Jornalista pós-graduada, independente financeiramente, conhecedora da legislação, servidora pública do MPT (Ministério Público do Trabalho). O feminicídio da jornalista Vanessa Ricarte, em fevereiro deste ano, é uma das muitas evidências de que não existe um perfil de vítima e que basta ser mulher para estar suscetível a violências de gênero.
O caso também trouxe à tona vários questionamentos sobre o atendimento e acolhimento prestado pelas autoridades para as vítimas de violência doméstica, em Campo Grande. Isso porque, dias após a sua morte, áudios gravados por Vanessa e enviados para uma amiga apontaram falhas no atendimento recebido por ela na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher).
Caio Nascimento, o seu ex-noivo, a esfaqueou três vezes na região do tórax. Posteriormente, ela foi levada em estado gravíssimo à Santa Casa, onde faleceu.
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Vanessa
A repercussão do caso foi amplificada após áudios gravados pela jornalista antes de morrer apontarem falhas no atendimento que ela teria recebido quando procurou ajuda na Casa da Mulher Brasileira. Isso escancarou fragilidades no atendimento prestado pela instituição em Campo Grande e levaria, em algumas semanaas, ao início de uma reestruturação interna, especialmente na Deam.
A partir daí, e pela primeira vez em Mato Grosso do Sul, o debate sobre a violência de gênero teve dimensão ampliada, alcançando os serviços de amparo e acolhimento às vítimas de violência doméstica e provocando a revisão de protocolos dispensados às mulheres.

Na terceira reportagem especial da série Agosto Lilás, em alusão aos 19 anos de criação da Lei Maria da Penha, o Jornal Midiamax traz relatos e reflexões sobre aprimoramentos necessários no acolhimento de vítimas de violência de gênero no Estado. A reportagem também atendeu ao pedido das vítimas de violência que concordaram em conceder depoimentos e substituirá seus nomes.
Acolhimento ‘frio’
Poucos dias antes de ser assassinada a facadas pelo ex-companheiro, a jornalista procurou ajuda na Casa da Mulher Brasileira, onde solicitou informações sobre andamento da medida protetiva. Contudo, ela voltou para casa sem escolta, o que teria criado o cenário da agressão que lhe roubou a vida.
A decisão de permitir o retorno sem proteção foi questionada por autoridades federais e colocou em xeque os protocolos adotados pela delegacia, num debate que ultrapassou as divisas de Mato Grosso do Sul. A mesma queixa denunciada em áudios que Vanessa enviou para uma amiga, contudo, ressoa no depoimento de outras vítimas.
Paula
No final do ano de 2024, a servidora pública municipal Paula* decidiu por fim ao ciclo de violência que vivia. Mas, ao procurar ajuda e acolhimento, afirma ter encontrado um sistema ‘frio’. Ela também relata dificuldades enfrentadas para conseguir a medida protetiva contra o seu agressor.
Paula* entrou em um relacionamento que, em menos de dois meses, começou a ruir, quando ela sofreu a primeira agressão física. Após compreender que havia se tornado uma vítima, sentiu vergonha, mas tomou coragem de denunciar. “Eu, que sempre falei a respeito de denunciar agressores, não denunciei por vergonha”, lamenta.
A servidora municipal entrou com pedido de medida protetiva. Em sua visão, porém, naquela época, acabou encontrando um sistema que a tratou com indiferença e certa insensibilidade: em seu primeiro atendimento na Casa da Mulher Brasileira, ela foi atendida por uma pessoa do sexo masculino.
“Não me senti acolhida, em todas as partes do processo [que envolve vários departamentos da Casa da Mulher Brasileira]. Na verdade, me senti bem constrangida no primeiro atendimento que recebi pelo plantonista, do sexo masculino. Senti que a todo tempo precisava provar, em detalhes, o que havia ocorrido. E como já havia se passado um tempo, mesmo com provas, algumas situações não constaram no boletim”, disse à reportagem.
A servidora conta que mesmo após a medida protetiva deferida pelo Poder Judiciário, ainda não se sente protegida. “Ainda tenho minhas dúvidas quanto à proteção, até porque o autor não teme a medida protetiva. Apesar de não entrar mais em contato, ser finalmente notificado, o uso de álcool e drogas faz ele perder o medo de ser preso, já que vê diariamente que agressores não ficam presos”, pontua.
Maria
Quando Maria* decidiu romper o casamento de nove anos com o pai de seu filho, sofreu perseguição, ameaça de morte e violência psicológica. O ciclo de violência finalizou em 2023, quando Maria* formalizou a denúncia. Contudo, assim como nas histórias de Paula* e de Vanessa Ricarte, ela também encontrou um sistema ‘frio’.
Após algumas idas e vindas à Deam, ela conseguiu a medida protetiva contra o agressor. O pedido foi motivado após sofrer ameaça de morte, proferida quando ela entrou em um novo relacionamento. “Ele invadiu minha casa, entrou e falou que de lá não sairia. Se eu chamasse a polícia, ele me mataria”, relembrou.
Ela novamente precisou retornar na Delegacia para buscar por ajuda. “Fui à Deam. E foi horrível. Fui mal recebida pela triagem, pelo atendimento psicológico… Lá você se sente julgada, não tem acolhimento, você abraça o sentimento de culpa”, contou Maria*.
Mesmo com medida protetiva, ela seguiu a sofrer perseguição do ex-parceiro. Com a cópia da chave da residência, ele esperou Maria* sair para o trabalho e entrou no local – chegou até limpar a piscina da residência.
“O que fez valer minha medida foi um agente [policial] que foi cumprir a ordem. Eu liguei para esse agente e ele foi lá e expulsou ele [ agressor] da casa. Voltei à delegacia e informei que isso tinha acontecido, mas eles me negligenciaram”, disse.
Maria tentou encontrar paz mudando-se de Campo Grande, procurando recomeçar a vida longe do agressor. Contudo, segundo ela, o medo de não estar protegida permanece.
“Não me sinto segura até hoje, porque ainda não teve nenhuma audiência. Isso foi no final de 2023. A gente não teve nenhuma audiência, ele não foi enquadrado em nada, e as ameaças que eu tinha dele eram horríveis”, finalizou.
Investigação e força-tarefa
Em meio à pressão social e institucional, a Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública de MS) promoveu mudanças estruturais na Deam. A Corregedoria da Polícia Civil investigou a conduta da equipe, mas concluiu que os protocolos foram seguidos – o que reforçou a percepção de que o problema também é estrutural.
Mas houve outra resposta. O Governo do Estado criou um grupo técnico para atuar diretamente na Casa da Mulher Brasileira, a fim de desafogar um passivo de cerca de 6 mil boletins de ocorrência acumulados na Deam e melhorar o fluxo de atendimento. A força-tarefa reúne policiais civis, assistentes sociais, psicólogas, defensoras públicas e representantes do MPMS e TJMS.
No entanto, é fato de que a morte de Vanessa evidenciou um problema que não se resolve apenas com mudanças pontuais. Vai da falta crônica de efetivo à fragilidade da execução penal. Especialistas alertam que, sem revisão profunda de fluxos e reforço na estrutura, o risco de novos casos persiste, mesmo dentro de um espaço que deveria ser referência em proteção.
Problemas no sistema de acolhimento
“A mulher encontra um sistema frio e sem acolhimento. Para obter as medidas protetivas, a gente tem uma grande dificuldade, em tese”, essa é a visão da advogada Janice Andrade, sobre o acolhimento prestado às vítimas de violência doméstica em Mato Grosso do Sul.
O relato das vítimas tem valor probatório, isso porque a comprovação das agressões – quando não existem marcas – torna-se difícil. Diante disso, Janice defende que depoimentos das vítimas estão sendo relativizados, ou seja, minimizados.

“É muito difícil a comprovação quando não deixam vestígios aparentes, mas pela legislação nesses crimes, a palavra da mulher tem valor probatório. A gente percebe que o depoimento da vítima está sendo relativizado pelo Sistema Judiciário e pela Promotoria”, frisou Janice.
A demora no cumprimento das medidas protetivas, na visão da especialista, também se tornou um problema. “Temos que ter medidas eficazes, que funcionem, realmente. Você está lidando com vítimas que estão ali, em situação de extrema vulnerabilidade. Qualquer falha acaba com a vítima assassinada. Estamos entre salvar uma mulher e ela ser morta, a violência doméstica precisa ser encarada com seriedade”, apontou a advogada.
Todo o processo que envolve várias fases e passa por vários setores se torna cansativo para as vítimas. “O processo é muito desgastante para elas, porque estão fragilizadas por enfrentarem toda essa violência, revitimização do Estado, violência processual dos advogados dos agressores”, observa.
Deam
A Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) passou por diversas mudanças após a morte da jornalista Vanessa Ricarde. Entre elas, a troca de titularidade e revisão de protocolos. A delegada Fernanda Piovano assumiu a especializada em março deste ano, após a remoção de Elaine Benicasa.
Em entrevista ao Jornal Midiamax, Piovano reforçou que novas medidas estão sendo adotadas na Deam. Mas, ainda assim, os registros de ocorrências são elevados, e, com isso, muitas vezes são superiores à capacidade dos servidores de dar atendimento à vítima em um tempo considerado razoável.

“A proteção inicial conseguimos garantir a todas elas. Mas, mesmo assim, se não nos for sempre trazidos novos servidores, acaba tendo uma dificuldade, gerando algum acúmulo. Estamos, no momento atual, fazendo o possível para dar vazão”, explicou a delegada.
Atualmente, existe um grupo técnico nomeado para analisar cerca de seis mil boletins de ocorrências registrados na especializada. O objetivo é justamente desafogar e dar mais seriedade nos casos.
“Até a força-tarefa foi feita, mais servidores vieram até a Deam pela necessidade verificada de garantir uma resposta rápida às vítimas”, pontuou Piovano.
Na visão da delegada, novo concurso público da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, previsto para acontecer em setembro, é também uma das medidas adotadas, considerando a necessidade de novos servidores. “Isso também é uma das medidas que foi verificada: a necessidade de trazer novos servidores para cá, para que a gente possa dar uma resposta rápida para a mulher, garantindo que ela saia da situação de violência, que essa situação de urgência seja sanada”.
Demora no deferimento da medida protetiva?
Em Mato Grosso do Sul, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 apontam que, em 2024, houve a distribuição de 16.156 medidas protetivas, mas somente 13.762 foram concedidas. Medidas protetivas – vale lembrar – devem ser solicitadas no atendimento na Delegacia, assim que a vítima mostrar interesse. Contudo, o deferimento é feito pelo Poder Judiciário – uma das novidades adotadas é a intimação do agressor pelo celular, assim ele é intimado mais rápido.
“O pedido [da medida protetiva] é encaminhado no mesmo dia ao Poder Judiciário, que tem até 48h para avaliar a concessão da medida. Se concedida, ainda temos que intimar o agressor para que ela possa valer. Atualmente, já é admitida a intimação por contato telefônico, então, rapidamente, conseguimos intimá-los”, explicou Piovano.
Medida protetiva e tornozeleira eletrônica
Como na história de Maria*, mesmo após a concessão da medida protetiva, é muito comum que agressores voltem a intimidar as vítimas, o que configura violação. Atualmente, uma das formas de proteção é a tornozeleira eletrônica, que não se aplica a todos os casos.
“Em regra é: o deferimento da medida protetiva de urgência seguida pela intimação do agressor. O que da vida a essa medida protetiva de urgência, o que faz ela ser eficaz, a possibilidade de prisão em flagrante caso ele a descumpra”, explicou a delegada.
Casos onde a vítima procura a polícia para denunciar o mesmo agressor, mais de uma vez, também contam com a possibilidade de entrar com o pedido da prisão preventiva do mesmo.
“Fazemos o registro do boletim de ocorrência do descumprimento e fazemos o pedido de uma tornozeleira eletrônica ou da prisão preventiva. A tornozeleira eletrônica é que coloca o agressor em fiscalização continua, a todo momento por onde ele estiver, vai ser fiscalizado por uma central de monitoramento”, pontou Fernanda.
A série especial Agosto Lilás, elaborada pelo núcleo de Jornalismo Policial do Jornal Midiamax, continua nesta quinta-feira (7). Confira também as reportagens já publicadas:
- 19 anos depois: mulheres que conhecem menos a Lei Maria da Penha sofrem mais violência em MS
- ‘Qualquer mulher pode ser vítima de feminicídio’, diz delegada titular da Deam
📍 Onde buscar ajuda em MS
Em Campo Grande, a Casa da Mulher Brasileira está localizada na Rua Brasília, s/n, no Jardim Imá, 24 horas por dia, inclusive aos fins de semana.
Além da Deam, funcionam na Casa da Mulher Brasileira a Defensoria Pública; o Ministério Público; a Vara Judicial de Medidas Protetivas; atendimento social e psicológico; alojamento; espaço de cuidado das crianças – brinquedoteca; Patrulha Maria da Penha; e Guarda Municipal. É possível ligar para 153.
☎️ Existem ainda dois números para contato: 180, que garante o anonimato de quem liga, e o 190. Importante lembrar que a Central de Atendimento à Mulher – 180 é um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres em todo o Brasil, mas não serve para emergências.
As ligações para o número 180 podem ser feitas por telefone móvel ou fixo, particular ou público. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, inclusive durante os fins de semana e feriados, já que a violência contra a mulher é um problema sério no Brasil.
Já no Promuse, o número de telefone para ligações e mensagens via WhatsApp é o (67) 99180-0542.
📍 Confira a localização das DAMs, no interior, clicando aqui. Elas estão localizadas nos municípios de Aquidauana, Bataguassu, Corumbá, Coxim, Dourados, Fátima do Sul, Jardim, Naviraí, Nova Andradina, Paranaíba, Ponta Porã e Três Lagoas.
⚠️ Quando a Polícia Civil atua com deszelo, má vontade ou comete erros, é possível denunciar diretamente na Corregedoria da Polícia Civil de MS pelo telefone: (67) 3314-1896 ou no GACEP (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial), do MPMS, pelos telefones (67) 3316-2836, (67) 3316-2837 e (67) 9321-3931.
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