Há um ano, em 9 de outubro de 2024, era sancionada a Lei Federal 14.994, que tornou o feminicídio um crime autônomo no Código Penal e fixou penas de 20 a 40 anos de prisão. Nesse período, a Justiça em Mato Grosso do Sul condenou ao menos três pessoas considerando a mudança na legislação.
Apesar do avanço na punição, autoridades e especialistas defendem outras medidas para combater o feminicídio. Essas ações vão além da segurança pública, e incluem a conscientização de jovens e crianças já na escola.
Recentemente, o governo de Mato Grosso do Sul lançou o programa Protege, que tem entre as atividades ações de conscientização nas escolas por meio dos grêmios estudantis. Nos últimos meses, o Estado implementou mudanças nas políticas de atendimento às vítimas de violência doméstica, após a repercussão do caso Vanessa Ricarte.
Lei foi assinada por Lula, Tebet e Cida Gonçalves
O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva sancionou esta lei no dia 9 de outubro de 2024. O texto foi publicado no dia seguinte no DOU (Diário Oficial da União), quando passou a valer. Também assinam a lei duas personagens de Mato Grosso do Sul: a ex-ministra das Mulheres, Cida Gonçalves – que deixou o cargo em maio de 2025 -, e a ministra do Planejamento, Simone Tebet.

Na época, Cida avaliou que a nova lei é importante porque “traz elementos para que de fato nós possamos ter um país sem feminicídio, sem impunidade e garantir a vida e a segurança de todas as mulheres do Brasil”.
A primeira condenação no Brasil considerando a nova lei foi confirmada em fevereiro de 2025, em que um réu no Distrito Federal foi condenado a 43 anos de prisão.
Professora de Direito avalia que pena maior não impede feminicídios
Professora do curso de Direito da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Rejane Alves de Arruda explica que um ano atrás, o feminicídio era uma qualificação do crime de homicídio, ou seja, apenas um agravante do assassinato.
“Podemos dizer que existem três modificações que são importantes, que foram trazidas por essa lei. Primeiro, que o crime de feminicídio ganhou um tipo penal autônomo. Isso quer dizer que agora eu tenho o artigo 121-A, que fala especificamente sobre o feminicídio”, explica.
O segundo ponto é que a pena se tornou a mais alta do Código Penal. “Antes, nós tínhamos o homicídio qualificado, pelo caso de haver violência de gênero, com uma pena de 12 a 30 anos. Agora, nós temos o crime de feminicídio com uma pena que varia de 20 a 40 anos, a pena mais alta do Código Penal”, prossegue.
Rejane ainda destaca que o novo tipo penal torna as estatísticas mais claras. “O feminicídio ganhou uma visibilidade que, até então, ele não tinha nas estatísticas. De tal forma que é possível agora diferenciar o que é homicídio e o que é homicídio cometido contra a mulher, sobre a perspectiva de gênero”, conclui.
Apesar disso, a especialista alerta que a pena maior não impede que os crimes continuem.
“É o que a gente chama de direito penal simbólico. O direito penal age sempre que existem demandas de natureza social. Só que ele não tem o condão de fazer com que os crimes diminuam. Então, isso quer dizer o quê? Que há necessidade da realização, por parte do Estado, de políticas públicas, né? Que, necessariamente, combatam as causas desses delitos e não apenas o efeito”.

Caminho para reduzir crimes é educação, avalia professora
A professora frisa que, como o aumento da pena não impede o crime, o Poder Público deve investir em políticas públicas de prevenção ao feminicídio.
“Temos instituído no ano de 2023 o chamado Pacto Nacional de Prevenção do Feminicídio. E ali existe uma série de diretrizes que os Estados, os municípios e a própria União devem seguir para a prevenção do crime de feminicídio. Isso começa com a conscientização nas escolas e na própria sociedade. O incentivo à tolerância, o incentivo ao respeito, principalmente às diversidades que possam existir entre homem e mulher”, pontua.
No Agosto Lilás de 2023, o governo federal lançou esse pacto, que teve o plano de ação publicado um ano depois. São R$ 2,5 bilhões em recursos para 73 medidas, divididas nos eixos estruturante e o tranversal.
O primeiro eixo é composto por três formas de prevenção à violência contra mulheres: primária, secundária e terciária, sendo elas:
- Forma primária: evitar a violência mudando crenças e comportamentos, promovendo respeito e não tolerância à discriminação.
- Forma secundária: ações para evitar a repetição e o agravamento da violência de gênero, como repasses a casas de acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica ou em situação de risco.
- Forma terciária: diminuir os efeitos da violência, garantindo direitos como saúde, educação, segurança, justiça, trabalho, entre outros.
Já o eixo transversal é dividido em produção de dados (ampliação de notificações de violência de gênero, por exemplo) e criação de normas e outros documentos. Mato Grosso do Sul aderiu ao pacto em agosto de 2024.
Para Rejane, é essencial que a vítima seja acolhida e até mesmo o autor dos crimes contra a mulher sejam amparados, para evitar que ele volte às práticas criminosas.
“É importante ainda lembrar que há necessidade de um acolhimento, de uma assistência para a vítima de violência doméstica. E, além disso, uma recuperação, um investimento na recuperação daquele que pratica o crime. Até mesmo para que ele não volte a reincidir. Sempre que se aplica uma pena no direito penal, nós temos que perceber que ela tem uma finalidade de prevenção. Mas também tem uma finalidade de recuperação. Prevenir que outros fatos aconteçam, mas também recuperar aquele que já praticou a infração penal”, pontuou.
A professora conclui alertando as mulheres de que observem o comportamento dos companheiros e se afastem assim que possível.
“É importante que a mulher, antes de mais nada, se conscientize do que é uma violência psicológica. Porque tudo começa com a violência psicológica. E que ela verifique os primeiros traços de agressão, às vezes um empurrão, um puxão de cabelos, um xingamento. E ainda, a mulher deve verificar a necessidade real de pedir uma medida protetiva e consequentemente, se afastar do agressor”, orienta.
E tendo a medida protetiva, a vítima deve redobrar os cuidados. “Não é porque a mulher pediu a medida protetiva que ela não tem que tomar cuidados. Porque o Poder Público não está muitas vezes dentro da casa dela, não está no bairro dela. Então, a partir do instante que ela faz o pedido de medida protetiva, ela não tem que considerar que apenas o estado vai protegê-lo, mas que também ela tem que tomar precauções para evitar uma violência maior”, diz Rejane.
Com programa baseado em pacto nacional, Estado avança no combate à violência contra mulher
Em junho de 2025, o governo de Mato Grosso lançou o Protege — Programa Estadual de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. A implementação foi feita exatamente como o Pacto Nacional, com dois eixos.
A coordenadora estadual da Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, Carla Stephanini, explicou que o programa já está sendo implantado. Os Ceamcas (Centros Especializados de Atendimento à Mulher, à Criança e ao Adolescente em Situação de Violência) já receberam recursos para deixar a cargos de 12 municípios a gestão do complexo.
Além disso, a SEC (Secretaria de Estado de Cidadania) está desenvolvendo ações de conscientização nas escolas por meio dos grêmios estudantis.
“Nas nossas mais de 300 escolas estaduais, os grêmios estudantis vão receber um incentivo financeiro para desenvolver as ações de conscientização, primeiro reconhecendo que existe um problema que tem que ser enfrentado por toda a sociedade e em todos os momentos da nossa vida, inclusive pelos jovens,que é a questão da violência contra as mulheres”, destaca Carla.
Ela cita que a violência doméstica já aparece em casais de jovens, daí a importância dessas ações nas escolas.
“Temos observado que adolescentes e jovens, já nas primeiras relações afetivas, demonstram essa relação de posse e poder sobre as meninas e por isso a importância também de agirmos preventivamente e de forma que essa conscientização esteja presente também entre os jovens, meninos e meninas”, disse.
O projeto começou nas escolas de Campo Grande e deve alcançar todo o Estado nos próximos meses.

Programa estadual reforçou atendimento às vítimas de violência doméstica, em meio às mudanças na Deam
Questionada sobre as mudanças no protocolo de atenção às vítimas de violência, impostas após a repercussão do caso Vanessa Ricarte, a coordenadora elencou todas elas e citou que Mato Grosso do Sul tem uma rede de proteção muito ampla quando comparada a outras unidades da Federação.
Em fevereiro de 2025, a jornalista Vanessa Ricarte foi morta pelo noivo, o músico Caio Nascimento. Antes de morrer, ela contou em áudios enviados a uma amiga que considerou o atendimento da Casa da Mulher Brasileira frio. Isso levou à troca de delegadas e várias mudanças no atendimento do complexo.
Carla cita o concurso da PCMS (Polícia Civil de MS) como medida para reforçar o efetivo da Deam (Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher) e o convênio com o Poder Judiciário.
“Esse termo de cooperação entre o Poder Executivo Estadual e o Tribunal de Justiça está vigente. Além disso, veio o fortalecimento da tecnologia entre Polícia Civil e Poder Judiciário em relação aos registros de boletim de ocorrência, solicitação de medida produtiva, chegando de forma muito mais imediata ao Poder Judiciário. A Lei Maria da Penha já prevê a concessão da medida protetiva em 48 horas e Mato Grosso do Sul sempre teve tempo bem menor, considerando que nós tínhamos desde 2015 uma vara apenas para conceder medidas”, detalhou.
Foi instalada a 4ª Vara de Violência Doméstica, que ampliou o julgamento dos pedidos. E com o Protege, as políticas de acolhimento às vítimas ganharam ainda mais força.
“O Protege vai abarcar outras políticas públicas na transversalidade a exemplo da assistência social com o programa Recomeços, onde aquelas mulheres que estão sob risco de morte, passaram pelo atendimento da Casa da Mulher Brasileira, receberam uma medida produtiva e não tem um lugar seguro possam ser encaminhadas, mediante critérios, para a Casa Abrigo e lá ela vai receber todo o acolhimento devido para reestruturar a vida, e ao sair, ela recebe, mediante critérios, um auxílio expressivo, de aproximadamente R$ 5 mil, para que elas tenham uma nova moradia”, conclui.
Onde foram as primeiras condenações pela nova legislação sobre feminicídio?
O TJMS não informou ao Jornal Midiamax quantas condenações foram dadas até o momento seguindo a nova lei. Em levantamento feito pela reportagem, há pelo menos três nos últimos meses em Campo Grande.
Em 20 de agosto de 2025, Diego Pires de Souza, de 37 anos, foi condenado a 31 anos e 6 meses de prisão pelo feminicídio qualificado da mãe Mariza Pires, 66, na casa da família no Parque Residencial União, em dezembro de 2024.
Diego confessou ter golpeado a mãe com uma pá. Os golpes foram tão intensos, que ela teve o nariz quebrado, fraturou parte do crânio e sofreu lesões no rosto, “Nossa família está mais tranquila, sabendo que ele vai pagar pelo que fez. Ele tentou, de certa forma, amenizar a pena confessando e usando a questão de drogas”, disse Alfredo Gomes, irmão do réu e filho da vítima.
No dia 21, Claudinei Aparecido da Silva, de 29 anos, foi condenado a 37 anos de prisão pelo feminicídio da ex-esposa Lucilene Freitas dos Santos, 33, no Jardim Presidente, em outubro de 2024. O réu disparou um tiro na região da cabeça, após um churrasco que celebrava o aniversário de um dos filhos do casal. No júri, Claudinei disse que a arma disparou acidentalmente.
Em 22 de agosto, Jefferson Nunes Ramos foi condenado a 38 anos e 3 meses de prisão pelo feminicídio de Giseli Cristina Oliskowski, em março deste ano, no bairro Aero Rancho. Mãe de quatro filhos, Gisele foi jogada em uma espécie de fossa e queimada viva nos fundos de uma casa.
📍 Onde buscar ajuda em MS
Em Campo Grande, a Casa da Mulher Brasileira está localizada na Rua Brasília, s/n, no Jardim Imá, 24 horas por dia, inclusive aos fins de semana.
Além da Deam, funcionam na Casa da Mulher Brasileira a Defensoria Pública; o Ministério Público; a Vara Judicial de Medidas Protetivas; atendimento social e psicológico; alojamento; espaço de cuidado das crianças – brinquedoteca; Patrulha Maria da Penha; e Guarda Municipal. É possível ligar para 153.
☎️ Existem ainda dois números para contato: 180, que garante o anonimato de quem liga, e o 190. Importante lembrar que a Central de Atendimento à Mulher – 180 é um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres em todo o Brasil, mas não serve para emergências.
As ligações para o número 180 podem ser feitas por telefone móvel ou fixo, particular ou público. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, inclusive durante os fins de semana e feriados, já que a violência contra a mulher é um problema sério no Brasil.
Já no Promuse, o número de telefone para ligações e mensagens via WhatsApp é o (67) 99180-0542.
📍 Confira a localização das DAMs, no interior, clicando aqui. Elas estão localizadas nos municípios de Aquidauana, Bataguassu, Corumbá, Coxim, Dourados, Fátima do Sul, Jardim, Naviraí, Nova Andradina, Paranaíba, Ponta Porã e Três Lagoas.
⚠️ Quando a Polícia Civil atua com deszelo, má vontade ou comete erros, é possível denunciar diretamente na Corregedoria da Polícia Civil de MS pelo telefone: (67) 3314-1896 ou no GACEP (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial), do MPMS, pelos telefones (67) 3316-2836, (67) 3316-2837 e (67) 9321-3931.