Com 35 expulsões de alunos e mais de 20 brigas judiciais somente nos últimos 6 anos, as ações afirmativas da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) enroscam em um sistema de cotas complexo, que chega ao cúmulo de funcionar ao contrário: em até 76,57% das turmas do último ano, por exemplo, ao menos uma das pontuações mínimas para os cotistas precisou ser maior que a da ampla concorrência.
Ou seja, na maioria das turmas, pelo menos um dos estudantes negros, pardos, índios ou com baixa renda que optaram pelas vagas reservadas acabou prejudicado.
Com 40% das vagas reservadas para o vestibular que está com inscrições abertas até o dia 17 de novembro, e também com a possibilidade de ingresso pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada), as regras da UFMS para acesso por cotas foi alterado pela última vez em 2017, aumentando de quatro para oito as modalidades.
No entanto, a mudança refletiu no aumento da nota de corte para o ingresso de alunos que concorreram às vagas das ações afirmativas. Os números apontam que em 7,6 de cada 10 turmas, ao menos uma das notas mínimas para os cotistas conseguirem entrar precisou ser maior que a pontuação de corte para os alunos da ampla concorrência.
O levantamento foi feito com exclusividade pelo Jornal Midiamax, por meio de dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação que serão tratados em série de três reportagens sobre a implementação das cotas na maior universidade de Mato Grosso do Sul.
A UFMS adota o sistema desde 2013, após determinação da Lei 12.711/12. Em 2018 e 2019, a estratificação ampliou para dez as modalidades de cotas (confira ao final da matéria gráfico com cada uma das cotas implementadas ao logo dos anos na UFMS, somados dados das seleções via Sisu e dos vestibulares).
Pobres, deficientes, negros, pardos e indígenas
Desde a implantação, a quantidade de inscrições em ampla concorrência caiu, aumentando as inscrições nos quatro tipos de cotas existentes até 2017 para pretos, pardos indígenas oriundos de escolas públicas e com renda familiar até 1,5 salário mínimo, ou independente dela.
As cotas garantiram crescente inscrições à política afirmativa até o ano de 2017. Instrumento de inclusão social e reparação de uma dívida histórica, a ação afirmativa tem necessariamente caráter temporário e deve ser revisada em 2022.
Porém, antes do prazo, a Universidade incluiu no sistema de cotas as pessoas deficientes e também separou da cota de negros e pardos os indígenas. E ampliou ainda a possibilidade de um negro ou pardo deficiente e também de indígenas deficientes terem um tipo de cota específica.
Distorções no Sisu
Ao mesmo tempo, o novo modelo usado pela Universidade não ampliou o acesso, por exemplo, de alunos aos cursos mais concorridos, como Medicina e Direito, mas gerou distorções principalmente nos campus do interior do Estado nos cursos com menor concorrência, levando-se apenas em conta a seleção realizada por meio do Sisu.
No levantamento, a maior distorção aconteceu na seleção do Sisu 2018 de Verão, quando das 111 turmas ofertadas, ao menos uma das dez notas de cotistas precisou ser mais alta que a da ampla concorrência em 85 turmas, ou seja, 76,57% do total. Em 13 turmas, todos os cotistas tiveram que ter nota de corte maiores que os da ampla concorrência.
Foram os casos de, por exemplo, cursos como os de Ciências Sociais – Bacharelado, no campus de Campo Grande; Turismo – Bacharelado, no campus de Aquidauana; Psicologia – Bacharelado, no campus do Pantanal; Letras (Português e Espanhol – Licenciatura) e História (Licenciatura) no campus de Três Lagoas.
Na seleção pelo Sisu de Verão em 2017, do total de 97 turmas, em 69 ao menos uma das estratificações de cotas precisou ter nota maior que a ampla concorrência. Na seleção de Inverno, das 12 turmas com vagas, oito registraram ao menos uma turma com nota maior que a das inscrições fora das cotas. Em 2019, quando foi feita apenas uma seleção pelo Sisu, 61,60% das turmas registraram ao menos uma nota de cota maior que ampla concorrência para que o aluno conseguisse passar.
Menos piso, mais teto
Nesses casos, as distorções fazem a Lei de Cotas deixar de ser um piso para a inclusão social e virar um teto, como demonstrado na pesquisa de Verônica Toste Daflon, João Feres Júnior e Luiz Augusto Campos: “O desempenho dos cotistas no Enem: Comparando as notas de corte no Sisu”, de 2014.
Os pesquisadores analisaram dados que demonstraram que se na maioria dos cursos a cota serve para garantir o ingresso de seus beneficiários, em alguns cursos tem ocorrido o oposto e pleiteantes às cotas que obtiveram melhor desempenho que os não-cotistas não têm conseguido ingressar na universidade.
Ou seja, ao invés de funcionar como um piso garantidor de uma presença mínima dos cotistas, o modelo das cotas implantado nas instituições de ensino federais pela Lei 12.711 acaba por funcionar como um teto, limitador para essa presença.
Por exemplo, antes da estratificação, no Sisu 2017 de Verão, foram abertas inscrições para 97 turmas. Dessas, 69 turmas registraram ao menos uma nota de corte de cotistas maior que a da ampla concorrência, o que representa 71,13% das turmas. Desse total, em 22 turmas todas as categorias de cotas precisaram ter notas maiores que as da ampla concorrência. No entanto, eram apenas quatro os tipos de cota oferecidos na Universidade.
À época, as cotas previstas eram para L1 (alunos com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo), L2 (pretos, pardos ou indígenas com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo), L5 (alunos que tivessem estudado integralmente em escola pública durante o Ensino Médio) e L6 (pretos, pardos ou indígenas independentemente da renda).
Foram os casos de cursos como, por exemplo, Farmácia, Fisioterapia, Filosofia, Letras (Português e Espanhol – Licenciatura), Pedagogia – Licenciatura (Campus do Pantanal), Sistemas de Informação (Bacharelado Noturno) e Administração (Bacharelado Noturno) ambos em Três Lagoas e Enfermagem – Bacharelado em Coxim.
Cotas muito específicas e mais confusão
A UFMS disponibilizou até 14 tipos de cotas nos processos seletivos via processo seletivo próprio ou Sisu. No vestibular de 2018, quando 30% das vagas da Universidade foram destinadas para este tipo de ingresso, o edital lançado no 1º dia de dezembro de 2017 informava a abertura de dez tipos de cotas.
Três dias depois, a informação foi retificada, diminuindo para o número para oito. Tempo suficiente para que 35 inscrições fossem realizadas de forma errada, segundo os dados obtidos junto à Universidade pelo Jornal Midiamax.
Além disso, quatro cotas apresentaram número baixo de inscrições. A L9, destinada a deficientes com renda familiar igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, com 16 inscrições; a L10, para deficientes pretos, pardos ou indígenas com renda familiar igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, com 13 inscrições, assim como a L13, para deficientes independentemente da renda e a L14, com 10 inscrições, para deficientes independentemente da renda.
Ao todo, foram 52 inscrições para disputar um total de 97 vagas. Para a cota L9, foram disponibilizadas 5 vagas; para a L10, 60 vagas; para a L13, apenas uma vaga, em Medicina e para a L14, 31 vagas. Todas as vagas não preenchidas seguem para o processo seletivo de vagas remanescentes da UFMS.
UFMS nem respondeu
A reportagem entrou em contato com a Universidade para poder discutir a implantação sistema de cotas e se há previsão na mudança das regras e da implementação até o final do prazo da ação afirmativa, em 2022, quando deverá obrigatoriamente ser revista pelo Governo Federal, mas não obteve retorno.
Elaborada pelo MEC (Ministério da Educação) e sancionada em agosto de 2012, a Lei nº 12.711/2012 garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos.
A outra metade vagas permanece para ampla concorrência e só adere ao sistema de cotas quem quer.
Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Infografia Deyvid Guimarães