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Polícia

PF investiga relação entre suicídio de fiel e Testemunhas de Jeová em Mato Grosso do Sul

Suicida teria sido desassociado do grupo, condição que o isola do convívio social entre os adeptos da religião
Celso Bejarano -
Caso é investigado pela PF. (Reprodução, Google Street View)


A PF (Polícia Federal) investiga a morte de Paulo Amaro Freire, que teria tirado a própria vida aos 54 anos, após supostamente ter sido submetido a trabalho análogo à escravidão a mando de pessoas ligadas ao grupo religioso conhecido como Testemunhas de Jeová. A PF entrou no caso a pedido do MPF (Ministério Público Federal).

Antes da tragédia em dezembro de 2023, o homem teria sido “desassociado” do grupo religioso, procedimento que, entre as Testemunhas de Jeová, anula o convívio social de seus seguidores, incluindo a exclusão do círculo familiar do fiel.

Em documentos registrados em cartório, os quais o Jornal Midiamax teve acesso, a família de Freire afirma que o grupo, cujos líderes religiosos são chamados de anciãos, teria influenciado na morte do homem.

A tragédia ocorreu em , cidade sul-mato-grossense situada a 300 km de Campo Grande, já na divisa com o estado de .

Quem era Paulinho

Conforme a família, Paulo Amaro Freire, nascido em 19 de dezembro de 1969 — com 8 irmãos e a mãe, já aos 90 anos de idade — soube aos 18 anos que era paciente esquizofrênico, um distúrbio mental que afeta homens e mulheres em proporções semelhantes, normalmente entre os 15 e 25 anos.

Em depoimento registrado no cartório, a família narra que Paulinho era:

“… apaixonado pela família, natureza, ciclismo, pelos amigos, por música e arranhava algumas canções no violão e participou de campeonatos de antes do desenvolvimento da doença, inclusive chegou a ficar em segundo lugar num desses campeonatos. Na verdade, não havia como supor que Paulo possuísse tal patologia, pois não diferia em quase nada dos considerados normais”.

Depois do diagnóstico, Paulinho passou a ser medicado por psiquiatra e, por duas vezes, teve de ser internado. Apesar da enfermidade, que causa delírios e alucinações no paciente, Paulinho seguiu a vida de modo normal. Teve empregos e dois filhos.

Aos trinta e poucos anos de idade, separou-se da companheira e logo se aposentou.

A irmã mais velha era sua curadora, pessoa nomeada por um juiz para representar e defender os interesses de Paulo. Isso porque Paulinho era tido como incapaz, condição em que uma pessoa, embora tenha habilidade de entender a ilicitude do seu ato e de se determinar de acordo com esse entendimento, tem essa capacidade parcial ou totalmente reduzida.

Mudanças de comportamento

Paulinho, católico praticante desde criança, trocou de religião enquanto mantinha relação amorosa com a segunda mulher, adepta da religião Testemunhas de Jeová. Ele participava das reuniões e, desde então, abandonou o catolicismo, irmãos e mãe.

A partir daí, embora contrariando o desejo da família, Paulinho exercia expedientes em empresas dominadas pelas Testemunhas de Jeová. Embora formado em Mecânica Industrial, Paulinho exercia outras funções, com pouca ajuda financeira, incluindo nas tarefas a instalação de cercas na área rural.

Sob protestos da família, segundo depoimento anotado no cartório, “Paulinho não podia ser submetido a jornadas intensas de estudos bíblicos, trabalhos de ‘campo’ (pregação) e trabalhos pesados, com o uso de máquinas de solda (elétricas) para as instalações de cercas”.

Ainda conforme o registro no cartório, a família queixou-se:

“Apenas pão, alimento deixado pelo sr. Jonatan [que seria o ancião dos Testemunhas de Jeová], sendo que, diante dos serviços pesados que fazia, ele [Paulinho] precisava de alimentos substanciais. Eles colocavam Paulo para fazer serviços que ele nunca tinha feito, por exemplo fazer cerca, cavar terra no sol quente, etc.

A essa altura, Paulo, que sempre foi uma pessoa que falava muito e era alegre, mal conseguia falar. Sua voz era um sussurro. Foram assim seus últimos dias. Enfraquecido, Paulinho foi levado com urgência ao . A médica pediu uma bateria de exames, constatou descompensação devido a alimentação inadequada, e recomendou uma nova dieta com máxima urgência, o que foi providenciado pela família.

Paulo era constantemente chamado pelas lideranças THIAGO, JONATAN, NEIL, MARCIA (‘in memorian’), VANESSA, ITAGIBA, entre outros, que menosprezavam a família, e se valiam de argumentações doutrinário-religiosas para persuadi-lo. Eles são versáteis em lavagem cerebral”.

Ou seja, pelo escrito no documento, Paulinho, ainda que diagnosticado com esquizofrenia, era submetido a um regime parecido ao classificado como situação análoga de escravo. Era forçado a cumprir expedientes pesados e ainda obrigado a assistir rituais religiosos.

Veja trecho de depoimento da mãe de Paulinho:

Descoberta suspeita

Em outro trecho do documento registrado em cartório, a família fala sobre uma descoberta importante, veja:

“No dia do suicídio do Paulo, o líder da instituição e sua esposa Alice, estiveram na casa da nossa família e conversaram com ele no portão, uma espécie de assunto segredoso, mas não entraram. Quando a tutora [Fátima, irmã de Paulinho] saiu para convidá-los a entrar, eles se retiraram ao perceber que ela se aproximava. Levaram um volume grande, como fossem pacotes, entregue por Paulo.

Ao ser questionado pela irmã sobre o que eram naqueles pacotes, ele desconversou. Toda a família achou estranho esse episódio, pois nunca houve visita do ancião [líder maior] na casa do Paulinho, e saiu rapidamente ao perceber a aproximação da irmã Fátima (Tutora). Justamente nesse dia Paulinho cometeu o suicídio à noite. A família deseja saber, também, qual era o objetivo dessa visita e o que foi conversado.

Conforme depoimento do ancião, Paulo foi expulso (dissociado do grupo religioso). Após o seu falecimento, em seu quarto, em sua pasta de documentos e papéis foi descoberto pela família que ele tinha um documento intitulado ‘Diretivas Antecipadas e Procuração para Tratamento de Saúde’ registrado em cartório, nomeando um procurador dessa doutrina para não receber sangue em caso de necessidade, e se estivesse inconsciente, sendo este o sr. ITAGIBA ROBERTO JUNIOR [ancião] para realizar os encaminhamentos, se necessário. Esse documento foi feito sem o consentimento da curadora [irmã de Paulinho], sem o conhecimento da família, mesmo sabendo que Paulinho era semi-imputável”.

Irmão de Paulinho, professor universitário:

Adeptos da religião, as Testemunhas de Jeová não aceitam transfusões de sangue por motivos religiosos. Acredita-se, dizem, que o sangue é sagrado e representa a vida, sendo, portanto, proibido para consumo ou utilização em procedimentos médicos, de acordo com suas interpretações bíblicas. Essa recusa é baseada em versículos do Velho e Novo Testamento que falam sobre a abstenção de sangue.

O que representa a desassociação para as Testemunhas de Jeová

Anos atrás, numa publicação do jornal O Globo, uma Testemunha de Jeová narrou o quanto sofreu ao passar pelo processo conhecido como desassociação, ou seja, expulsa do grupo, feito que ocorreu com Paulinho, de Bataguassu.

Diz o texto:

Para algumas ex-testemunhas de Jeová, abandonar a crença não significa apenas abrir mão de uma religião, mas também se afastar de entes queridos. Em muitos casos, amigos e familiares são orientados a cortar todos os laços com essas pessoas, as levando ao isolamento e, em casos extremos, até a pensamentos suicidas.

“Não falo com ninguém da minha família. Não temos nenhum contato, porque eu me ‘desassociei'”, conta Sarah (nome fictício) ao programa Victoria Derbyshire, da BBC.

A “desassociada” diz que o motivo teria sido sua recusa em continuar em um relacionamento abusivo. Sarah afirma que seu parceiro na época era violento, e chegou a quebrar suas costelas.

Fazer denúncias à polícia — e envolver pessoas de fora da religião em questões assim — é algo muito desencorajado entre testemunhas de Jeová, explica a jovem.

Código Moral

Sarah afirma que os fiéis mais velhos se recusaram a punir seu ex-companheiro pelo comportamento violento. Foi apenas quando seus colegas de trabalho notaram seus machucados e a convenceram a não se submeter mais aos abusos que ela deu fim ao relacionamento.

O que diz o comando das Testemunhas de Jeová

Denner Antunes, o porta-voz regional das Testemunhas de Jeová, solidarizou-se à família de Paulo e disse que todos os integrantes da direção do grupo religioso “ficaram tristes” com a situação.

O episódio — suicídio no caso — era fato desconhecido entre eles, informou Antunes.

Já quanto à investigação conduzida, inicialmente, pela Polícia Federal, será acompanhada pelo grupo, disse o porta-foz. Ao contrário do informado pela família de Paulinho, ele “não teria sido desassociado” da religião, sustentou Antunes, embora papéis achados no quarto em que o homem se matou apontem que sim, que Paulinho tinha sido destituído por razões desconhecidas.

O porta-voz informou ainda que os seguidores da religião estudam o assunto, o suicídio, no caso, por este site aqui: https://www.jw.org/pt/ensinos-biblicos/perguntas/pensamentos-suicidas-quero-me-matar/#link0

Num dos trechos consultados pela reportagem, aparece uma mensagem, que diz:

Eu quero morrer — Será que a Bíblia pode me ajudar se estou tendo pensamentos suicidas?

A resposta da Bíblia

Sim! A Bíblia vem de “Deus, que consola os desanimados”. (2 Coríntios 7:6) Embora a Bíblia não seja um livro sobre saúde mental, ela já ajudou muitos a superar pensamentos suicidas. Os conselhos práticos encontrados nela podem ajudar você também.

Eu quero morrer — Será que a Bíblia pode me ajudar se estou tendo pensamentos suicidas?

Que conselhos práticos a Bíblia dá?

●Fale sobre os seus sentimentos.

O que a Bíblia diz: “O verdadeiro amigo ama em todos os momentos e se torna um irmão em tempos de aflição.” — Provérbios 17:17.

O que esse versículo quer dizer: Nós precisamos da ajuda de outros quando estamos lutando contra pensamentos ruins.

Se não falar com outros sobre o que está sentindo, você pode chegar ao ponto de não conseguir mais suportar esses sentimentos negativos. Mas, se você se abrir com um amigo, esses sentimentos podem ficar mais fracos e você talvez até consiga ter um ponto de vista diferente da sua situação.

Defesa da família

Enio Martins Murad, e professor de Direito, é quem atua na defesa da família Amaro Freire. Antes de o MPF pedir a investigação, parentes de Paulo disseram que eles informaram o caso à Polícia Civil, que não levou o caso adiante.

*As imagens e os nomes foram divulgados com a autorização dos parentes e do advogado da família.

Como pedir ajuda

Segundo o Ministério da Saúde, há várias formas de procurar ajuda. Pensamentos e sentimentos de querer acabar com a própria vida podem ser insuportáveis e pode ser muito difícil saber o que fazer e como superar esses sentimentos, mas existe ajuda disponível.

Onde buscar ajuda:

  • CAPS e Unidades Básicas de Saúde (Saúde da família, Postos e Centros de Saúde);
  • UPA 24h, Samu 192, Pronto-Socorro; hospitais;
  • CVV (Centro de Valorização da Vida) – 188 (ligação gratuita);
  • GAV (Grupo Amor Vida) – O GAV presta um serviço gratuito de apoio emocional a pessoas em crise através do telefone 0800 750 5554, sem identificador de chamadas. Horário de funcionamento: 07:00 às 23:00, inclusive sábados, domingos e feriados. Também é possível pedir ajuda por e-mail: precisodeajuda@grupoamorvida.ong

O CVV realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone, e-mail, chat e voip 24 horas, todos os dias.

As ligações para o CVV em parceria com o SUS, por meio do número 188, são gratuitas a partir de qualquer linha telefônica fixa ou celular.

Também é possível acessar www.cvv.org.br para chat, Skype, e-mail e mais informações sobre ligação gratuita.

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