espera.

A Radius citou que a Defensoria Pública de MS afirma a existência de demanda reprimida e que somente o atendimento do Hospital do Câncer não seria suficiente. Isso justificaria a contratação direta do hospital filantrópico, feita com dinheiro público, da clínica particular para atender pacientes via SUS. A administradora afirmou que encaminharia uma nota oficial à reportagem, mas até o momento da publicação o documento não foi enviado. Também repassou o contato, por telefone fixo, do advogado oda clínica, que não foi localizado pela reportagem.

No HRMS, tudo atrasado

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Secretário Geraldo Resende (Minamar Júnior, Midiamax)

Atualmente, a obra do bunker doado pelo Ministério da Saúde para o HRMS receber o acelerador linear para o Estado retomar a radioterapia após o escândalo nacional deflagrado na Operação Sangue Frio, em 2013, que desmontou um esquema formado pela administração para desaparelhar o sistema de saúde pública e beneficiar terceirizações, está suspensa por 120 dias.

Segundo Resende, o Ministério da Saúde informou que teve problemas por questões técnicas no contrato com a empreiteira que realiza esta e a obra de outras sete unidades do país. Segundo o Jornal Midiamax apurou, também estão suspensas a construção do bunker do Hospital Estadual de Bauru (SP), Geral de Rondônia, Vitória da Conquista (BA), Tarquínio Lopes Filho (MA), Santo Antônio, em Sinop (MT), São Francisco de Assis, em Jacareí (SP) e Regional de Presidente Prudente (SP).

Com previsão inicial para ser entregue em maio deste ano e atualizada em junho pelo Ministério da Saúde para entregar em abril de 2020, a suspensão do contrato vai atrasar novamente a instalação do bunker no Regional. O secretário não descarta o uso do acelerador doado, mas afirma que o contrato com o Hospital do Câncer Alfredo Abrão deve ser mantido mesmo após o funcionamento da radioterapia via SUS.

“Para o Hospital Regional nós temos que construir um Plano Estadual de Oncologia, em conjunto com os 79 secretários municipais de saúde. Isso para que a gente faça regulação completa, desde a prevenção até os tratamentos para as pessoas portadoras de patologias da área”.

Resende explicou o aparelhamento do hospital filantrópico, apesar da perspectiva de o serviço ser oferecido pelo hospital do Estado.

“O hospital filantrópico hoje trabalha muito melhor que o hospital direto, o Regional e o da UFMS, que não têm a produtividade e o resultado que o SUS precisa. A gente precisa de formas diferentes de governar, para que a gente saia desses problemas crônicos”, defendeu o Secretário de Saúde, Geraldo Resende.

O secretário afirma estar em contato com o Ministério da Saúde para que Dourados volte à fila para receber também um acelerador linear. O serviço na cidade é feito também por terceirização.

“Houve um retrocesso enorme na oncologia em Dourados. É um processo que se arrasta há dois anos, até do Poder Judiciário, que pediu processo de licitação dentro do serviço de oncologia. Em lugar nenhum do país tem. Isso é pactuação dos gestores. Dentro dos próximos dias o Ministério deve abrir novamente chamado para os municípios que querem receber esses aceleradores e nós vamos indicar Dourados”, esclareceu.

E, apesar de Corumbá e Três Lagoas também terceirizarem a radioterapia atualmente no Estado, as cidades não serão indicadas pelo governo.