‘Erro' regimental estaria protelando decisão até aposentadoria

Investigado por participar do suposto esquema de que atingiria todos os poderes em Mato Grosso do Sul e foi revelado em 2010 pelo então deputado estadual Ary Rigo, o ex-procurador-geral de Justiça Miguel Vieira continua atuando no MPE-MS (Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul), apesar da pena de demissão recomendada pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).

Os trâmites para cumprir a decisão tomada no ‘Conselhão' já se arrastam há quatro anos. E um detalhe técnico, a ausência de pressuposto processual válida no cargo, é que ‘segura' o desfecho do caso. A situação é considerada até por membros do MPE-MS como uma ‘manobra' para que o ex-chefe do órgão se mantenha no cargo até que se aposente.

[ Inserido em 30 de março de 2011: Segundo informação recebida da ASMMP (Associação Sul Matogrossense de Membros do MP) após a publicação original desta notícia, e omitida na resposta oficial da Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso do Sul aos questionamentos jornalísticos prévios, o procurador de justiça Miguel Vieira da Silva completou os requisitos legais para sua aposentadoria voluntária por tempo de contribuição em 8 de fevereiro de 2011 ]

Segundo juristas, a raiz da suposta ‘manobra' está exatamente nos dispositivos jurídicos criados para proteger a atuação do ministério público de ataques como a corrupção ou a interferência política. “Não se pode simplesmente chegar e demitir um membro ministerial. Isso deixaria muito fácil armarem, por exemplo, para se livrar de um promotor ou procurador atuante. Por isso há um trâmite para que um deles perca o cargo público”, explica um advogado que analisou a situação de Miguel Vieira a pedido da reportagem.

Assim, apesar do pedido do CNMP, órgão nacional que zela pela atuação eficiente e ética dos membros do Ministério Público, a perda do cargo do ex-chefe do MPE-MS está condicionada a uma ação civil proposta na Justiça pelo então procurador-geral de Justiça Humberto Brittes.

O também-ex-chefe do MPE-MS propôs a ação, mas ela não foi acatada pelo TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) por não seguir o regimento do próprio Ministério. A falha é considerada “grosseira e oportuna” por juristas, além de estar protegida pelas atribuições ministeriais de quem assina tudo. Por isso, reforça as suspeitas de que seria ‘intencional' para adiar a demissão (dar tempo) de Miguel até ele se retirar do exercício (se aposentar) sem expor mais o órgão.

Segundo a recusa no TJMS, antes de acionar a Justiça, o pedido de demissão deveria ter recebido a anuência do Colégio de Procuradores do órgão ministerial estadual, que não aconteceu. Mas, ao invés de corrigir o erro demonstrado pelo desembargador relator do procedimento, Luiz Tadeu Barbosa Silva, o processo foi remetido assim mesmo às instâncias superiores e está em análise no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Na defesa, Miguel Vieira alega inexistência da condição da procedibilidade prevista em lei, conforme alega o Ministério, afirmando que “a decisão do CNMP não revoga a Lei Complementar Estadual e, muito menos, detém o poder de abrir exceção à regra procedimental ali estampada, de natureza garantista e que não pode ser relativizada”.

O próprio procurador aponta falhas dos colegas no MPE-MS para se defender, pois alega não ter sequer sido intimado durante o procedimento administrativo aberto pelo órgão.

“Numa análise fria, é difícil acreditar que não haja a intenção explícita de uma manobra procrastinatória que, neste caso, privilegiaria o ex-PGJ. Infelizmente, até leigos optariam por refazer o procedimento para o próprio TJMS julgar e a pena ser aplicada. Mas é uma escolha que cabe ao gabinete do Procurador-Geral. Infelizmente, há pouco que possamos fazer”, lamenta um promotor de Justiça que comentou a situação sob condição de sigilo.

O Jornal procurou o Procurador-Geral de Justiça, Paulo Cézar dos Passos, para falar sobre a situação do processo. Pela assessoria, o gabinete negou que haja o equívoco apontado pelo TJMS na recusa da ação. “O adotou as providências determinadas pelo CNMP e entende que não existe qualquer equívoco, pois, conforme se vê da dicção do artigo 130-A, da Constituição Federal, a determinação do órgão de controle externo não pode ser contrastada por órgão que por ele é controlado”, diz a nota.

Corrupção, fraude, improbidade e tráfico de influência

Consta na decisão do CNMP sobre Miguel Vieira, ex-chefe do Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul, que “há provas de que ele recebeu dinheiro para acobertar ilícitos praticados pelo então prefeito de Dourados, Ari Valdecir Artuzi”, em esquema de corrupção e fraude em licitações públicas desarticuladas pela Operação Owari, da Polícia Federal.

Na época, o próprio Miguel Vieira chego a assinar e divulgar nota oficial do MPE-MS contra o sigilo na Operação Owari, dizendo que o órgão tinha provas documentais sobre o caso, conforme noticiou o Midiamax e replicou o site oficial da ASSMPMS (Associação Sul-Mato-Grossense de Membros do Ministério Público). Boa parte das denúncias veio a público durante a Operação Uragano, também da Polícia Federal.

“Escutas ambientais autorizadas judicialmente e depoimentos de testemunhas comprovam que ele, enquanto era procurador-geral de Justiça do Mato Grosso do Sul, interferiu no trabalho de membros do Ministério Público com o objetivo de atender interesses de governantes e, assim, receber vantagens, o que configura tráfico de influência. Além disso, como ele recebeu vantagem patrimonial em razão do cargo que ocupava, também ficou comprovada a improbidade administrativa”, são os relatos no Conselho sobre Miguel Vieira.

‘Ilegalidade ou excesso de prazo'

A Corregedoria do CNMP informou ao Jornal Midiamax que pode interferir apenas nas questões em que seja constatada alguma ilegalidade ou excesso no prazo de atuação do Ministério.

“No tocante ao acompanhamento de decisões, nos casos em que há a aplicação da penalidade de demissão, considerando a vitaliciedade conferida aos membros do Ministério Público – garantia Constitucional que condiciona a perda do cargo ao trânsito em julgado de sentença judicial –, a competência do CNMP cinge-se à aplicação indireta da pena de demissão, ou seja, limita-se a determinar ao chefe do respectivo ramo ou unidade ministerial que proponha a competente ação para a perda do cargo, nos termos da lei”, explica.

Na prática, quando o ex-PGJ Humberto Brittes propôs a ação, equivocada ou não, se blindou contra o ‘Conselhão', que agora poderia atuar apenas disciplinarmente se configurada ilegalidade na atuação. “Após a propositura da ação, está exaurida a competência do CNMP, não remanescendo possibilidade de interferência deste Órgão sobre os andamentos e resultados do processo judicial proposto na origem, salvo, sob o aspecto disciplinar, se constatada alguma ilegalidade ou excesso de prazo na atuação do Membro do MP”, esclarece.

Segundo análise de membros do MPE-MS e de juristas que avaliaram o caso, as atribuições do PGJ no exercício da função e o fato de oficialmente o MPE-MS já ter atuado com a ação, equivocada ou não, afastariam as duas situações.

“Assim, o acompanhamento realizado pelo CNMP está adstrito a verificação da efetiva propositura da ação civil pública pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça, considerando que a responsabilidade pela tramitação e o resultado do procedimento perante o Poder Judiciário transborda das atribuições e competências deste Conselho. As demais questões dizem respeito à interpretação e a aplicação de entendimentos e teses jurídicas que devem ser enfrentadas e decididas pelos órgãos jurisdicionais e autoridades administrativas competentes à luz dos casos concretos”, conclui a corregedoria do CNMP.