“Estou aqui porque sobrevivi a algo que deveria ter me calado”. Palavras que podem parecer duras, mas para a professora Indiamara Vendruscolo, são capazes de transformar. Aos 44 anos, ela foi esfaqueada oito vezes pelo ex-marido, em crime enquadrado como tentativa de feminicídio, ocorrido em abril deste ano em São Gabriel do Oeste, a cerca de 140 km de Campo Grande.
Na quarta e última reportagem da série especial em alusão ao Agosto Lilás, mês voltado à conscientização sobre a violência de gênero em suas diversas modalidades, o Jornal Midiamax traz a história de uma sobrevivente que busca reconstruir a vida após a tentativa de feminicídio. Nas próprias palavras, ela diz que transforma a dor em luta.
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Encontrar forças para reinventar-se, viver apesar da tragédia e das cicatrizes, num cenário no qual o medo é um fantasma que habita lembranças e pensamentos todo o tempo. Como seguir em frente, sabendo que poucos centímetros de cada facada decidiram pela sua vida?
É nesse contexto que o depoimento de Indiamara é mais que relevante: sensível aos olhos, reforça a importância do apoio psicológico e das políticas de amparo às vítimas de violência – no caso dela, sobrevivente de um feminicídio tentado. É o apoio mínimo necessário para o recomeço de uma vida marcada pela tragédia, mas com a perspectiva de um final feliz.
Prelúdio da violência
Poucos dias antes de ser esfaqueada, Indiamara havia viajado para outra cidade. Recebeu sucessivas mensagens do ex afirmando que ele a observava. Na segunda-feira, ao retornar para São Gabriel do Oeste, trabalhou pela manhã, foi até a casa da babá de seu filho, almoçou e foi para casa buscar itens da criança. Mas, ao chegar em casa, foi surpreendida pela presença do ex-marido.
“Quando cheguei, vi ele encostando o carro. Entrei em casa, peguei a mochila e falei ‘não dá tempo de conversar’. Quando falei isso, ele perguntou se eu não iria voltar para ele e eu disse que não. Falei que estava indo trabalhar e ele me disse ‘nunca mais você vai trabalhar’ e já tirou a faca”, relata.
Naquele dia, a professora foi esfaqueada oito vezes na frente do filho. “Ele me golpeou oito vezes e ficou esperando que eu morresse, olhando para mim. Foi onde eu ouvi uma voz dizendo ‘finge que está morta’. Então, fingi. Se não, ele teria desferido mais golpes. Ele ficou olhando nos meus olhos esperando que eu morresse”, diz a vítima.
Após as facadas, a professora entrou em seu carro e dirigiu quase 4 quilômetros até o hospital para pedir ajuda. Ela teve o pulmão perfurado e bastante sangramento devido às facadas. Pela gravidade dos ferimentos, a previsão era que ficasse internada por 15 dias, no mínimo.
“Porém, eu tive uma ótima recuperação e recebi alta com seis dias. Esse tempo era previsto de internação no CTI (Centro de Terapia Intensiva), mas com seis dias eu já recebi alta para a casa. Então, tudo foi um milagre”, diz.
O ex-companheiro acusado da tentativa de feminicídio ficou foragido por vários dias até ser preso em Rio Verde de Mato Grosso, a cerca de 40km de São Gabriel do Oeste. Prestes a ser transferido de delegacia, ele foi encontrado morto dentro da cela.
Do amor perfeito aos ciclos de violência
Um clássico. O relacionamento da professora começou exemplar em 2022. Contudo, gradativamente, as manifestações de cuidado e carinho deram espaço a um verdadeiro pesadelo, marcado pelos ciúmes possessivos e pela violência psicológica.
“Meu relacionamento começou às mil maravilhas, era muito tranquilo. Ele [companheiro] tinha seus defeitos, mas comigo era um homem maravilhoso, extremamente cuidadoso”, relata a vítima. No entanto, no ano seguinte, a mulher passou a notar comportamentos negativos motivados por ciúmes, aliado à exigência de justificativas e a crises de possessividade, configurando violência psicológica.
“Eu já acordava pisando em ovos. Ele trabalhava muito fora da cidade, então a primeira coisa que eu fazia era olhar o celular, porque na mensagem de ‘bom dia’ dele eu conhecia como seria meu dia. Foi terrível”, conta a vítima.
Cansada da violência psicológica, a mulher decidiu se separar e denunciou o companheiro à polícia. Na delegacia, ela pediu por medida protetiva, deferida pelo Poder Judiciário. No entanto, no dia 14 de abril deste ano, pouco mais de três meses após a separação, o homem descumpriu a medida, indo à residência da ex-companheira para matá-la.

“Meu silêncio não me protegia… minha voz, sim”
De vítima a voz, Indiamara dedica tempo a palestras sobre violência doméstica, a fim de orientar as mulheres que ainda sofrem caladas.
“Tornei a minha dor em luta, pois hoje quero lutar por outras mulheres. Quero que elas saibam que podem recomeçar. Não foi fácil estar aqui, contar minha história, abrir minhas feridas. Mas, hoje, entendo: meu silêncio não me protegia… minha voz sim”, afirma a professora.
“Hoje, não estou aqui como uma estatística. Estou viva. Estou aqui porque sobrevivi a algo que deveria ter me calado”, acrescenta Indiamara.
Importância do apoio psicológico
Quase quatro meses após a tentativa de feminicídio, a professora avalia que teve a vida reconstruída, com apoio psicológico. Contudo, não foi uma etapa simples. “Os últimos meses foram de ressignificação, pois eu tive que vencer tudo com muita coragem e determinação. Graças a Deus estou bem. Me sinto um milagre”, agradece.
Apoio psicológico é primordial para a recuperação da vítima de violência doméstica. A neuropsicóloga Jessyka Santana Crispim explica que a violência, seja física, psicológica, patrimonial, sexual ou moral, deixa marcas emocionais duradouras que afetam várias áreas da vida.
“Os impactos vão desde ansiedade, ataques de pânico e depressão até baixa autoestima, desvalorização de si mesma, dificuldades cognitivas e problemas nos relacionamentos [não apenas amorosos], mas também familiares, sociais e profissionais”, afirma.
A neuropsicóloga reforça a importância do acompanhamento psicológico e rede de apoio sólida para a reconstrução emocional e social da mulher que foi violentada.
“A psicoterapia desempenha um papel fundamental nesse processo: oferece escuta qualificada, acolhimento e ferramentas práticas para que a vítima compreenda a violência sofrida, fortaleça seus recursos internos e construa uma nova vida com segurança e autoconfiança”, destaca Jessyka.
Mato Grosso do Sul tem aumento de medidas protetivas distribuídas
Conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, divulgado pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), Mato Grosso do Sul teve aumento de 4,4% na concessão de medidas protetivas em 2024 e, consequentemente, aumento nos casos de violência doméstica. Em 2023, o Estado registrou a distribuição de 15.343 medidas, enquanto no ano seguinte foram 16.156.
Assim como a distribuição de medidas aumentou, o sistema de recebimento de ligações 190 também cresceu. Em 2023, o sistema de emergência de MS recebeu 18.543 ligações no 190 relacionadas à violência doméstica, enquanto no ano passado foram contabilizadas 19.198 ligações, ou seja, aumento de 2,7%.
Os dados referentes às medidas protetivas distribuídas e às ligações recebidas no 190 apresentam bastante diferença, mostrando que não é toda vítima de violência doméstica que pede medida protetiva contra o agressor na delegacia.
Sobre isso, a delegada Fernanda Barros Piovano, titular da Deam (Especializada de Atendimento à Mulher), explica como funciona o processo após a solicitação da medida protetiva. Segundo ela, o pedido é encaminhado no mesmo dia ao Poder Judiciário.
Apesar da decisão judicial ser atendida rapidamente, a delegada esclarece que é necessária a intimação do agressor para que a medida possa valer. A Polícia Civil tem 24 horas para encaminhar a solicitação, enquanto a Justiça tem 48 horas para analisar.
“Atualmente, já é admitida a intimação por contato telefônico. Então, essa intimação já é válida e, de forma rápida, a gente consegue notificar o agressor. Se não é possível contato telefônico, ele é procurado. Tem as exceções: caso ele não seja localizado, há um prazo para ser publicado o edital”, esclarece Fernanda.
Com a medida em vigor, existe um monitoramento dos agressores? A titular da especializada explica que a tornozeleira eletrônica não é para todos. Caso o agressor descumpra a medida protetiva vigente e não seja localizado pela polícia é feito o pedido de tornozeleira eletrônica.
No entanto, durante a vigência da medida protetiva, as vítimas contam com o Promuse (Programa Mulher Segura) da PM (Polícia Militar) e a Patrulha Maria da Penha, da GCM (Guarda Civil Metropolitana), para fiscalização no cumprimento por parte dos agressores.
“Às vezes chega a conhecimento da Polícia Civil que um agressor fez uma ligação ou algo nesse sentido. E nós, a partir disso, fazemos o registro do boletim de ocorrência do descumprimento e o pedido de uma tornozeleira eletrônica ou uma prisão preventiva. A tornozeleira eletrônica é que coloca o agressor em fiscalização contínua, então a todo momento por onde ele estiver, será fiscalizado por uma central de monitoramento”, detalha a delegada.
Amparo às vítimas de violência em Mato Grosso do Sul
A subsecretária de Políticas Públicas para Mulheres de Mato Grosso do Sul, Manuela Nicodemos, detalha que Campo Grande conta com o Ceamca (Centro Especializado de Atendimento à Mulher, à Criança e ao Adolescente em Situação de Violência).
O Ceamca oferece acolhimento e acompanhamento psicológico e social contínuo para mulheres, crianças e adolescentes inseridos no mesmo contexto familiar. Em casos de vítimas correndo risco de vida, elas contam com a casa abrigo.

“Ela [mulher] tem atendimento com psicóloga, assistente social, encaminhamento para o mercado de trabalho. E agora, pela primeira vez na história desse serviço em Mato Grosso do Sul, os filhos e filhas têm atendimento especializado também, porque estávamos observando que a gente trabalha a vítima, mas ela é um sujeito coletivo, pois ela tem família. Não adianta trabalhar a vítima se não trabalhar a família dela, que são os filhos e as filhas”, explica.
Inclusive, com o atendimento especializado aos familiares, a subsecretária revela que o resultado tem sido satisfatório. “A gente tem constantes visitas nesse serviço no Ceamca. As psicólogas relatam mudança de comportamento nas crianças, que eram agressivas porque viam o pai espancar a mãe”, revela Manuela.
Já sobre os municípios do interior de Mato Grosso do Sul, alguns deles contam com o Cram (Centro de Atendimento à Mulher no Interior do Estado). Contudo, nas cidades que não possuem Cram, o atendimento é feito no Creas (Centro de Referência Especializado de Atendimento de Assistência Social) – o que não é o ideal.
“O ideal é ter municipalização do serviço especializado da mulher, porque nós temos normas e diretrizes de serviço. As mulheres têm política pública para esse atendimento. Ao que tudo indica, [a estrutura de acolhimento] passará a existir, em um tempo muito próximo, em outros municípios do Estado”, adianta a subsecretária.
Além dos centros, há o Programa Recomeço, que oferece apoio financeiro e emocional para mulheres em situação de violência doméstica. Existe ainda o selo Empresa Amiga da Mulher, focado em empresas, fundações e instituições para realização de ações e políticas que incentivem a igualdade de gênero.
Medidas transversais e institucionais para combater a violência de gênero
Em alusão ao Agosto Lilás, a Subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres deve anunciar em breve um conjunto de ações transversais e institucionais, que visam à prevenção e ao enfrentamento da violência contra a mulher.
Nicodemos ainda destaca como oportunidade o Ônibus Lilás, que leva atendimento a todos os territórios de Mato Grosso do Sul, incluindo as comunidades rurais, ribeirinhas e indígenas. “É uma unidade móvel que oferece esses atendimentos e a gente leva as políticas públicas e informação. Porque a principal política pública, ao meu ver, é informação. Informação é poder”, pontua Manuela.
Entretanto, a subsecretaria reforça que o papel do Estado é articular a pasta para aqueles municípios que ainda não têm uma secretaria focada no atendimento à mulher vítima de violência. “O que as pessoas não entendem muitas vezes é que nosso papel no Estado é de articulação, plantar a ‘sementinha’ ali no município, colocar na cabeça daquele gestor ou gestora municipal que tem que ter uma pasta”.
Atualmente, o Estado tem 54 coordenadores municipais de políticas públicas para as mulheres. Destas 54, quase todas estão dentro da pasta de Assistência Social.
“E nós temos diretrizes de políticas públicas de mulheres no Brasil. Não precisava estar dentro de outra pasta, tem autonomia de ser uma coordenadoria, igual uma secretaria de saúde, de educação e de mulher no município (…). Isso é histórico, é um serviço de atendimento integrado a mulheres em situação de violência nos municípios. Mas, qual a obrigatoriedade dos municípios? Nenhuma! A gente é que está trabalhando, porque aí o Governo do Estado vai entrar, o município terá contrapartida e assim a gente vai amarrando as políticas públicas”.
Confira as reportagens anteriores da série Agosto Lilás, elaboradas pelo núcleo de Jornalismo Policial do Jornal Midiamax:
- 19 anos depois: mulheres que conhecem menos a Lei Maria da Penha sofrem mais violência em MS
- ‘Qualquer mulher pode ser vítima de feminicídio’, diz delegada titular da Deam
- Em MS, feminicídio expôs denúncias de descasos, mas também mostrou que problema é estrutural
📍 Onde buscar ajuda em MS
Em Campo Grande, a Casa da Mulher Brasileira está localizada na Rua Brasília, s/n, no Jardim Imá, 24 horas por dia, inclusive aos fins de semana.
Além da Deam, funcionam na Casa da Mulher Brasileira a Defensoria Pública; o Ministério Público; a Vara Judicial de Medidas Protetivas; atendimento social e psicológico; alojamento; espaço de cuidado das crianças – brinquedoteca; Patrulha Maria da Penha; e Guarda Municipal. É possível ligar para 153.
☎️ Existem ainda dois números para contato: 180, que garante o anonimato de quem liga, e o 190. Importante lembrar que a Central de Atendimento à Mulher – 180 é um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres em todo o Brasil, mas não serve para emergências.
As ligações para o número 180 podem ser feitas por telefone móvel ou fixo, particular ou público. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, inclusive durante os fins de semana e feriados, já que a violência contra a mulher é um problema sério no Brasil.
Já no Promuse, o número de telefone para ligações e mensagens via WhatsApp é o (67) 99180-0542.
📍 Confira a localização das DAMs, no interior, clicando aqui. Elas estão localizadas nos municípios de Aquidauana, Bataguassu, Corumbá, Coxim, Dourados, Fátima do Sul, Jardim, Naviraí, Nova Andradina, Paranaíba, Ponta Porã e Três Lagoas.
⚠️ Quando a Polícia Civil atua com deszelo, má vontade ou comete erros, é possível denunciar diretamente na Corregedoria da Polícia Civil de MS pelo telefone: (67) 3314-1896 ou no GACEP (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial), do MPMS, pelos telefones (67) 3316-2836, (67) 3316-2837 e (67) 9321-3931.
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